sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Setor público - Iphan, um oásis republicano


por Jotabê Medeiros — http://www.cartacapital.com.br/
O empobrecido órgão resiste ao avanço da plutocracia. Diante dele, até Niemeyer teve de ceder
Uma instituição octogenária, quase sem recursos, tornou-se um dos principais polos de resistência aos achaques da trupe de Michel Temer. O orçamento modesto, 14,5 milhões de reais por ano, dificulta até o abastecimento de itens básicos, como o cafezinho, ou a substituição de vidraças quebradas. Mesmo assim, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é hoje uma pedra no sapato do governo.

O Iphan completa 80 anos em 13 de janeiro. No último dia 16, ao ignorar a pressão monstruosa oriunda do Palácio do Planalto, em Brasília, e do seu próprio entorno regional, na prefeitura de Salvador, o instituto decidiu embargar a execução do La Vue, empreendimento imobiliário na Avenida 7 de Setembro, Ladeira da Barra, na capital baiana.
A decisão, embora estritamente técnica, provocou a demissão do ministro da Cultura, o diplomata Marcelo Calero, abriu nova crise no governo e levou o articulador político, Geddel Vieira Lima, à execração pública e a julgamento na Comissão de Ética da Presidência.
A trama ecoa a ficção do filme Aquarius, combatido pelo agora ex-ministro da Cultura depois de o elenco e o diretor, o pernambucano Kleber Mendonça Filho, protestarem contra o golpe no Festival de Cannes, em maio passado. Vieira Lima pressionava Calero para derrubar o veto do Iphan à construção do La Vue, espigão de 31 andares no qual havia comprado um apartamento “nos andares mais altos”. 
O problema é que a Barra é pródiga em maravilhas, do ponto de vista do patrimônio histórico: o forte e o Farol de Santo Antônio, o Forte de Santa Maria e o conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico do Outeiro de Santo Antônio, que inclui o Forte de São Diogo, além da Igreja de Santo Antônio. Todos esses monumentos estão sob a proteção do Iphan, que decidiu que o apartamento do ministro não vai existir. 
Vieira Lima não é o primeiro nem será o último a perder uma queda de braço contra o Iphan. De maneira geral, é corriqueira a pressão dos poderosos contra o instituto do tombamento. A razão é o interesse imobiliário em áreas de alto valor econômico em locais estratégicos, especialmente em certos bairros do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife, entre outras cidades.
O zelo do Iphan, que reúne apenas 700 funcionários efetivos em todo o País para preservar 45 mil bens tombados (o último concurso público para técnicos foi em 2008), desagrada a financistas e políticos de todo o espectro partidário.
Estádio
O estádio Mané Garrincha não descaracterizou Brasília (Foto: Uanderson Fernandes/Ag. O Dia)
Um dos embates deu-se em torno da construção do Estádio Mané Garrincha, uma das sedes da Copa do Mundo de 2014, em Brasília. O estádio estava vinculado a um empreendimento adicional, a construção da Quadra 901-Norte, cuja venda dos lotes financiaria a arena.
O novo bairro previa, porém, um arranha-céu, quando o limite de altura permitido pelo projeto do Plano Piloto é de quatro pavimentos. Nem a intensa pressão política foi capaz de dobrar a equipe do Iphan, que barrou a iniciativa. Na época, o senador Gim Argello, posteriormente condenado a 19 anos de prisão, tentou exercer sua influência. Nada feito.
A história de resistência está vinculada à criação do Iphan. Vários episódios tornaram-se emblemáticos. Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do instituto de 1937 a 1968, empenhou-se no tombamento de um casarão colonial de três pavimentos na mineira São João del Rei, no Largo Tamandaré, para nele instalar um museu regional.
Houve vigorosa oposição da família proprietária, que contratou o jovem advogado Tancredo Neves para reverter o tombamento. Tancredo perdeu a causa, e hoje o museu é uma das joias da cidade.
“O instituto sempre ganhou as demandas judiciais e há uma jurisprudência notável a seu favor, em todas as instâncias. Só o presidente da República pode desfazer o tombamento”, afirma Angelo Oswaldo, presidente do Iphan por quase três anos e atual secretário de Cultura de Minas Gerais.
A autarquia, de fato, teve pouquíssimas derrotas nos últimos 80 anos. Especialistas lembram do caso da Serra do Curral, em Belo Horizonte, cujo destombamento parcial foi assinado pelo marechal Castello Branco, para atender aos interesses de um grupo minerador. A destruição da serra mudou o clima da capital mineira, mais frio no passado.
Por consequência, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu Triste Horizonte, poema no qual lamenta a descaracterização de BH: Proibido escalar. Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo.
Às vezes, cumpre ao Iphan a penosa tarefa de se contrapor ao próprio criador de determinados marcos arquitetônicos históricos. Oscar Niemeyer projetou o prédio do Grande Hotel Ouro Preto, em 1939, a pedido de Rodrigo Melo Franco de Andrade e por sugestão de Lucio Costa, para evitar um pastiche na cidade, carente de um hotel qualificado.
Em 1993, o arquiteto pretendeu alterar a fachada do imóvel, que ficaria parecido com uma das escolas criadas por ele para o estado do Rio de Janeiro. O Iphan embargou a iniciativa e, pouco tempo depois, Niemeyer concordaria com a tese de que o imóvel tombado de fato não comportaria a alteração. 
La Vue
O ministro Vieira Lima perdeu a vista do 
La Vue
O caso Vieira Lima não é isolado. CartaCapitaldenunciou, em maio, que Temer, quando anunciou a extinção do Ministério da Cultura, inseriu no decreto de recriação da pasta uma misteriosa Secretaria de Patrimônio, que se posicionaria, hierarquicamente, acima do Iphan.
O apêndice, criado por um governo sem respaldo popular e sem voto, era uma clara ameaça às paisagens das cidades. Um influente técnico do instituto, sob anonimato, disse que o órgão enfrenta no momento uma demanda excepcional para se imiscuir em assuntos da alçada dos estados e municípios.  
As cidades estão a reboque dos interesses imobiliários, diz o funcionário, e cita o caso do Cais Estelita, no Recife. Os movimentos sociais organizados passam a exigir uma manifestação do Iphan sobre casos que deveriam ser tratados pelos poderes locais. Mas, como há um vale-tudo, o instituto é convocado.
Não é o caso de Salvador, monitorado com atenção pelo patrimônio. Mesmo ciente de que a aprovação de um empreendimento como o La Vue abre um precedente com potencial para destruir a região, os conceitos e a memória da Barra e de Salvador, a construtora do prédio deve recorrer à Justiça.
As chances de vitória parecem pequenas, pois as posições do órgão são embasadas por decisões do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que reúne 23 especialistas de diversas áreas e 13 representantes da sociedade civil. Quando o novo ministro da Cultura, Roberto Freire, anuncia em sua primeira entrevista após a nomeação o intuito de respeitar as decisões do instituto, certamente não lhe resta alternativa. 
O Iphan não está imune à contaminação dos interesses políticos. Diversos superintendentes regionais são nomeados por influência de caciques locais, na mesma lógica de loteamento comum no País. O superintendente em Salvador, Carlos Amorim, foi afastado do governo Dilma Rousseff por conta de suspeitas de atender a interesses, digamos, nada republicanos.
A denúncia foi feita em entrevista ao site de CartaCapital pelo ex-ministro Juca Ferreira, que previa a nomeação de Amorim para a recém-criada Secretaria do Patrimônio. Calero não o nomeou. Restou a vaga na Bahia. Passados alguns meses, soube-se que Amorim esforçou-se para liberar a torre do ministro Geddel.

As brigas do Iphan

Marina da Gloria e Parque do Flamengo
Marina
Marina e Parque são áreas tombadas, sempre envolvidas em polêmicas provocadas por tentativas de ocupação conflitante com as normas da salvaguarda. A paisagista e intelectual Lota de Macedo Soares, que atuou na criação do Parque do Flamengo, durante o governo Carlos Lacerda, pediu ao Iphan o tombamento, porque já nos anos 1950 imaginava o cerco dos especuladores.
Parque Nacional dos Guararapes e Várzea entre Olinda e Recife 
Parque Nacional dos Guararapes
Regiões polêmicas em Pernambuco. O Parque dos Guararapes foi invadido há mais de 40 anos. A ocupação entre Recife e Olinda evidencia um processo de conurbação que afeta a autonomia das duas manchas urbanas, uma delas declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
Morro Dois Irmãos e Jardim Botânico  
Morro Dois Irmãos
Duas áreas polêmicas no Rio de Janeiro. O Morro Dois Irmãos, na ponta do Leblon, é ameaçado por invasões, apesar do tombamento. No Jardim Botânico, há invasões de toda ordem e projeto de arranha-céus.
Copacabana Palace 
Copacabana Palace
O tombamento se efetivou em 1987, pedido por todas as associações de moradores do Rio de Janeiro. Os proprietários tentaram evitar a medida. Um único integrante do Conselho do Patrimônio votou contra o tombamento: o bibliófilo José Mindlin. Segundo ele, era preciso respeitar a economicidade do bem. Achava que a atividade hoteleira seria prejudicada. Ao contrário, a proteção garantiu ao Copa uma nova dimensão, um certo status de hotel de charme, e o continuado sucesso.
Tiradentes (MG)  
Tiradentes
Há 40 anos, era uma cidade morta. Foi revitalizada e está efervescente, com vários projetos de loteamentos e bairros sitiando o centro histórico. A ação do Iphan é polêmica, pois há casos aprovados e outros vetados, mas com o mesmo grau de dano ao espaço tombado.
Grande Hotel Ouro Preto (MG) 
Grande Hotel Ouro Preto
Niemeyer projetou-o em 1939, a pedido de Rodrigo Melo Franco de Andrade e por sugestão de Lucio Costa, para evitar um pastiche em Ouro Preto, carente de um hotel qualificado. Em 1993, o arquiteto quis alterar toda a fachada do imóvel, que ficaria parecido com uma das escolas que criou para o Estado do Rio. O Iphan embargou a iniciativa e, pouco tempo depois, Niemeyer concordaria com a tese de que o imóvel tombado não comportava tal alteração.
*Reportagem publicada originalmente na edição 929 de CartaCapital, com o título "Um oásis republicanos"

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