segunda-feira, 10 de abril de 2017

De senhor a lacaio


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Publicado nos EUA o livro em que Celso Amorim conta como o Brasil se tornou protagonista do jogo mundial, para desespero da mídia nativa

Acaba de ser publicado nos Estados Unidos um livro importante de um intelectual brasileiro do qual os conterrâneos haveriam de se orgulhar. Intitula-se Acting Globally – Memoirs of the Brazil’s Assertive Foreign Policy (Hamilton Books, 2017).

Trata-se da versão em língua inglesa de Teerã, Ramalá e Doha, obra de Celso Amorim, o chanceler mais longevo da nossa história, que ganhou as livrarias em português faz dois anos.

Já então mereceu o elogio de Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, pronto a reconhecer a “vívida” demonstração de como o Brasil de Lula e do seu ministro do Exterior tornou-se potência mundial, para desalento da mídia nativa.

Agora a edição da Hamilton Books recebe as palmas de Noam Chomsky, segundo quem aquele Brasil assumiu o papel do “maior ator do palco mundial”. O livro de Amorim, diz Chomsky, é “um modelo daquilo de que o mundo precisa desesperadamente, em lugar de ameaças e violência, judiciosa e cuidadosa diplomacia”.

Não foi por acaso que a revista Foreign Policy em 2009 classificou o nosso chanceler como “o melhor do mundo” e em 2010 o colocou em sexto lugar na sua lista dos “100 pensadores globais”. De fato, Celso Amorim antes de mais nada é um intelectual de alto nível, que também exercita sua pena nas páginas de CartaCapital, com artigos e colunas. De sua colaboração nos orgulhamos.

Amorim pensa e escreve com excelência. Quem leu seu artigo “Hiroshima, Meu Amor” na Carta da semana passada dispõe de um bom exemplo da fluência mental do ex-chanceler e de sua capacidade de conectar o passado ao presente.

Seu livro recém-publicado nos EUA traz à memória o tempo feliz experimentado, surpreendentemente, eu diria, durante os dois mandatos de Lula, cujos pontos altos foram a política exterior independente, desvencilhada dos interesses de Washington, e vários passos significativos a caminho da inclusão social.

Vínhamos do governo de Fernando Henrique, fiel à tradição de súditos de Tio Sam, que o então presidente manifestava de forma concreta e com extremo fervor ao cair literalmente no afago do abraço de Bill Clinton. Mudança abrupta com Lula e Amorim, quando Obama define o presidente ex-metalúrgico como o cara. O tal, o rei sem troça da cocada preta.

O volume do ex-chanceler evoca três momentos cruciais daquele período de peso e ressonância mundiais. Em Teerã, a manobra junto ao país dos aiatolás que poderia ter composto a questão iraniana muito antes do que acabou por se dar.

Ramalá, como epicentro da negociação médio-oriental, com o reconhecimento do governo palestino. Doha, como local de mais uma rodada de negociações multilaterais em busca da regulamentação do comércio global, quando à testa da delegação brasileira Amorim teve desempenho exemplar.

O governo Dilma foi bem menos vigoroso na condução das relações internacionais e Amorim fez muita falta. Precipitamos vertiginosamente no retorno ao passado em consequência do golpe, mas em um palco muito diferente daquele de tempos até recentes de tão inédito e inesperado.

Um intelectual arguto na chancelaria, de imaginação atilada, seria recomendável na hora incerta, mas o modelo ideal não se adapta às condições criadas pela incompetência e insensatez dos golpistas.

Os tucanos remetidos ao Itamaraty esmeram-se para exibir a desimportância e a parvoíce do Brasil de Temer. A única certeza diz respeito à confirmação à sujeição às vontades de Washington. No mais, a inoperância de José Serra foi tão monumental quanto sua vaidade.

Já Aloysio Nunes Ferreira simplesmente inexiste. E o atual inquilino da Casa Branca absolutamente não se parece com os que o precederam, democratas ou republicanos que fossem.

Donald Trump em relação à América Latina limita-se a ligar o piloto automático enquanto volve o olhar no alvo exclusivo do Muro, que enxerga ainda de pé, e além, até o Extremo Oriente, a ser disciplinado, se for o caso, ao brandir a ameaça militar ou, no caso da China, em primeiro lugar, e do mundo em geral, pelo protecionismo elevado à enésima potência. Na moldura, o Brasil torna-se peça descartável, como a bailarina da terceira fila do Music Hall.

Aconselhável ler ou reler o livro de Celso Amorim, para entender quanto perdemos e a inesgotável valia de uma judiciosa e cuidadosa diplomacia, como diz Chomsky.

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