segunda-feira, 10 de abril de 2017

Prisão domiciliar, estereótipo de gênero e discriminação estrutural

Prisão domiciliar, estereótipo de gênero e discriminação estrutural
    Foto: Agência Brasil

Erick Beyruth de Carvalho e 
Konstantin Gerber
http://justificando.cartacapital.com.br/

O entendimento acerca da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes deriva da 65ºAssembléia Geral da ONU, realizada em 2010, que aprovou regras mínimas para as Mulheres Presas, dentre as quais a obrigação dos Estados-Membros em desenvolver “opções de medidas e alternativas à prisão preventiva e à pena especificamente voltada às mulheres infratoras, dentro do sistema jurídico do Estado Membro, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres e suas responsabilidades maternas”. Ainda que do ponto de vista formal, resoluções ou declarações (a menos que veiculem normas ius cogens) não sejam vinculantes, estas são muitas vezes referidas em decisões do Supremo Tribunal Federal.

Esse foi o embasamento utilizando pelo ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do Habeas Corpus (126107/SP) o qual foi concedido de oficio, para determinar a substituição da prisão preventiva da paciente – acusada do tipo do art. 33 da Lei 11.343/06 por prisão domiciliar. No caso em tela, a Defensoria Pública alegou que:

(i) a paciente é portadora de cardiopatia grave;

(ii) estava em estágio avançado de gestação e;

(iii) se encontrava em lugar inadequado para o cumprimento de pena.

Ocorre que, de plano, o Supremo Tribunal Federal não pôde reconhecer a ordem sob a justificativa de supressão de instância, entendimento que decorre do HC (119.115/MG) de relatoria do próprio ministro Lewandowski segundo o qual a falta de agravo regimental no STJ – e, portanto, levando a análise da decisão pelo colegiado – impede o conhecimento do Habeas Corpus no STF. No entanto, dada a gravidade da situação, o STF conheceu a ordem de ofício, baseando-se principalmente nas orientações normativas internacionais que vem privilegiando medidas alternativas à prisão preventiva à mulheres infratoras.

Medidas essas que ganham especial relevo em países que ainda não possuem uma Política Criminal de Drogas clara, voltada para redução de danos. Os efeitos no corpo social de uma Política Criminal pautada ainda em ideologias de segurança nacional e defesa social, com predominância do policiamento ostensivo, é o encarceramento em massa da população em situação de vulnerabilidade, em especial nos grandes centros. Dentre essa grande massa estão as mulheres, das quais 63% respondem pelo crime de tráfico de drogas.[1]

Se muitos tribunais de justiça nem sequer obedecem súmulas dos tribunais superiores, o que dizer inspirar-se por julgados de controle concreto difuso de constitucionalidade ou mais ainda pelo Código de Processo Penal que no art. 318, V autoriza os juízes a substituir a prisão preventiva pela domiciliar de mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos.

A possibilidade decorre da Lei 13.257/16, conhecida como marco legal da primeira infância, mas muito antes já vigorava no Brasil a Convenção dos direitos da Criança (Decreto n. 99.710/90), em que se estabeleceu o dever do poder público de levar em conta “o interesse maior da criança”. E no caso de uma lei ou outro tratado internacional que sejam por ventura mais favoráveis à criança do que a Convenção, deve esta ceder em prol de uma interpretação mais favorável à criança nos termos do art. 41.

A resolução do CNJ (n. 213 de 2015) determina verificar na audiência de custódia se há cabimento de liberdade provisória, em hipótese de gravidez, filhos ou dependentes sob cuidado da mãe presa em flagrante, se possui histórico de doença grave, incluída aí a dependência química, para encaminhamento assistencial.

O que dizer, então, de muitos juízes que mantêm as prisões preventivas, em muitos casos de mulas, de mulheres sem vinculação com o crime organizado, sendo que estas serão condenadas ao regime inicial aberto de cumprimento de pena?[2]. Recentemente, muito se debateu acerca da notícia da prisão de Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Cabral, mesmo com dois filhos de 11 e 14 anos, decisão essa que foi revertida pelo STJ.

Em outro caso interposto pela Defensoria Pública de São Paulo (Habeas Corpus 351.494), o STJ já havia aplicado a prisão domiciliar, pois a ré era mãe, primária e possuía residência fixa. Em caso de genitor que não provou cabalmente “a essencialidade dos cuidados” do filho, o STJ não substituiu a preventiva por domiciliar (RHC 81300). Os homens devem provar que são os únicos responsáveis pelos cuidados dos filhos, já para as mulheres o requisito legal é de que estejam grávidas ou possuam filhos menores de 12 anos.

A possibilidade de prisão domiciliar não exclui absolutamente a discussão sobre o papel de mãe atribuído à mulher, reforçado por esta prescrição normativa, donde a importância primordial de se dar voz (e nossos ouvidos) ao que tem a dizer as mulheres encarceradas[3]. E se a tal prisão domiciliar for o domicílio do marido ou namorado violento? E se for decretada a prisão domiciliar e ninguém da família ajudar com o sustento dos filhos? Isso os juízes perguntam? Daí a imperiosa necessidade da articulação do sistema de justiça com o sistema de assistência social.

Aí cabem mais questionamentos sobre os requisitos para o recolhimento domiciliar da medida cautelar diversa da prisão como o de residência fixa e o de trabalho com carteira assinada, pois sabemos que grande parte das mulheres é discriminada no mercado de trabalho e trabalha no mercado informal, para não dizer que algumas ainda complementam renda com o tráfico de drogas.

Há um contexto de vulnerabilidade, de discriminação estrutural, mas não só, para não repetir leituras estereotipadas sobre mulher, pois esta age por vontade própria, o que exige que história de cada mulher encarcerada possa ser contada (e ouvida).

Para não repetir teses de defesa de que a mulher age por emoção, por amor ao marido ou ao namorado, quando flagrada ao levar droga em presídio, melhor seria sustentar o ato de tortura que é a revista vexatória. Conforme parâmetro interamericano no caso X e Y vs. Argentina, Caso Nº 10.50, Informe Nº 38/96 de 15 de outubro de 1996, no parágrafo 72 do informe, foram estabelecidas condições excepcionais para a revista:

“La Comisión estima que para establecer la legitimidad excepcional de una revisión o inspección vaginal, en un caso en particular, es necesario que se cumplan cuatro condiciones: 1) tiene que ser absolutamente necesaria para lograr el objetivo de seguridad en el caso específico; 2) no debe existir alternativa alguna; 3) debería, en principio, ser autorizada por orden judicial; y 4) debe ser realizada únicamente por profesionales de la salud”

Nos parece haver possibilidade de ajuizamento de ações civis públicas para determinar obrigação de fazer com bloqueio no orçamento estadual e determinação de instalação de equipamentos nos presídios, consoante estabelece o art. 3º da Lei do Estado de São Paulo n. 15.552/14:

“Artigo 3º – Todo visitante que ingressar no estabelecimento prisional será submetido à revista mecânica, a qual deverá ser executada, em local reservado, por meio da utilização de equipamentos capazes de garantir segurança ao estabelecimento prisional, tais como:

I – “scanners” corporais;
II – detectores de metais;
III – aparelhos de raios X;
IV – outras tecnologias que preservem a integridade física, psicológica e moral do visitante revistado”

Em um contexto em que as mulheres já são discriminadas por receberem menos no mercado formal, sendo que muitas estão no mercado informal, deve-se pensar em condições da emancipação econômica feminina.

Aprimorar a política de cuidados com as crianças nos exige debater em que condições se dá a prisão domiciliar, se há ou não articulação com a política de assistência social e com políticas para autonomia econômica das mulheres, enquanto, é claro, não tivermos uma agenda mais consistente pelo desencarceramento de massa pondo fim a guerra às drogas (que é uma guerra contra pessoas).

Erick Beyruth de Carvalho, advogado, mestrando em Direito Constitucional pela PUC-SP, onde integra o grupo de pesquisa em Epistemologia Política e Direito.

Konstantin Gerber é advogado consultor em São Paulo, mestre e doutorando em filosofia do Direito, PUC SP, onde integra os grupos de pesquisa direitos fundamentais. Professor convidado do curso de especialização.

[1]Infopen 2015

[2] ODY BERNARDES, Célia Regina. Juízes transgressores, mulheres encarceradas. 21 de setembro de 2016, Justificando, disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2016/09/21/juizes-transgressores-mulheres-encarceradas/

[3] Vide: http://mulheresemprisao.org.br/

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