terça-feira, 23 de maio de 2017

Empresários confirmam esquizofrenia

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PAULO MOREIRA LEITE

Quando o país já comprovou que a mais grave ruptura institucional desde o golpe de 1964 serviu para abrir as portas e porões de Brasília para uma quadrilha ainda mais audaciosa e desqualificada do que tudo o que se já se vira antes, os 200 milhões de brasileiros e brasileiros são obrigados a enfrentar a esquizofrenia cultural de uma parcela do empresariado, traço infalível para reproduzir as estruturas de um país onde a desigualdade e a injustiça se reforçam há 500 anos.

Com a linguagem de ditadura desses tempos inaugurados pelo golpe parlamentar que interrompeu o mais amplo período de progresso social da história republicana recente, um manifesto assinado pelo Sindicato da Habitação SECOVI-SP e publicado nos principais de terça-feira (23/5/2017) tem uma mensagem àqueles que foram às ruas em protesto no dia 15, fizeram a greve geral do 28 de abril e tem um protesto marcado para Brasília, nesta quarta-feira: "a agenda de reformas veio para ficar e deve ser obrigatoriamente implantada."

É a volta do Ame-o ou Deixe-o, meus amigos. Não vem dos quartéis, mas está nos anúncios de jornal. 

Debater e questionar -- como fazem até juízes do Trabalho -- a reforma trabalhista, como um retorno ao universo de cativos anterior a 13 de maio de 1888, não é uma opção de homens livres, nem uma decisão que pode ou não ser apoiada pela maioria de uma população heterogênea nos interesses, na condição de vida, nas oportunidades oferecidas. É na porrada. 

Da mesma forma, a reforma da Previdência -- recusada por militares, pelo Judiciário, e por todos os setores sociais que têm força política para impor-se perante um governo fraco, sem dispor da única forma de autoridade aceitável de uma democracia, que é a legitimidade -- também deve ser imposta. Obrigatoriamente.

"Não podemos perder a oportunidade de ingressar no mundo contemporâneo," diz o manifesto que aponta para a Idade Média social.

"O Brasil não pode parar!", acrescenta, num período em que o Minha Casa Minha Vida, um dos maiores programas habitacionais do planeta -- algo que deveria interessar uma entidade voltada para investimentos e empregos da habitação -- foi paralisado como parte da "agenda reformista" e jamais será retomado num país onde vigora o teto de gastos aprovado como ponto de honra da política econômica. 

Mas não é só. Depois que a indignação da população diante das assombrosas revelações de Joesley Batista colocou em questão a sobrevivência do governo Michel Temer, apresentando sérias dúvidas sobre a continuidade de seu programa de reformas regressivas, o empresário Robson Braga de Andrade, presidente da Confederação Nacional da Industria, reagiu do mesmo modo, como se lê num Comunicado a Nação igualmente espantoso.

Exatamente um ano depois da "encenação do Congresso " que derrubou Dilma -- a expressão é de Joaquim Barbosa --, o presidente da CNI anuncia uma fórmula para ultrapassar a "atual turbulência." Fala em "estreita observância da Construção" -- postura de rigidez absoluta que, não custa recordar, costuma ser flexível de tempos em tempos, como ocorreu no golpe parlamentar sem crime de responsabilidade configurado. No debate político de hoje, maio de 2017, essa proclamação destina-se a encobrir a opção por eleições indiretas, a cargo do Congresso mais corrupto da história.

Já para a maioria dos brasileiros, a CNI recomenda "trabalho e perseverança," conselhos que ganham um novo sabor como referência a jornada intermitente, uma dos itens especialmente grotescos da reforma trabalhista. 

Desse modo, com gestos autoritários e palavreado vazio, lideranças do empresariado brasileiro confirmam, nestes dias, um de seus mais nocivos traços de comportamento -- a incapacidade de oferecer respostas de conjunto para as necessidades do país e sua vocação para aliar-se a interesses que ajudam a enfraquecer sua posição na economia e na vida social.

O colapso em praça pública do governo Temer e seu programa de reformas abre uma oportunidade preciosa para a sociedade brasileira -- inclusive para o empresariado industrial -- discutir os rumos do desenvolvimento do país e questionar decisões que apenas favorecem o capital financeiro e seus clientes endinheirados. Num país onde a indústria tem sido vítima histórica de um processo de esvaziamento trágico, no qual os benefícios ao setor financeiro cumprem um lugar essencial, as reformas de Temer-Meirelles são um projeto de genocídio assumido e sem remédio. A crise política, obviamente, abre uma oportunidade para se debater o rumo atual das coisas na economia. Mas não.

Os manifestos do dia demonstram a preferência suicida por participar de um jogo que prejudica um desenvolvimento equilibrado do país -- dentro dos moldes do sistema capitalista --, seja do ponto de vista da indústria, seja da população que trabalha noite e dia para pagar as contas no fim do mês.

Num de seus pensamentos mais conhecidos, o professor Sérgio Buarque de Hollanda costumava dizer que o brasileiro sente-se um estranho em sua própria terra. É provável que não estivesse se referindo ao homem da rua, ao cidadão que defende sua cultura e o futuro da família. Mas o diagnóstico cabe à perfeição na postura de uma elite que, pelo temor de aproximar-se da maioria da população, é capaz de prejudicar seus próprios interesses.

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