terça-feira, 23 de maio de 2017

Seletividade e oportunismo: para os amigos tudo, para os inimigos a lei

Seletividade e oportunismo: para os amigos tudo, para os inimigos a lei
       Foto: Reprodução Agência Brasil


Algumas máximas já se popularizaram no vocabulário do mundo da política, tais como: “os fins justificam os meios” e “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”. Não importa o espectro político, as duas máximas são de utilização corrente entre os ditos homens públicos brasileiros.

Não entendo que deva ser assim, pois se começarmos a entender esse tipo de atitude como natural e “do jogo”, não vejo alternativa que não seja estarmos naturalizando a barbárie e o vale tudo, para se alcançar e se manter no poder.

Que o momento político brasileiro elevou a temperatura e exacerbou as diferenças ideológicas, isso é real e inquestionável. O modus operandi seletivo e autoritário do juiz e dos procuradores responsáveis pela Operação Lava Jato tem aviltado, a olhos nus, diariamente, a Constituição da República brasileira. Como operadores do Direito e principais responsáveis por defenderem o equilíbrio social previsto no Estado Democrático de Direito, os homens que conduzem a Lava Jato são responsáveis diretos pelo ensaio de barbárie que estamos vivenciando.

Por outro lado, a seletividade que explicitamente protege um lado e criminaliza permanente e patologicamente o outro, não pode se transformar em salvo conduto para que o lado criminalizado desrespeite o Estado de Direito. Vivemos em momento combalido de nossa jovem democracia, mas é a democracia que temos, e ruim com ela, pior seria sem ela. Não existe democracia concluída, desde os gregos, ela vem sendo aperfeiçoada no tempo e no espaço pelos povos, cabe, portanto, aos brasileiros, aperfeiçoar a sua democracia sem, contudo, transgredi-la e aviltá-la.

A democracia brasileira tem que pertencer ao povo brasileiro, não à sua plutocracia. Cabe ao povo tomar da plutocracia os rumos e os ditames de sua democracia. Porém, isso só se faz jogando o jogo democrático, estabelecendo regras que ampliem a participação popular e a transformem em real instrumento de defesa da maioria.

Entretanto, a identificação ideológica e a visão de mundo diferente, aliás, situação salutar em uma democracia ampliada, não pode ser instrumento de desonestidade ética e moral. Desde o processo do chamado “mensalão” que o Brasil vem convivendo cotidianamente com o oportunismo ético e moral tanto dos sujeitos políticos quanto da própria sociedade. Para os amigos tudo, para os inimigos, os rigores da lei.

O mote inicial deste texto, evidentemente, foi a última delação do dono da JBS e que vem abalando o mundo político brasileiro. Sem sombra de dúvidas os fatos que vieram a tona com a delação e que foram imputados a Michel Temer e ao senador e candidato derrotado a presidente, Aécio Neves, são extremamente graves. Diferente das delações de Curitiba – negociada nas masmorras do doutor Moro – eivadas de convicções e destituídas de provas cabais, as que foram fruto da delação da JBS vieram acompanhadas de provas. 

Mas é justamente nas ditas provas que mora o perigo do oportunismo moral seletivo. Se em momentos anteriores que envolveram aliados, coube o argumento de defesa e respeito ao devido processo legal e ao justo e ampliado direito de defesa, não vejo, nesse momento, porque não agir com a mesma métrica. Até onde sabemos o conteúdo das denúncias e da investigação ainda não são conhecidos e sequer há processo. Seja qual for a gravidade das acusações que venham a ser formalizadas, não faz parte do repertório democrático a crucificação pública de indivíduos (seja ele quem for) sem que o processo seja devidamente instaurado e concluído. Não é corrompendo a Constituição que vamos combater e vencer a corrupção. A motivação de expectativa por parte de uma opinião pública sedenta por justiçamento, não pode ser naturalizado e justificado no seio da sociedade, caso contrário, estaríamos caminhando para o vale tudo, só compreendido em situação de barbárie. 

A divulgação dos áudios gravados envolvendo Michel Temer (por mais que não se possa negar sua gravidade) é muito próximo dos que envolveram o ex-presidente Lula e Dilma Roussef. São palavras ao vento, que servem a interpretações diversas (a depender da motivação ideológica de cada um) e que em nada contribuem para aumentar o nível do debate político no país.

Na sanha de condenar Michel Temer (e o que não faltam são motivos) não podemos nos transformar em meros justiceiros. Em episódios como esse, a sociedade brasileira está perdendo uma grande oportunidade de questionar fatos que ficaram evidenciados com o episódio, mas que foram completamente tangenciados. Refiro-me ao Ato de ofício ou/e prevaricação cometido por Temer, por exemplo. Que tipo de servidor público (e essa deveria ser a verdadeira função de um presidente) se encontra de maneira privada, em um espaço público (seu gabinete) com um empresário (assumidamente corruptor) e trata de conversa nada republicana, como se estivesse em um botequim?

Esse é o retrato de como a plutocracia exerce o poder no Brasil. Isso é pior do que qualquer caixa dois (não que o caixa dois não seja algo condenável). Onde estava o interesse do povo brasileiro na conversa entre Temer e Joesley? Onde está a transparência tão necessária ao exercício de um cargo público? A reunião com o empresário foi registrada na agenda do presidente? Seu conteúdo foi divulgado ou acompanhado por outros agentes públicos? Essas são as verdadeiras questões que devem revoltar o povo brasileiro. Saindo Temer, entrando qualquer outro, que garantia temos que essa prática vai mudar? Ela é estrutural e está presente desde sempre na vida política brasileira (é só estudar História).

Portanto, aqueles que estão vibrando com o fato do Supremo desrespeitar a Constituição e determinar o afastamento de Aécio Neves do cargo de Senador, não têm noção nenhuma do que isso pode representar em termos reais. Montesquieu já nos ensinou o quanto é necessário para o equilíbrio de uma sociedade que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário respeitem a autonomia de cada um. Ao povo cabe ficar entre os três poderes cumprindo uma função de algodão entre os cristais. Retirar Aécio do cargo cabia exclusivamente ao próprio Senado. Se não podemos confiar no Senado para cumprir essa função, vamos às ruas fazer valer a democracia e exigir dos nossos representantes que representem a nossa vontade. Não é papel da justiça pensar e agir como a política. Não é papel da justiça (por mais impopular que essa afirmativa seja) agir tentando agradar os anseios da opinião pública. Essa função cabe, exclusivamente, à política.

A reflexão que fica disso tudo é que por mais que possa parecer paradoxal, o problema político do Brasil (o que inclui a questão da corrupção) só pode ser resolvido por mais política. Só a política (aqui contando com a ampla participação popular), tem os instrumentos para sua própria defesa e sobrevivência. Só a política pode extirpar, do seio da sociedade, aqueles que consideramos os maus políticos. Mas, para alcançarmos isso, não podemos agir de maneira seletiva e oportunista no campo ético e moral. Pois, como diz um também popular ditado: o pau que dá em Chico deve dar em Francisco ou vice versa.

Eduardo José Santos Borges é Doutor em História Social e Professor de História Moderna na Universidade do Estado da Bahia.

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