quarta-feira, 17 de maio de 2017

O doutor e o operário: um juiz titubeante e repetitivo e um ex-presidente tranquilo e incisivo

Não esperavam que esse líder popular crescia nas intenções de voto das pesquisas, e traria milhares de seguidores, que chegavam à república de Curitiba

     Luiz Alberto Gomez de Souza

Deixou-se de falar nos milhões roubados por Eduardo Cunha e por Sérgio Cabral Filho, nas propinas entrando pelos bolsos de Aécio, Alckmin ou Serra e a pandilha da Globo News passou a apregoar, durante semanas a fio, a possibilidade – sem provas materiais concretas, só suposições –, sobre a relação de Lula e esposa com um triplex raquítico e um sítio caipira. Tudo para manter, monotonamente em dia, o nome de um possível suspeito, Lula. Este afirmaria no depoimento seguinte: ”Foi o mês em que vocês trabalharam, sobretudo o Ministério Público, para trazer todo o mundo (acusados da Lava Jato) para dizer uma senha chamada Lula. Se não dissesse Lula, não valia.... Se tivesse que ressuscitar o Conde de Monte Cristo, ele viria falar aqui: ’Foi o Lula culpado’.. Eu tenho consciência do que eu fiz. E eu não fiz o que meus adversários pensam que eu fiz”.

O que não esperavam os arautos do processo era que esse líder popular crescia nas intenções de voto das pesquisas, e ia trazer com ele milhares de seguidores, que chegavam à república de Curitiba em centenas de ônibus, do Acre e de Teresina ou do Rio Grande do Sul. Não descia só, vinha respaldado por uma multidão de apoiadores. Mudou-se a data do confronto, seguiam firmes os que sustentavam Lula.

Anunciava-se na mídia oficial um embate, nessa quarta-feira 10 de maio de 2017, entre o saber jurídico de escol e as manhas primitivas e assustadas de um encurralado membro do povão. Esperava-se Lula acantonado no político e Moro olímpico no jurídico. Na verdade, o comportamento de Moro resvalou todo o tempo para o político e Lula soube esquivar-se das filigranas jurídicas.

Moro, em voz baixa (vejam as gravações de voz), adotava um tom melífluo, como o sussurrar de clérigos em confessionário. Não se acusaria Lula de ilícitos de dimensões gigantescas como daqueles que estavam na prisão ou são candidatos à mesma, mas apenas o juiz, depois de esgotar pobres argumentos sobre o triplex e sobre o sítio, repetidamente perguntaria se ele sabia de bandalheiras alheias.

Em um certo momento do embate Lula, no papel de interrogador, cutucou: “Dr. Moro,o senhor se sente responsável de a Operação Lava Jato ter destruído a indústria da construção civil neste país?” Moro, agora interrogado, implicitamente aceitando os efeitos negativos da operação, retrucou rapidamente com outra pergunta: “O senhor entende que o que prejudicou essa empresa foi a corrupção ou o combate à corrupção?” Adiante Lula denunciou: ”Todo esse processo é subordinado à Época, ao Globo e à Veja. Na verdade, o Ministério Público está prestando contas a esses órgãos da imprensa”.

Claro, numa certa justiça classista, o roubo de uma galinha por uma mulher querendo aplacar a fome de seus filhos, é mais grave do que diamantes escondidos ou uma farra em restaurantes parisienses com dinheiro público. E a possível – repito, não provada - vontade de ter um apartamento ou um pedaço de terra por um torneiro-mecânico que teve a audácia de chegar a presidente, ou a hipótese de uma operária ter a desfaçatez de querer mais um imóvel, desta vez não em São Bernardo da periferia, mas em área nobre de Guarujá, tudo soava intolerável para uma elite atrasada, traduzida pelas bocas escandalizadas de escribas a seu serviço. Dia após dia, a repetição monótona e insuportável destas duas palavras: triplex e sítio. Só isso mostrava a enorme desproporção entre as acusações pífias contra Lula e dona Marisa Letícia e a gigantesca gatunagem de milhões de dólares que a Lava Jato ia descobrindo, mas que curiosamente deixava para analisar depois. Ficava clara a raquítica denúncia, sem o respaldo de possíveis provas. Tivessem descoberto malfeitos robustos, seria mais fácil a acusação.

A posição classista arrogante ficara clara antes, na deposição do “patriarca” Emílio Odebrecht. Segundo ele, já FHC pedia seus conselhos. Com Lula, pretextando intimidade de um pretendido superior, sentia-se responsável inclusive pela “Carta ao povo brasileiro”, que Lula lançou antes de sua primeira vitória, no intuito de desfazer receios dos setores econômicos dominantes. Com um certo ar de superioridade “blasé”, afirmou ironicamente que Lula, vindo do povão, “gosta da vida boa, de uma cachacinha e tal...”. Mas não pôde deixar de dizer que o ex-presidente foi uma das pessoas mais intuitivas que encontrou, alguém que pegava as coisas rápido, um ‘animal político’”.

No fundo, o andar de cima se irritava: que audácia destes “parvenus”, levados por equívoco pelo voto popular ao palácio do Planalto e instalados inapropriadamente no Alvorada! Umpowerpoint de um promotor sedento de notoriedade, armando um organograma totalmente imaginário, sem base concreta alguma, onde Lula seria o centro articulador de uma enorme pandilha, aplainava o caminho, para a entrada em cena do juiz Moro, ator principal do reparto. Abria-se o telão para o início de um processo tragicômico. Lula não deixou passar: “O conteúdo das acusações está baseado num powerpoint mal feito”. Aliás, disse olhando em torno, “o dr. Dallagnol não está aqui para explicar aquele powerpoint. Aquilo é uma caçamba. Vale tudo.”

Sobre o triplex, causa central da inquirição: “Não existem provas como escritura ou outro documento. Se eu cometi um crime, provem que eu cometi um crime. Mas pelo amor de Deus, apresentem uma prova. Chega de diz-que-diz”. Sem nenhum documento, nada assinado, restavam apenas delações suspeitíssimas, menções vagas. Lula desocultou então uma intenção mais profunda: “O que está sendo julgado é um certo jeito de governar”.

Ainda sobre o triplex, Lula disse que, em sua única visita ao mesmo, teria descoberto quinhentos defeitos nele. Aliás, sendo uma pessoa notória, instalando-se ali, não poderia nem descer até a praia da frente, “a não ser numa segunda-feira ou numa quarta-feira de cinzas”. Sua esposa iria outra vez visitar o apartamento mas, segundo Lula, ambos coincidiram em não querer saber do mesmo.

Tentaram dizer que Lula, para safar-se, jogava sobre sua esposa falecida o interesse e as iniciativas pelo tal triplex. Uma capa indecente da Veja daquela semana, perpetrava na mídia a segunda morte de Marisa Letícia. Ricardo Noblat, em artigo despudorado de 11 de maio, com sua raiva habitual, bateria na mesma tecla. Nada disso se desprende das falas de Lula.

Para dar uma ideia do alcance da inquirição, perdendo-se em detalhes marginais sem importância, Moro questionou sobre o que Lula falara em rápida conversa, num aeroporto, com Renato Duque, ex-diretor de serviços da Petrobras entre 2003 e 2012, condenado a 40 anos de prisão em regime fechado.. Lula não se furtaria de indicar: “Perguntei a Duque: você têm contas no exterior? Ele disse: ’Eu não tenho’. Eu falei:’acabou’. Se não tem, ou se mentiu para mim, mentiu para ele mesmo”. Porém aÍ, um dia depois do depoimento, os escribas, vasculhando afoitamente suas notas, acreditaram descobrir uma contradição, somente uma, bem pequena, nas declarações de Lula. Este pedira a João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, a sua intermediação para encontrar Duque. Antes dissera desconhecer qualquer relação entre os dois. Agora, declarava que Vaccari tinha com Duque “mais relação de amizade do que eu, que não tinha nenhuma”. Manchete em O Globo de 12 de maio: “Lula se contradiz”. Afinal, questiona Moro, em português capenga: “Que tipo de relação o senhor tinha conhecimento que eles tinham?” Responde Lula: “Ah, não sei doutor. Não sei. O Vaccari está preso, pode perguntar para o Vaccari. O Duque está preso, pode perguntar para o Duque”. Trocando em miúdos, Lula indicava que isso não tinha importância alguma para este depoimento. Mas vai adiante dizer: “Relação de amizade é uma coisa e relação é outra. Eu posso sair daqui dizendo que conheci o doutor Moro, que tenho relação com ele. Na verdade não tenho”. Também perguntado por um documento de compra do triplex, rasurado e sem assinatura, que teria sido retirado de seu apartamento, devolveu: “Perguntem a quem o descobriu!”. Sobre caixas encontradas com dizeres “praia” ou “sítio”, deu a mesma resposta. Sutilmente, mas sem se comprometer, evitando ser acusado de lançar denúncias sem provas contra terceiros, deixou no ar a suspeita de que muito do material recolhido poderia, quem sabe, ter sido plantado.

E Lula, imbatível em debates e de uma perspicácia incrível, foi mudando totalmente a correlação de forças. Íamos tendo, de um lado um juiz crescentemente inseguro, escudando-se atrás de um computador e de um monte de pastas, insistindo reiteradamente que não tinha nada contra o inquirido, que ele tratava polidamente de ex-presidente ; do outro um Lula tranquilo, uma perna descansando sobre a outra, olhar fixo sem demonstração de sentimentos, como um hábil jogador de pôquer. Era o velho Lula líder sindical astuto, das mesas de negociações com o patronato, sabendo tirar vantagem de qualquer passo em falso do oponente. 

E no fecho de cinco horas de depoimento, respondendo calmamente a perguntas repetitivas (especialmente no tocante ao triplex, matéria central da inquirição), saiu seguro e confiante, deixando para trás Moro e sua equipe indecisos sobre o que fazer a continuação. Logo, a mídia oficial pescaria do depoimento apenas umas poucas informações que mais lhe interessariam, como a tal de contradição insignificante, dando a menor notícia possível sobre o que dissera Lula. Tivesse ele perdido as estribeiras ou entrado em contradições realmente relevantes, não teriam deixado passar a ocasião para desacreditar o depoente. Foram então voltar-se, imediatamente, dia 12, para as delações de João Santana e de Mônica Moura que, sem provas, indicavam que Dilma e Lula, “por baixo do pano ... sabiam da origem clandestina da caixa de campanha”. Dilma logo declararia que os dois marqueteiros, com dólares abarrotando contas no exterior, prestaram um falso testemunho e faltaram com a verdade. Apesar do estardalhaço da mídia, ficavam palavras de uns contra as de outros. E os que precisam de mais declarações – não necessariamente provas -, começam a sonhar com uma possível delação de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda. Tudo indica afinal que, até o momento, as provas são inexpressivas ou inexistentes.

Antônio Silva Jardim, um dos maiores processualistas, professor de Direito Processual da Uerj, que apoiara a Lava Jato, mostrou indignação pela condução de Moro no ato processual: “o presidente Lula não está tendo direito a um processo penal justo”.

Mas o que ficou como desfecho foi o que Lula declarou com certa solenidade, e que repetiria mais tarde para o público que o esperava lá fora: “Depois de tudo o que está acontecendo, eu to dizendo em alto e bom som que vou querer ser candidato à Presidência da República outra vez”.


Créditos da foto: .

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