quarta-feira, 7 de junho de 2017

Advogado do diabo em favor da ‘financeirização’


Fernando Nogueira da Costa
http://brasildebate.com.br/

Os investimentos financeiros dos rentistas – ‘gente do mal’, segundo os maniqueístas – são necessários como passivos carregadores dos empréstimos nos ativos bancários. A elevação destes gera renda e emprego. Sua queda provoca depressão

Aqui, atuarei como advogado do diabo de uma dama mal afamada perante os religiosos, difamada por ateus, e mal-amada por muitos que usufruem – ou não, talvez por isso mesmo – de seus encantos: a “financeirização”.

A usura é uma bruxa condenada desde o século XIII, quando a difusão da economia monetária ameaçava os velhos valores cristãos. Um sistema econômico complexo – o capitalismo – estava prestes a emergir plenamente séculos adiante. Para interagir seus componentes necessitava, além de novas técnicas, do uso massivo de práticas condenadas desde sempre pela santa (e rica) Igreja.

Uma luta encarniçada, assinalada por proibições religiosas articuladas a valores morais e mentalidades retrógradas, tinha por objetivo a legitimação do que se considerava “lucro lícito”, obtido a partir da submissão dos trabalhadores à nova ordem que iniciava seu longo parto. Crentes distinguiam “a legítima exploração direta do trabalho alheio” da “usura ilícita”.

O asceticismo no cristianismo e em todas as outras grandes religiões – judaísmo e islamismo –, passou a designar um conjunto de práticas austeras, comportamentos disciplinados e prevenções morais prescritos aos fiéis, tendo em vista a realização de desígnios divinos e leis sagradas. Ascese significa dedicação ao exercício das mais altas virtudes tal como a exigência de perfeição ética do protestantismo, nos primórdios do capitalismo, quando ainda não havia se constituído uma economia de endividamento.

Sem crédito massivo, era o caso de se fazer “poupança” ou ter parcimônia, segundo a sabedoria convencional econômica. Até hoje esta é divulgada como uma virtude moral. Abstém-se do consumo presente em nome da promessa do paradisíaco “reino dos céus”, ou seja, maior consumo futuro. Choca-se com o consumismo presente no mundo.

O judaísmo era mantenedor daquele dualismo universal primitivo entre moral de grupo e moral com referência a estranhos. Permitia receber juros destes últimos – católicos, por exemplo –, coisa que não se fazia com os irmãos de religião e com pessoas afins.

A crítica religiosa à cobrança de acréscimos financeiros ou juros tornou-se também um dos pontos centrais, erigindo-se em princípio jurídico, das práticas financeiras islâmicas. Estas criticam a cobrança dos juros e propõem alternativas a ela, tais como parcerias ou associações econômicas com compartilhamento de riscos.

A religião islâmica condena os lucros gerados, exclusivamente, pelas finanças. O Corão ensina que, apesar de suas semelhanças, os lucros gerados pelo comércio são fundamentalmente diferentes daqueles gerados pelos empréstimos, mesmo porque o comércio era a profissão exercida pelo profeta Maomé entre 571-632 d.C. Sem contestar o princípio da remuneração do dinheiro emprestado, a tradição islâmica opõe-se ao aspecto “fixo e pré-determinado” dos juros no que se refere à equidade, já que ele implicaria a exploração do devedor. O Islã advoga a distribuição equitativa de riscos e benefícios entre “sócios” em vez de credores e devedores.

Todas essas crenças medievais persistem até hoje, inclusive entre ateus materialistas. Infelizmente, muitos destes aderiram ao mesmo preconceito. Onde a lei ou os escrúpulos de consciência impedem emprestar dinheiro a juros, o capital pertencente a pessoas não engajadas no comércio está perdido, para fins produtivos. Então, só pode ser empregado produtivamente por um subterfúgio. A indústria fica assim limitada ao capital dos empresários. Estes podem tomar emprestado somente de pessoas não obrigadas às mesmas leis ou à mesma religião que eles. Em países católicos ou muçulmanos, é comum os banqueiros serem hindus, armênios ou judeus.

Juros, conceitualmente, não devem ser vistos como algo pecaminoso, mas apenas como o pagamento de um prêmio pela possibilidade de se dispor de capital de terceiros que proporciona lucro. O mutuante tem um custo de oportunidade a ser remunerado pelo mutuário, que assina um contrato mútuo por livre vontade. O risco do devedor é o rendimento esperado não se confirmar. O risco do credor compartilha este desapontamento e mais a possibilidade de o colateral do empréstimo perder valor de mercado. Em crises sistêmicas as garantias têm menores cotações.

Suponha que um capitalista compre ativo por US$ 100 mil: se ele passar a valer US$ 110 mil, ele lucrou 10%. Suponha que ele tenha tomado emprestado US$ 90 mil dos US$ 100 mil que usou para a compra do ativo: se a cotação do ativo, de fato, elevou-se para US$ 110 mil (sem o desconto de juros), ele terá duplicado o capital próprio com rentabilidade patrimonial de 100%! Este é o segredo dos negócios capitalistas: trabalhar com capital de terceiros!

Ora, a alavancagem financeira gera uma economia de maior escala nos negócios. É viável com taxa de juro que não se aproprie de toda a rentabilidade acrescida com o uso de capital de terceiros.

Por sua vez, empréstimos são lastreados por haveres financeiros. Suas concessões multiplicam não só renda e empregos, como também os depósitos a serem captados para lastrear futuros créditos. Por exemplo, na economia brasileira, em dezembro de 2002, a relação Crédito / PIB era 21,8% do PIB com saldo de R$ 378,3 bilhões e a relação Dívida Mobiliária Federal / PIB era 60,6%. Logo, o Financiamento Total / PIB era 82,4%. Em dezembro de 2014 (fim da Era Social-Desenvolvimentista), essas relações se alteraram para, respectivamente, 55%, 40% e 95%.

Em abril de 2017, com a volta da Velha Matriz Neoliberal, o saldo de empréstimos bancários estava em R$ 3,072 trilhões e a relação crédito / PIB tinha caído para 48,4%. A dívida mobiliária federal fora do Banco Central de R$ 3,123 trilhões tinha elevado para 49,2% do PIB. O financiamento total atingiu R$ 6,195 trilhões ou 97,6% do PIB.

O M2, composto de M1 (meios de pagamentos), depósitos de poupança (R$ 665 bilhões) e títulos privados(R$ 1.368 bilhões), atingia R$ 2,343 trilhões. Logo, o funding total (M4) de R$ 6,270 trilhões ou 99% do PIB se completava com M3 (M2 e quotas de fundos de renda fixa em R$ 2,939 trilhões), além de títulos públicos que lastreavam operações compromissadas (R$ 142 bilhões) e títulos públicos de detentores não financeiros. O déficit do balanço de transações correntes (“poupança externa”, sic) foi de US$ 19,8 bilhões ou 1,06% do PIB.

Em outras palavras, os investimentos financeiros dos “rentistas” – “gente do mal” segundo os maniqueístas – são necessários como passivos carregadores dos empréstimos nos ativos bancários. A elevação destes gera renda e emprego. Sua queda provoca depressão.

A abertura de contas bancárias, que saíram de 88 milhões em 2002 para 223 milhões em 2016, segundo o FGC, deu acesso popular à cidadania financeira. Nesta última data, existiam 148 milhões contas de depósitos de poupança. Considerando as 59,4 milhões com saldo acima de R$ 100,00, cujo saldo médio era R$ 10.275,25, constituíam o maior funding do sistema financeiro nacional: R$ 610 bilhões.

Considerando os R$ 3,5 trilhões em administração de recursos de terceiros, segundo a ANBIMA, como funding propiciado por investidores institucionais, cabe ressaltar que o capital de origem trabalhista predominava em abril de 2017: fundos de pensão com 38% (EFPC públicas 6%; EFPC privadas 9%; Seguradoras, 3%; EAPC, 20%); varejo tradicional, 7%; varejo de alta renda, 9%; totalizando 54%. Os “capitalistas” teriam: Pessoas Jurídicas (Capitalização, Corporate e Middle Market): 15%; Private Banking, 15%; Poder Público, RPPS, FIF, Estrangeiros e Outros: 16%.

Os trabalhadores que ganham acima do teto do INSS (R$ 5.531,31) necessitam ser rentistas para manter o padrão de vida durante a longa fase inativa de aposentadoria. Assim, seria um erro político típico da esquerda extremista assustar os 10 milhões de rentistas do varejo tradicional e de alta renda com a ameaça de quebra de contratos financeiros (“desfinanceirização”), dada a importância do funding em títulos e valores mobiliários para lastrear as operações de crédito, inclusive as realizadas por bancos públicos. A riqueza per capita daqueles em março de 2017 era, respectivamente, R$ 50 mil e R$ 177 mil. Os “capitalistas” se concentravam no Private Banking com riqueza per capita de R$ 7,644 milhões. A desigualdade é inerente ao capitalismo em todas as fases.

Por fim, em traços largos, cabe lembrar das evidências propiciadas por Thomas Piketty no livro O Capital no Século XXI. A classe média de riqueza, praticamente, não existia antes da I Guerra Mundial, época de maior desigualdade na história mundial. Houve destruições de riquezas nas guerras, na hiperinflação alemã e na Grande Depressão. A urbanização e a massificação do Ensino Superior impulsionaram a ascensão social das castas dos sábios-universitários e dos trabalhadores qualificados e sindicalizados. A aliança destes deu a social-democracia europeia e o social-desenvolvimento brasileiro.

Antes, predominava uma sociedade rural com riqueza em ativos imobiliários e rentismo parasitário em renda da terra. Depois, tornou-se uma sociedade urbana com menor desigualdade pelo surgimento de uma classe média, composta inclusive por operários especializados, cuja sobra de renda do trabalho acumulada sob forma de ativos financeiros – mais líquidos que os ativos imobiliários – propicia a manutenção das condições de vida durante a maior fase inativa dos seres humanos. E fontes de financiamento para alavancagem financeira. Viva a financeirização!
Crédito da foto da página inicial: Bruno Barreto (Creative Commons)/EBC
É professor titular do IE-Unicamp. Autor de “Brasil dos Bancos” (Edusp, 2012), ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007). É colunista do Brasil Debate

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