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Apontado como o “pai do pré-sal”, Guilherme Estrella, ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobras, esteve em Porto Alegre na semana passada para participar de um ato em defesa da soberania e do patrimônio nacional, na Assembleia Legislativa. O geólogo não vem poupando palavras para denunciar as mudanças que vem sendo feitas na Petrobras e no marco de exploração das reservas do pré-sal, após a derrubada do governo Dilma Rousseff. “Estão transferindo riquezas estratégicas do Brasil para empresas estrangeiras”, resume.
Em entrevista ao Sul21, Guilherme Estrella defende que as medidas tomadas pelo governo Temer, a partir do golpe de 2016, estão acabando com a produção de ciência e tecnologia, com a universidade pública, com a educação e saúde públicas. Esse processo, acrescenta, “carrega ainda a face perversa da reescravização do povo brasileiro”. Para o ex-diretor da Petrobras, não há dúvida que houve interferência externa no golpe que foi dado no Brasil: “A espionagem rolou solta, contra a Petrobras e contra a própria presidente Dilma Rousseff. Além disso, três meses depois de anunciarmos a descoberta do pré-sal, os Estados Unidos decidiram reativar a Quarta Frota no Atlântico Sul”.
Estrella vê um vício de origem na base de todos os atos do governo Temer e defende a anulação pura e simples desses atos pelo próximo governo. “Não há o que negociar. Gilberto Bercovici, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, disse que os beneficiários desses atos não são compradores, mas sim receptadores de roubo. Eles precisam ser enquadrados como receptadores. Estamos lidando com crimes lesa-pátria e com uma ditadura civil”.
Sul21: O que mudou na Petrobras e, em especial, na exploração do pré-sal após o golpe que derrubou o governo da presidente Dilma Rousseff?
Guilherme Estrella: Mudou tudo e, ao mesmo tempo, retrocedeu tudo. A Petrobras como está hoje é a Petrobras de 2002, no processo de privatização que começou nos governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso. Esse processo envolvia um projeto de longo prazo. A orientação, neste período, era para que a empresa se apequenasse, até para abrir espaço, principalmente na área de exploração e produção, para empresas estrangeiras. Essa área estava, então, restrita a uma atuação muito localizada, principalmente na bacia de Campos.
Quando o governo Lula assume em 2003, ele trocou a diretoria da companhia e interrompeu esse processo. Quando assumi, não encontrei uma empresa de petróleo, mas sim uma empresa de investimentos no setor petrolífero. São duas coisas completamente diferentes. Na sua concepção original, a Petrobras é uma empresa controlada pelo governo, que é seu acionista majoritário. Trata-se, portanto, de uma empresa controlada pelo povo brasileiro, que é representado pelo governo.
Essa definição está ligada a um projeto de desenvolvimento nacional. A Petrobras não é uma empresa privada. Ela visa, obviamente, a sustentação financeira. Em nenhum momento isso foi esquecido. Mas ela tem como missão principal participar ativamente do desenvolvimento nacional, do desenvolvimento social, científico, tecnológico, da engenharia e do conhecimento brasileiro. Como maior empresa do Brasil, ela tem um compromisso com a geração de emprego e renda, com a cultura e com tudo o que caracteriza o povo brasileiro.
Agora, a empresa novamente está se apequenando sob um argumento frágil, que é o argumento da insustentabilidade financeira. A Petrobras é uma empresa que produz dois milhões e meio de barris por dia. O valor só dessa produção de petróleo bruto é de quase 50 bilhões de dólares por ano, nos preços atuais. A empresa tem uma dívida que é grande, é verdade, mas com esses recursos que ela tem em mãos pode sentar à mesa e renegociar essa dívida e não vender seus ativos, ser esquartejada e apequenada, o que dificulta, aliás, o pagamento da dívida. Quando você vende um gasoduto, está vendendo uma renda futura. Trata-se, na verdade, de um plano para privatizar a empresa.
O que está por trás disso não é um debate econômico, mas sim ideológico, impulsionado pelos defensores do Estado mínimo e de privatizações amplas, gerais e irrestritas. Essa visão ultra-capitalista da gestão do Estado brasileiro está se espalhando em todos os setores desde o golpe de 2016, acabando com a produção de ciência e tecnologia, com a universidade pública, com a educação e saúde públicas. Esse processo carrega ainda a face perversa da reescravização do povo brasileiro. O Estado se retira, entrega tudo para a iniciativa privada ligada a interesses internacionais, prejudicando centralmente o desenvolvimento nacional e a soberania brasileira.
Sul21: Durante a sua gestão como diretor de Exploração e Produção da Petrobras ocorreu a descoberta das reservas do pré-sal. Há quem ache que essa descoberta, pelo valor das riquezas envolvidas, está na raiz dos problemas políticos que vivemos hoje. Qual sua opinião sobre isso?
Guilherme Estrella: Não há qualquer dúvida quanto a isso. Um símbolo disso é o filme do Snowden, onde aparece a fachada da Petrobras. Somos o quinto país do mundo em extensão territorial e população. Estamos entre os dois ou três países mais ricos do mundo. Temos a maior floresta perene e a maior província mineral do planeta, sem considerar os recursos ainda não descobertos. Somos um dos maiores produtores de alimentos do mundo e temos os maiores aqüíferos subterrâneos do mundo.
Apesar de toda essa riqueza, nós não tínhamos energia. Até bem pouco tempo, éramos a nona economia do mundo consumindo cerca de dois milhões de barris por dia. Isso não é nada e nos coloca no 72o. lugar no ranking do consumo de energia per capita, o que indica uma concentração de renda absurda. Consumo de energia é parâmetro de medição de qualidade de vida. Um percentual mínimo da população brasileira tem metade da riqueza nacional. Nós temos uma matriz energética equilibrada, entre combustíveis fósseis e renováveis. Além disso, temos uma contribuição muito pequena de liberação de CO2 para a atmosfera.
A descoberta do pré-sal se deu em um regime aberto à exploração de empresas estrangeiras. A Shell, em 2001, furou o pré-sal, no campo de Libras. Ela parou no sal. Nós atravessamos o sal para ver o que tinha embaixo. As nossas previsões geológicas apontavam uma possibilidade muito grande de termos petróleo. Nossa dúvida era quanto ao tamanho dos reservatórios.
Sul21: A Shell não tinha essa informação na época?
Guilherme Estrella: Não sei dizer. Seja como for, eles não foram adiante. Afinal, trata-se de uma empresa que quer lucro máximo sem correr riscos. Nós, no primeiro poço, gastamos 120 milhões de dólares e atravessamos o pré-sal. Esse investimento era um compromisso com o Brasil. Aqui cabe uma observação importante. É no fazer a operação que você aprende Na exploração e produção de petróleo, trabalhamos com muitas incertezas. A geologia carrega uma série de incertezas. A previsão geológica é, por definição, incerta, pelo menos no início dos trabalhos. Então, você tem que se propor ao risco, mas não de uma maneira irresponsável, tomando como base as oportunidades que aparecem. Você enfrenta o risco com uma visão muito concreta do premio que pode ter se aquele investimento der certo. E foi isso que aconteceu. Nós aprendemos com a própria perfuração do poço. Perfurar dois mil metros ou mais no sal não é fácil. Nós desenvolvemos, com o apoio da universidade brasileira, um projeto específico para perfurar o sal. E foi assim que descobrimos o pré-sal.
Essa foi uma decisão corajosa, mas não foi uma decisão irresponsavelmente corajosa. Ela foi baseada em toda a nossa experiência de estudos geológicos nas bacias sedimentares brasileiras. Muita gente que disse que a Petrobras teve sorte ao achar o pré-sal. Não houve sorte alguma. Foi resultado de um projeto científico e técnico de perfuração, envolvendo tecnologia de ponta e conhecimento de fronteira. A descoberta do pré-sal foi produto, também, da decisão do governo Lula de libertar a empresa dos grilhões da bacia de Campos. Essa descoberta deu ao Brasil a condição que faltava para projetarmos o desenvolvimento nacional para todo o século XXI.
O pré-sal, é importante destacar, não é importante só por causa disso. Diferentemente do óleo da bacia de Campos, ele é riquíssimo em gás, trazendo uma oportunidade ao Brasil que sempre foi dependente do gás importado da Bolívia. Além disso, o gás do pré-sal é rico em matérias primas de fertilizantes. A FAO projeta que, na década de 2020, nós seremos os maiores produtores de alimentos do planeta. E somos importadores de fertilizantes, dependentes de fornecimento externo. Ou seja, o pré-sal nos traz a possibilidade não só de segurança energética, junto com outras fontes de energia, como também de nos tornarmos praticamente autossuficientes em fertilizantes. Estamos falando, portanto, de uma riqueza absolutamente extraordinária para o Brasil.
O projeto que desenvolvemos não implica nenhum isolamento. O marco regulatório do pré-sal, que acabou sendo derrubado pelo projeto do (José) Serra no ano passado, previa a participação da Petrobras em pelo menos 30% das explorações. Ou seja, abria espaço para a participação de empresas de capital estrangeiro em até 70%. Não houve nenhuma decisão isolacionista. Mas isso não bastou. A espionagem rolou solta, contra a Petrobras e contra a própria presidente Dilma Rousseff. Além disso, três meses depois de anunciarmos a descoberta do pré-sal, os Estados Unidos decidiram reativar a Quarta Frota no Atlântico Sul.
Parece-me inegável que houve interferência externa no golpe que ocorreu no Brasil. No caso específico da Petrobras, representantes de empresas petrolíferas estrangeiras atuaram de forma desavergonhada no Congresso Nacional, numa verdadeira ofensa à cidadania brasileira. Desculpe-me a expressão, mas o Brasil está sendo transformado numa verdadeira casa de tolerância para capitais estrangeiros.
Sul21: Como avalia a disposição da sociedade em reagir a tudo isso que está ocorrendo?
Guilherme Estrella: Esse evento organizado aqui em Porto Alegre, dentro do Projeto Brasil Nação, tem o objetivo de formar um espaço de permanente reflexão sobre toda essa tragédia nacional que está acontecendo e buscarmos saídas para revertermos essa situação e, principalmente, anularmos tudo isso que foi feito. Estamos falando de contratos com cláusulas que amarram qualquer possibilidade de retorno, firmados por um governo ilegítimo, ilegal, com uma rejeição popular quase unânime, que não tem o direito de fazer o que está fazendo. Essa ilegalidade e ilegitimidade já estão sendo reconhecidas por juristas de vários países. Há um vício de origem preliminar na base de todos os atos desse governo. O próximo governo tem que se comprometer com a anulação pura e simples desses atos e partir para o confronto. Não há o que negociar. Gilberto Bercovici, professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo, disse que os beneficiários desses atos não são compradores, mas sim receptadores de roubo. Eles precisam ser enquadrados como receptadores. Estamos lidando com crimes lesa-pátria e com uma ditadura civil.
Agora, não basta fazer essa denúncia. Nós temos que ter a capacidade e a competência de mobilizar a população. Precisamos colocar as pessoas na rua pelo Brasil. Não estamos conseguindo fazer isso.
Sul21: Uma parte importante da Operação Lava Jato teve a Petrobras como alvo central de investigação. No início de dezembro, os condutores dessa operação anunciaram a devolução de R$ 600 milhões, relativos a recursos desviados em atos de corrupção. Qual sua opinião sobre a relação entre os ganhos da Lava Jato, em termos de recuperação de recursos desviados da empresa, e as perdas decorrentes das medidas que vem sendo tomadas pelo governo Temer? Qual o saldo final para o país?
Guilherme Estrella: Na minha opinião, não estamos tratando com um problema econômico-financeiro, mas sim com uma visão de sociedade e de país que, no fundo, é ideológica. O que está em jogo é a presença do Estado ou não na economia nacional, bem como a presença de empresas brasileiras. Ninguém é contra, obviamente, a investigação de casos de corrupção. Mas essas operações não podem ter como resultado a destruição de empresas brasileiras, que é o que está ocorrendo. Nós tiramos duas plataformas que estavam nos estaleiros na baía da Guanabara e mandamos para Singapura. Estamos falando de cinco mil empregos que se foram. Tudo isso está dentro de um contexto que, na minha opinião como cidadão brasileiro, prejudica o nosso país. Estão transferindo riquezas estratégicas do Brasil para empresas estrangeiras.
Sul21: O senhor vê resistência a esse processo dentro da Petrobras e no setor da engenharia nacional?
Guilherme Estrella: Não vejo muita resistência, mas o mais importante na sua pergunta está relacionado à indústria brasileira e ao empresário brasileiro. Os grandes beneficiários da política de valorização do conteúdo nacional foram o povo e os empresários brasileiros. Eu sou testemunha de que o entrosamento da Petrobras com as empresas brasileiras foi muito grande. Em todos os países hegemônicos do mundo há uma aliança entre o Estado e as empresas nacionais. Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, uma figura estranha para dizer o mínimo, proibiu a venda de uma empresa norte-americana para os chineses por considerar que ela atuava em um setor estratégico. A França, em 2013, tomou medida semelhante.
Nós temos empresas privadas brasileiras que são estratégicas para o país. Quando você destrói uma empresa destas, está destruindo também a engenharia nacional, a competência brasileira de resolver nossos problemas e projetar o nosso futuro como uma nação independente. Tomemos o exemplo da Embraer, uma empresa brasileira elogiável, mas que não tem autonomia de decisão. Ela não pode vender para países como Venezuela e Irã porque tem componentes de alto valor tecnológico que são fornecidos por empresas norte-americanas. No contrato para o fornecimento desses componentes há uma cláusula que proíbe a venda de aviões para estes países. Isso é dependência, falta de autonomia de decisão. Levando isso para a escala nacional, significa perda de soberania e a reescravização do povo brasileiro.
O Brasil estava se preparando para uma nova configuração internacional, por meio de uma aliança com países como Rússia e China, para formar um bloco geopolítico capaz de criar uma alternativa no cenário mundial. O BRICS começava a ter um peso político, financeiro e tecnológico que, em dez ou vinte anos, poderia consolidar uma bipolaridade geopolítica. Essa atuação internacional do Brasil também provocou uma reação externa. Resolveram acabar com a brincadeira. Há 30 anos, Kissinger disse que os Estados Unidos não queriam um novo Japão ao sul do Equador, referindo-se ao Brasil. Isso não é teoria da conspiração nenhuma. É a realidade.
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