quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

“Guerra” no Maracanã evidencia drama da torcida que foi expulsa dos estádios


Talvez, eles só quisessem o Mengão de volta, talvez eles só quisessem ser o que sempre foram: a maior torcida do Brasil, composta por gente pobre, preta, favelada, que construiu, com canções lindíssimas de inspiração popular, a mística das gerais do Maracanã. Eu era criança ainda e íamos ao cinema para ver o Maracanã, no CANAL 100, um jornal cinematográfico, para lá de situacionista, que elogiava os militares e o golpe, mas que trazia imagens inesquecíveis de uma torcida que contagiou e conquistou o Brasil.

Eram desdentados e descamisados, concentrados no radinho de pilha, ouvindo o Mengão perder e ganhar. Zico, Adílio e Adão jamais seriam os mesmos não fossem abraçados pela galera pobre que ia à loucura com as magias do Galinho do Quintino. O tema de abertura, que bonito é as bandeiras tremulando, nunca nos saiu da memória. Não, as imagens não vinham das numeradas, dos camarotes, não. Elas captavam a alma do povo que entrava em campo, rubro-negro, pobre e valente. O ingresso dava pra tirar num bico durante a semana, num vale do fim de semana, na fé do jogo do bicho.
O Templo do Futebol somente assim se deu a conhecer pela massa pobre e apaixonada, torcedora, enlouquecida. Negras e negros dançavam e cantavam nas gerais do Maracanã, vendo o Flamengo jogar. O Flamengo era a esperança de que a arte e o futebol-arte pudessem nos salvar da tragédia que vigia. Nas numeradas, os generais e os puxa-sacos; nas gerais, o Rio de Janeiro.
Como todos os direitos solapados, o povo foi expulso dos estádios.
Foi expulso pelo preço absurdo dos ingressos, quando não há mais Zico, não há mais Junior ou Romário, Almir, Mozer, Raul, Rondinelli e Nunes, para ficarmos na História recente, porque já foi barato ver Mestre Ziza e Domingos da Guia, Leônidas da Silva e Dida.
Hoje, os fisiculturistas do futebol e os esquemas numéricos incompreensíveis os substituíram. As torcidas organizadas, milícias formadas por jovens sem qualquer perspectiva de inserção sócio-política-cultural ou econômica, defendem outros interesses, normalmente enredadas na política de sacristia dos micro-mundos dos clubes. Nem de longe conseguem a centelha da espontaneidade, essa que faz pessoas se tornarem amigas, pais e filhos chorarem juntos na vitória ou na derrota.
No Rio de Janeiro sitiado por caveirões, a ordem democrática é dar porrada, desde Pereira Passos é assim. As comunidades não abrigam a Constituição. Invadir as casas, abordar pessoas, morrer de bala perdida, morrer sendo criança ou mulher ou velho ou homem. Uma polícia própria para os miseráveis, excepcionalmente treinada, todos os dias posa para as câmeras de TV, que fazem do BOPE os heróis dessa contemporaneidade excludente. Tudo lhes é tirado, como se houvesse uma redução do espaço, como se a cidade fosse se reduzindo sob seus pés.
O Mengão que lhe restava não mais lhe pertence também; foi aos poucos sendo tirado, foi branqueando, foi enricando nas arquibancadas, foi se tornando burguês e sofisticado.
O futebol, no Brasil, vive o paradoxo de ser um esporte de prática popular e de assistência elitista. O menino negro que arrebenta na comunidade nunca verá ao vivo seu ídolo, a menos que…
A menos que enlouquecido e furioso, bêbado e hipercinético, tente tomar na marra seu time de volta, tomar na marra seu estádio de volta, seu distintivo de volta, sua tradição e sua inspiração; se lhes era impossível compor o preço inventado arbitrariamente por uma diretoria alienada, se lhes era inalcançável os planos de sócio-torcedor, se nenhuma mídia deles se lembrou, se o time ou o clube deles se esqueceu, a ira dos excluídos ecoou nos portões do Maracanã.
Tudo errado, tudo louco, tudo fora da lei. Mas que lei? Qual lei lhes sobrou, depois de tantas mortes inúteis e estúpidas? Que lei lhes resta a cumprir, tendo de escolher entre a milícia e o BOPE? Que limites hão de respeitar, que sejam o das quatro linhas do retângulo do futebol? Quem é o menino negro que correrá para os braços de seu povo, no momento em que explodir de seus pés o gol heroico?
Ninguém chama de vândalos os policiais que invadem a comunidade.
Porque vândalos são os inconformados com a miséria, no dia em que o morro desceu e cobrou, entre o desespero e a insanidade, o lugar que lhe foi tomado, a sua geral. O Brasil do apartheid gritou de dor, de humilhação, de exclusão, de fome e de solidão.
Lá longe, depois dos muros e dos soldados, nas quatro linhas, o Mengão perdia (na verdade, empatava, mas perdia); entre bombas e tiros de balas de borracha, o povão perdia; bem que tentou entrar em campo, mas não conseguiu.
De tudo isso fica o sinal, fica o alerta, nesse jogo real da vida, em que um time que joga com doze, tem o apoio do juiz e dos bandeirinhas, tomou a bola, o cronômetro e só marca gol de mão. Destruiu o jogo, roubou emprego e comida, casa e salário, dignidade e direitos e agora, vem querendo dar lição de moral.
Cartão vermelho pra essa gente.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.

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