POR RENATO BAZAN
Além de seu papel na formulação do pedido de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, Janaína Paschoal tem pouca notoriedade nos círculos dos juristas brasileiros.
Talvez por isso tenha entrado em guerra com o Departamento de Direito Penal da USP e seu chefe, Salomão Shecaira: um desejo incontrolável de reencontrar os holofotes da imprensa.
A autora do impeachment foi em setembro a última colocada em um concurso público para vaga de Professora Titular na Universidade de São Paulo, e, inconformada, resolveu recorrer ao Twitter para chorar suas pitangas.
No microblog, foi incisiva: acusou o vencedor do concurso, Alamiro Velludo, de ter copiado as ideias de um doutorando anterior, Leandro Sarcedo, e Shecaira de ter sido conivente ou relapso.
A reação dos acusados foi imediata: Velludo negou plágio, Sarcedo disse não se sentir lesado, e Shecaira apresentou queixa-crime por difamação. O documento de acusação foi revelado nesta quinta-feira (30).
Em meio à confusão, o DCM obteve uma versão digitalizada da tese apresentada por Janaína na ocasião do concurso. Intitulada “DIREITO PENAL E RELIGIÃO: as várias interfaces de dois temas que aparentam ser estanques”, a obra de 306 páginas propõe analisar situações em que Direito e religião entram em choque.
O resultado, no entanto, é um pastiche de generalizações, acenos à direita conservadora e filosofia de boteco que raramente chega a alguma conclusão. Não à toa, foi reprovado pela banca examinadora do concurso por sua “lamentável profundidade”.
“Ela ainda tem que agradecer por ter sido aprovada na média, pelos Memoriais”, explicou a fonte que entregou o documento ao DCM. “Sinceramente, [os membros da banca] estavam a ponto de rachar [o bico] durante a defesa da tese”.
Memoriais são uma espécie de relatório final apresentado no final do trabalho contando como foi fazer a pesquisa.
O texto de Janaína consegue a proeza de ser simultaneamente maçante, com devaneios teóricos admitidos pela própria autora, e histérico, entre teorias conspiratórias do “Estado Irreligioso” prestes a ser instalado a qualquer momento.
A certa altura, diz ela:
“A intelectualidade brasileira muito se refere à liberdade religiosa, mas, a bem da verdade, propugna um Estado ateu, o que, como ocorreu em um Estado teocrático, constitui totalitarismo. (…) Os cientistas costumam se colocar em um pedestal, como se ao se dignarem a falar com ignorantes somente o fizessem na condição de ministradores de aulas.”
Esse tom ressentido com a academia brasileira acompanha cada página do trabalho. Para Janaína, o “pensamento do Estado Ateu” seria uma agenda secreta das universidades, uma trama para acabar com as religiões.
Pior ainda é o contraponto que ela encontra para ilustrar a “moderação” no trato da religião: o jurista Miguel Reale, que tentou até o fim de sua vida justificar o fascismo à brasileira.
Janaína enxerga no ultraconservador Reale “um dos maiores pensadores que este país já conheceu”, citando-o como parâmetro no que deveria ser a “experiência metafísica”.
Por dezenas de vezes, retoma obras suas e de seu filho, Miguel Reale Júnior, até mesmo em momentos nos quais os argumentos parecem ter saído de algum comício do MBL.
“A homofobia já seria crime, pois, quando alguém olha o homossexual como inferior, está, na esteira da decisão do Supremo Tribunal Federal, praticando racismo”, escreve, citando Júnior.
Há dezenas de pérolas, igualmente absurdas, salpicadas pelas páginas. Temas como a política americana, os culpados pelos atentados de 11 de Setembro e pelo surgimento da máfia, comparações entre aborto e pena de morte, o estupro corretivo, similaridades entre perseguições ao público LGBT e à polícia, a “ditadura” da medicina moderna – até mesmo argumentos anti-vacinação… Opiniões abundam.
Janaína se sente livre para soltar seus grandes insights sem oferecer dados ou estatísticas que demonstrem o que está dizendo, fiando-se apenas em argumentos de autoridades e sua inquestionável genialidade lógica.
Falsos paralelismos pululam. Em uma página, a ciência torna apenas outro conjunto arbitrário de dogmas, uma “nova religião”.
Em outra, um médico que se recusa a fazer um aborto corre o mesmo risco penal que outro que esquece a tesoura dentro do paciente.
A salada conceitual servida pela musa do impeachment, picada e revirada, serve bem ao propósito de justificar arroubos reacionários que explodem de vez em quando.
A certa altura, discutindo a importância de tratar das religiões em sala de aula, diz uma Janaína assustada:
“Não é possível afirmar com segurança que, após uma aula, em que ouve ser seu direito fundamental fazer um aborto, uma jovem grávida não vá se dirigir a uma clínica para passar pelo procedimento. Do mesmo modo, não é possível assegurar que um jovem, depois de ouvir que o indivíduo tem direito a se drogar até morrer, não vá sair de uma palestra e usar algum tipo de entorpecente, ou mesmo vendê-lo.”
A única coisa possível de se afirmar com segurança, nesse cenário, é o absurdo do estudante que ouve que “pode se drogar até morrer” e decide virar traficante. Ou da menina que, podendo ditar sobre a própria vida, escolhe não refletir sobre isso.
O objetivo de fundo do texto parece ser, a todo momento, justificar a inação do Estado diante da violência contra as minorias. “Precisamos priorizar o diálogo”, diz Janaína a cada dois parágrafos, mas basta uma situação concreta se apresentar para que o contorcionismo comece.
O combate à homofobia nas escolas seria uma ferramenta do “materialismo marxista” para padronizar os jovens e impor o ateísmo.
A legalização do casamento gay na Holanda seria a causa do aumento no número de assassinatos do público LGBT daquele país. A introdução da educação laica causaria um aumento na discriminação religiosa.
A inversão atinge patamares delirantes, especificamente, ao tratar do “estigma” contra o catolicismo:
“As religiões, em geral, restam estigmatizadas por intelectuais e formadores de opinião, em clara confusão entre Estado laico e Estado ateu. No entanto, dentre todas as religiões, o maior estigma recai sobre as cristãs e, dentre estas, sobre a religião católica, ao que me parece, em uma espécie de resposta a todos os abusos e crimes perpetrados.”
Para ela, somente as religiões africanas estariam protegidas contra esses “discursos discriminatórios, pois esse tipo de prática é considerada politicamente incorreto (sic)”. Ela argumenta que essas crenças têm o sofrimento “supervalorizado” por outros pesquisadores.
Há, por fim, uma procissão de acenos à direita conservadora embrenhados na tese, às vezes de forma sutil (frases plantadas como “o indivíduo é a minoria das minorias”, advindas do libertarianismo), às vezes de forma evidente (como os incontáveis acenos ao Projeto Escola Sem Partido).
Janaína se dá até mesmo ao trabalho de sair de sua linha argumentativa apenas para negar Karl Marx, quando pode.
Na luta contra o totalitarismo da “ideia aparentemente libertária de neutralidade”, Janaína incorre no proselitismo conservador com o qual o Brasil se acostumou, ainda que escrito de forma mais bem articulada que a dos capangas verde-amarelos.
É algo que, por mais bem aceito que seja em comícios e caminhões de som, dificilmente vai convencer os decanos da mais velha escola de Direito do país a cederem um assento à mesa.
Em sua própria tese, Janaína admite saber disso. “Escolha certa? Escolha errada? Fosse pelo certo e pelo errado, jamais se apresentaria uma tese sobre as relações entre Direito Penal e religião em uma Universidade Brasileira”, escreve.
O martírio é poético.
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