O voto e o sentimento de impotência política
por Fernando Horta
O golpe de 2016 cortou qualquer obrigação de o sistema político brasileiro ser responsivo à população. Este é o real sentido do impeachment de Dilma. Desobrigado de qualquer obrigação político-eleitoral, Temer e o Parlamento passaram a exercer um poder dissociado de qualquer tipo de controle social ou com qualquer noção de limites, sejam políticos ou jurídicos. Como não chegou ao poder fazendo acordos com a maior parte da população – como numa democracia se faria – Temer não tem qualquer constrangimento moral ou de ordem política às suas ações. O constrangimento midiático, das “pesquisas de opinião” que tanto fustigaram Dilma, simplesmente sumiram e o constrangimento do mercado, com as famosas avaliações de crédito, feitas por consultorias internacionais, também.
Ao separar-se de qualquer controle social, Temer reforça um movimento mundial que vai contra toda a teoria política assentada do século XX. No auge das discussões da Guerra Fria, o argumento do “mundo livre” era exatamente a força da “democracia”. Um sistema responsivo, em que a participação – ainda que fosse mínima e apenas no momento do voto – demonstrava o “poder do povo” e se diferenciava cabalmente das “ditaduras comunistas”, cuja característica era exatamente governos não responsivos. Dito de outra forma, o argumento era que no mundo capitalista o poder efetivamente estava nas mãos do cidadão e nos sistemas “totalitários” o governante não era escolhido por via democrática e, portanto, não tinha qualquer necessidade de responder aos mecanismos de controle. Era o poder bruto.
É claro que esta dicotomia, ditadura x liberdade, que emulava a dicotomia comunismo x capitalismo, nunca existiu de fato. Desde a década de 60, senão antes, vários cientistas mostravam que mesmo dentro de uma democracia precária – aquela em que o eleitor apenas vota – havia inúmeras formas de retirar deste eleitor o poder. Desde formas sutis de propaganda eleitoral, que faziam com que os eleitores votassem em candidatos que não lhes ofereciam soluções para seus problemas, até mudanças na forma e na estrutura das votações que diminuíam o poder relativo das massas. Nos EUA, por exemplo, Trump perdeu para Clinton no voto popular, contudo, através de regras e estruturas de votação, o voto popular não é o que decide a eleição. Hillary teve 48% dos votos (mais de 65,9 milhões) enquanto Trump apenas 46% (algo em torno de 63 milhões).
Por outro lado, os sistemas comunistas também não eram “totalitários”, como até hoje algumas pessoas defendem no Brasil. O conceito de totalitarismo, que envolvia uma sociedade em que o Estado estaria presente e regulando todas as formas de inserção social e política do cidadão, simplesmente não existe. Não há como um Estado ter este tipo de controle sobre qualquer sociedade. As formas de resistência social e a falta de capacidade material e de informação do Estado mostram que a ideia de “totalitarismo” é não apenas irreal, como foi criada exclusivamente como arma retórica da Guerra Fria. É mais provável que hoje o Google e o Facebook tenham mais controle sobre sua vida do que os regimes comunistas na do século XX. Não há informação sua, hoje, que não esteja disponível para uso de formas que você nem consegue imaginar por grupos e interesses que você também não tem ciência. Se era verdade que nos regimes comunistas não se escolhia o líder máximo pelo voto, estes regimes eram muito mais responsivos nos níveis locais. Nos governos que mais impactam a vida do cidadão – os governos do seu bairro e da sua cidade – os sistemas comunistas tinham criado soluções bastante interessantes para promover o processo de participação.
A pergunta é: a vontade da população era mais respeitada nos regimes capitalista ou comunista? E não era uma resposta fácil. Fórmulas e conceitos eram pensados para provar que sim ou que não. Adjetivos à democracia passavam a fazer parte dos conceitos: democracia liberal, democracia representativa, democracia participativa, democracia social? Como garantir que a vontade do cidadão fosse refletida com maior efetividade? Em 1961, Robert Dahl publicava “Who governs?”, um estudo sobre poder e representação em uma cidade dos EUA, terminando por mostrar empiricamente que a ideia de democracia não advinha necessariamente do processo de voto. No fundo, argumentava Dahl, participação é muito mais do que simplesmente o voto e não se podia tomar um pelo outro.
Poderia existir democracia sem voto? Sim. E também podem existir ditaduras com voto. Imaginem um sistema em que a cada quatro anos todos os cidadãos fossem colocados num sorteio de onde sairiam aleatoriamente todos os representantes do congresso (senadores e deputados), do executivo e judiciário. Qualquer um poderia efetivamente ser sorteado senador ou deputado, presidente ou juiz. A possibilidade de se chegar a cargos de poder seria rigorosamente igual a qualquer um (o que hoje não é) e, se respeitado o calendário de votação, teríamos alternância de poder e etc. Da mesma forma, durante o regime militar brasileiro tínhamos votações, mas hoje se sabe que o sistema de poder era não-responsivo. Além das indicações que os militares faziam na política (desde capitais e estados passando até a indicarem 1/3 do senado), o controle que exerciam sobre a atividade política (banindo opositores, cassando direitos políticos, alterando regras de propaganda e calendários de votação) tornava o voto ainda mais desimportante. Ainda menos capaz de se fazer representar.
Na década de 90, Robert Putnam publicava um livro chamado “Comunidade e Democracia: a experiência da Itália Moderna” em que ele compara os governos do Norte e do Sul da península para descobrir quais práticas redundavam em sistemas mais responsivos e quais não. O resultado é surpreendente. A democracia não é garantida pelas instituições. Você pode ter imprensa livre, partidos livres, votação, judiciário independente e tudo mais que quiser colocar e, ainda assim, não ter uma democracia. Simplesmente porque as instituições encontram formas de burlar a necessidade de serem responsivas. A “imprensa livre” pode ser dominada por poucas corporações e refletir o interesse econômico delas, os partidos podem ter regras de acesso aos cargos que afastam a grande massa dos seus próprios filiados do exercício real de poder, os sistemas de sufrágio podem ser organizados de tal forma que o voto popular seja minorado em seus efeitos e o judiciário pode invocar regras e princípios hermenêuticos que não estejam em consonância com as ideias de máxima representação e de igualdade sociais e política plenas.
Enxergou o Brasil aí? Viu que temos as “instituições funcionando” sem estarem com a lógica determinada a buscar a maior participação e responsividade? Viu que as instituições brasileiras, todas, estão trabalhando com a ideia de afastar a população e seus anseios do exercício real de poder? Percebeu que é este o motivo de estarmos todos nos sentindo incapazes politicamente, como quem berra dentro de uma sala fechada sem mais ninguém a ouvir?
Putnam argumentava que nenhuma instituição garante a democracia, mas que locais onde existissem uma maior “cultura democrática”, “cultura participativa”, tinham maiores chances de desenvolverem sistemas com maior resposta ao cidadão. Regiões em que as pessoas se acostumavam se associarem em clubes de livro, associações esportivas, clubes comerciais, associações de bairro e etc., acabavam por criar instituições mais transparentes e que eram mais representativas. Em suma, o cidadão participando é que garante a democracia. E participação não é a mesma coisa que voto.
Agora olhe para o mundo e veja os níveis de abstenção nas eleições. Nos EUA, apenas 60% dos eleitores realmente vota, na Europa a média é um pouco menor que isto. No Brasil, entre votos brancos, nulos e abstenções, chegamos a quase 30% nos últimos pleitos. Com uma campanha feroz para fazer parecer que política é algo criminoso e afirmando que nada muda, apesar dos votos, fica claro que o objetivo é afastar as pessoas do poder. No Congresso tramitaram propostas de mudança nas votações e no sistema eleitoral cujo objetivo era REDUZIR a efetiva capacidade de participação. Agora, ameaçam com o sistema parlamentarista, que por si só não quer dizer maior ou menor participação, mas que colocado “à moda brasileira” representa sim o alijamento completo da população.
A solução para o problema brasileiro (e mundial) é o contrário do que liberais e fascistas hoje defendem. Não é menos política, não é menos participação. Os liberais querem a todo custo tornar o voto facultativo e os fascistas acabar com todo voto contrário a si. Nenhuma das opções aumenta efetivamente a resposta do sistema à sociedade, especialmente dentro da história brasileira. Voto facultativo apenas nos transformará numa sociedade de brancos, urbanos e ricos votantes e o controle do judiciário sobre a política (dizendo quem pode ou não se candidatar e em que condições) é ainda mais venal. Não há democracia quando um grupo de pessoas togadas decide quem pode ou não concorrer, mais ainda quando esta decisão se dá de formas estranhas e esdrúxulas, como hoje ocorre no Brasil. Cassio Cunha Lima, por exemplo, só é senador por liminar de Gilmar Mendes, que passou por cima da absurda Lei da ficha Limpa. Agora, o Ministério Público quer decidir quem pode ou não se candidatar, e nosso sistema político ainda é sujeito a inúmeras outras regras de proporcionalidade que fazem com que políticos com menos votos se elejam no lugar de outros mais votados.
Há lógica por trás destas medidas. Todas elas podem ser sustentadas por argumentos mais ou menos racionais. A pergunta é: a lógica é inclusiva ou exclusiva? O objetivo é aumentar o efetivo poder do cidadão ou reduzir e tentar burlá-lo? No meu entendimento, o objetivo é diminuir a participação efetiva, seja tirando candidatos “indesejáveis”, seja criando regras para aumentar o poder financeiro (através dos “puxadores de votos”, por exemplo) em comparação com o voto.
Estamos longe de termos uma cultura política forte no Brasil. O golpe deu certo porque recolocou em prática um sistema histórico no Brasil: governo não responsivo, sem controle da população fazendo o que bem entende. Foi assim na República Velha, foi assim na ditadura varguista, foi assim no período militar e agora voltou. De fato, a frustração é de saber que o Brasil convive bem com o autoritarismo em todas as instâncias, desde o marido que manda na mulher, até o pai que espanca o filho, passando pelo PM que manda no bairro chegando a um vice-presidente sem voto e um congresso sem vergonha na cara que desmontam o país.
A solução é mais participação. A solução é organização política. A solução passa por levarmos a política para todos os aspectos da vida. Da reunião de condomínio à reunião de pais na escola. Da escolha do presidente do clube de futebol à famosa “democracia corintiana”. Lutemos por mais política e nunca por menos.
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