segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Carlos Marighella: o negro baiano que incendiou o mundo

A história do comunista, poeta e homem solidário que deixou um legado de luta e resistência para o povo brasileiro

Jamile Araújo
Brasil de Fato | Salvador (BA)


Marighella conversando com trabalhador da linha férrea na hora do almoço. / Reprodução internet
Nessa edição zero, o Brasil de Fato Bahia homenageia Carlos Marighella, um negro baiano que dedicou a vida para lutar pela liberdade e por uma nova sociedade. Um homem a frente do seu tempo, que deixou um legado de luta e resistência. No último dia 5 de dezembro completou-se 106 anos de seu nascimento.. Entrevistamos seu filho, Carlos Augusto Marighella, que contou um pouco do Marighella filho, irmão e pai amável, solidário, aluno brilhante, poeta e amante das manifestações populares.

A ORIGEM DE MARIGHELLA
Carlos Marighella era uma pessoa comum, uma pessoa do povo. A nossa família é fruto da união de um operário italiano, Augusto Marighella, que veio para Salvador e trabalhou como mecânico, e uma negra hauçá vinda de Santo Amaro, Maria Rita do Nascimento. Eles casaram em Salvador, formando uma família com oito filhos. Moravam na Baixa dos Sapateiros, na Rua Barão do Desterro, onde meu avô tinha uma oficina. Meu pai foi o filho mais velho deles.
Quando meu avô chegava de noite em casa, trazia o jornal que meu pai gostava de ler. Trazia uma vela, porque Salvador não tinha luz à noite. Meu pai dizia que aguardava ansiosamente, porque era o momento que tinha pra ler e tomar conhecimento das noticias.
UM ALUNO BRILHANTE
Vó Mocinha, uma das minhas avós "postiças", contava que, desde pequeno, meu pai demonstrou ser uma pessoa especial e inteligente. Ela dizia que quando o levava para a escola, ele ia segurando a mão dela e lendo os letreiros de ônibus, anúncios em postes, e parava na frente da banca de revistas e lia os jornais.
Essa foi a primeira grande marca de meu pai. A ponto de, na escola secundária, responder a prova de física em versos e isso foi uma coisa inusitada. A prova ficou exposta no Colégio Central, como uma homenagem ao "aluno brilhante".
“Doutor, a sério falo, me permita,

Em versos rabiscar a prova escrita.

Espelho é a superfície que produz,

Quando polida, a reflexão da luz.

Há nos espelhos a considerar

Dois casos, quando a imagem se formar.”

(Trecho da prova de Física respondida em versos em 1923)
DE ESTUDANTE DE ENGENHARIA AO PARTIDO COMUNISTA

Como estudante na Escola de Engenharia da Bahia, Marighella foi correspondente da Revista Brasileira de Matemática, uma revista cientifica que discutia problemas de matemática.

A Escola de Engenharia, recentemente, me chamou porque selecionaram os 100 engenheiros mais importantes da Escola. Marighella consta como um dos nomes mais brilhantes, por seu desempenho e suas notas. Ele foi o único desses 100 que não se formou.

Um dia lhe perguntam: “Mas Marighella por que você, com um futuro tão brilhante, abandonou essa carreira, que lhe daria muita glória?”. Ele disse: “Abandonei a carreira para me dedicar à atividade politica, porque não via honra em ser engenheiro num país em que as crianças precisam trabalhar para comer”.
O Brasil tinha mais da metade da população analfabeta. E foi isso, provavelmente, que fez Marighella ingressar no partido comunista.Ele sempre teve esse espirito libertário, essa vontade transformadora. Entrou no PCB - Partido Comunista do Brasil e saiu da Bahia para ser o “Guerrilheiro que incendiou o mundo”. E dedicou toda a sua vida a luta politica a partir daí.
DEFENSOR DA LIBERDADE E INIMIGO DA DITADURA

Em 1932, foi preso por um poema sarcástico sobre o governador Juracy Magalhães, um interventor nomeado por Getúlio. Ainda na ditadura Vargas, foi preso novamente, passando nove anos. Saiu da prisão e se elegeu deputado Constituinte. Foi eleito em 1946 e em 1947 o PCB foi cassado, com o acirramento da disputa entre EUA e URSS. Era como uma democracia de “araque”.

Então, Marighella foi para a clandestinidade até 1955, quando Juscelino foi eleito e passaram a uma semilegalidade. Nasci em 1948 e só conheci meu pai quando tinha sete anos, apesar de conviver com a família. Minha mãe não conseguia me registrar como Marighella. E a escola ficava “aporrinhando” minha mãe para mandar o documento. Fiquei até essa idade sem documento.
Veio o golpe de 64. Foi terrível para nós. Fui separado de meu pai novamente. Morava com ele no Rio de Janeiro. A polícia invadiu o apartamento que morávamos, e levou tudo, até livros e roupas. Meu pai e Clara [a esposa dele] conseguiram fugir. Ele foi preso e sua foto saiu nos jornais. Aí fui identificado como um Marighella. Fui comunicado que não poderia estudar mais na escola por ser filho de um subversivo e voltei para a Bahia.

Naquela época ser um Marighella era não poder trabalhar. Eu mesmo passei na Petrobras e fiquei um ano até que descobriram que eu era filho de Marighella e me demitiram.

Em 1969, meu pai foi assassinado em uma emboscada em um Convento em São Paulo. E muita gente dizia: “Como que ele foi ao convento, sabendo que o momento era de risco?”. Mas ele foi ao Convento porque queria tirar os padres de lá. Imaginava que estavam correndo sério risco. Ele tinha esse senso de responsabilidade e de solidariedade.
A morte dele foi comemorada pela ditadura, pois era considerado seu “inimigo nº 1”. Não pela ameaça material que representava, mas pelo exemplo. Ele foi uma pessoa que deu exemplo, se sacrificou para ser coerente com sua postura politica. Era um incentivo a luta de resistência. A ditadura temia que o exemplo se propagasse.
APRECIADOR DAS MANIFESTAÇÕES POPULARES
Apesar do estigma de subversivo e terrorista, meu pai era carinhoso, uma pessoa risonha, fazia poemas, gostava de música e carnaval. Você via na expressão dele que gostava das manifestações populares. Tem uma história do dia que foi na Mangueira e ficou extasiado com o samba. Achava impressionante um povo pobre que vivia em barracos e conseguia se reunir pra cantar e dançar. Acho que se via naquelas pessoas. Ele que veio de uma família pobre e negra.
Chegou ao Rio e viu esses mesmos pretos ali sambando, alegres. Eu acho que ele via nessa expressão de felicidade um incentivo para ele lutar. É melhor lutar com pessoas alegres do que tristes, não é? A luta era a mesma, mas ele tinha certeza que estava lutando por um povo preparado para viver a felicidade, um mundo diferente daquele que essas pessoas viviam.
O LEGADO DE MARIGHELLA

Marighella foi uma pessoa grandiosa. Ao resgatar a memória dele, estamos prestando um grande serviço. São símbolos que podem nos inspirar para realizar as transformações na sociedade, fazer do Brasil um país novo, com um novo homem e nova mulher.

A família Marighella gostaria que a casa na Baixa dos Sapateiros, que hoje está em ruínas, virasse um memorial, permitindo que todos que reconhecem e tem orgulho de Marighella tivessem esse espaço vivo.

Em um evento que debateu a importância das eleições no Brasil, uma estudante do Colégio Carlos Marighella disse que, assim como meu pai, tinha vindo de uma família negra, pobre e da periferia e que o via como uma inspiração. Ela afirmou que, seguindo os seus passos, poderia realizar os sonhos que ele não conseguiu, que também eram os sonhos dela. Isso para mim foi uma síntese do porquê devemos resgatar a memória de Marighella.

Edição: Elen Carvalho

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