do Viomundo
A Lava Jato e o projeto da direita brasileira: “apagar da história os anos Lula”
por Katarina Peixoto, de Porto Alegre, especial para o Viomundo
No dia 23 de setembro de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TRF4) concedeu à Operação Lava Jato o salvo conduto para o abuso da lei, que passou a suportar, na opinião dos desembargadores, a exceção.
O tribunal arquivou a representação de advogados, contra o juiz de primeira instância Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato, que cometeu, seguidamente, violações à lei: autorizou o grampo telefônico em escritório de advocacia e divulgou interceptação telefônica na qual participou, sem saber, a Presidenta da República.
Por 13 votos a 1, a corte recursiva da Quarta Região tornou “incensurável” as evidentes violações, com base em uma interpretação de que a Operação Lava Jato era em si mesma excepcional, logo, requereria medidas igualmente excepcionais.
Para embasar essa decisão, o tribunal, que no dia 24 de janeiro julgará se Lula será ou não banido do jogo eleitoral no Brasil, cometeu outras violações.
Desta feita, de natureza semântica: de maneira inexplicável, usou o nome do filósofo italiano Giorgio Agamben a fim de fundamentar a ideia de exceção de que estavam se servindo, para absolver o seu par, Moro, e seguir autorizando a Lava Jato a violar a legalidade.
Em que pese a decisão ter causado espécie no ambiente jurídico letrado, mesmo nos setores menos mobilizados politicamente, ainda há dúvidas e suspeitas que merecem atenção.
Por exemplo: dada a exceção acolhida como salvo conduto para o juiz de primeira instância violar os direitos fundamentais da Presidência da República e para grampear advogados de defesa, pode-se esperar que a Operação Lava Jato entre para os autos jurisprudenciais?
Dada a peculiar relação que essa operação mantém, com o respaldo do TRF4, com a lei, que tipo de memória e registro jurisprudencial se deve aguardar?
Podemos dar como evidente que a Operação Lava Jato, pela sua ilegalidade, encerra as arbitrariedades antilegais no seu término, ou devemos aguardar mais arbítrio?
Nos próximos dias, meses e anos, essas questões terão respostas assentadas.
Esta mesma corte julgará, dia 24 de janeiro, o recurso impetrado pela defesa do ex-presidente Lula, no processo do Triplex no Guarujá, um processo cuja flacidez doutrinária e processual o impede, senão de ocupar a história da jurisprudência, certamente de frequentar cursos de processo penal, em qualquer faculdade de direito registrada pelo MEC até 2016.
Medidas de exceção e regimes de exceção, a história mostra a quem tem olhos de ver, infelizmente não têm efeitos limitados e determinados.
O contrário ocorre: “uma vez saída das mãos que atiram, as pedras vão para as mãos do diabo”, diz uma boutade alemã, a respeito do risco de se escolher a delinquência, em vez da legalidade.
Estamos nos últimos dias que antecedem ao julgamento de Lula, Porto Alegre está recebendo militantes de todo o país e há policiamento sem precedentes, nas proximidades do TRF4, do Palácio Piratini e no entorno de outros órgãos oficiais.
Embora o clima de tensão tenha arrefecido, dadas as negociações que permitiram determinar um local específico para os movimentos acamparem, o TRF4 está excepcionalmente isolado, por soldados, policiais e viaturas.
Não haverá expediente para quem não estiver envolvido no julgamento e o presidente do TRF4 convidou a Rede Globo para filmá-lo, enquanto pedia ajuda à Presidenta do STF, Carmem Lúcia, porque ele e outros juízes estariam recebendo ameaças.
A exceção, por definição, não pode virar regra.
O que é mesmo que está em jogo, agora?
“Existe uma coisa que a direita brasileira precisa destruir, apagar da história do país, que se chama os anos Lula. Com o banimento do Lula, do jogo eleitoral e democrático, eles têm a maior oportunidade da sua vida de fazerem isso. Não faz muito sentido imaginar que não tentarão aproveitá-la”.
O diagnóstico é de Flávio Koutzii, que foi chefe da Casa Civil do governo Olívio Dutra e deputado estadual pelo PT do Rio Grande do Sul.
Koutzii é um dos maiores nomes da esquerda brasileira.
Participou da resistência armada às ditaduras no Brasil e na Argentina, foi preso em Buenos Aires, torturado e, após sua libertação, exilado.
Nunca se alinhou a correntes majoritárias de pensamento, nem de organizações políticas.
Hoje, retirado da vida parlamentar e ocupado com as atividades de lançamento e debates que se seguiram ao lançamento de sua biografia política, “Flavio Koutzii: biografia de um militante revolucionário”, feita com e pelo professor Benito Schmidt, do departamento de história da UFRGS, Flávio preserva a proverbial agudeza de análise sobre o estado das coisas no mundo político.
O cenário é preocupante e, segundo Flávio, muitíssimo mais grave do que o processo de fechamento anterior, de que ele tomou parte, diretamente.
“Sob vários aspectos, o que vocês estão vivendo é muitíssimo pior e mais grave do que aquilo que passamos. Para nós, o cenário era preto e banco, tudo estava muito claro. Vocês não tem esse privilégio e têm de enfrentar os mecanismos, cada vez mais sofisticados de dominação e interdições. É claro que haverá muitas perdas”.
Que perdas são essas?
Em primeiro lugar, aquelas que já estão acontecendo, de direitos, oportunidades, horizonte, futuro.
Em segundo lugar, e de maneira mais concreta, perdas derivadas das escolhas que terão de ser feitas, daqui para a frente.
Há uma chance muito grande de a condenação de Lula inaugurar uma etapa mais agressiva da guerra política em curso no país.
O caráter histórico está marcado não pela eleição que virá, somente, mas pelo destino que os anos Lula terão, na vida política e na memória do país.
É isso o que está em jogo, afirma Flávio.
As forças que estão à frente desse movimento, mesmo que fragmentadas e eventualmente em conflito entre si, aqui e acolá, sabem que é isso o que precisam evitar, a qualquer custo.
“Eles contam com uma brutal máquina de propaganda e ignoram ou parecem ignorar a memória, que a estas alturas parece um dado irredutível, que está no cidadão e na cidadã do país: as coisas eram melhores, com o PT no governo. Isso é uma coisa que a direita não está conseguindo tirar da realidade ou não parece se preocupar em alterar. Porque as pessoas que não tinham nada passaram a ter, e agora estão perdendo, já perderam, e estão voltando a uma condição que só foi alterada durante os anos Lula e Dilma”, avalia.
Flávio interrompe sua fala e assume outro tom, como que para deixar marcada a sua posição.
Depois de anos criticando, à esquerda, movimentos, agendas e algumas decisões tomadas por Lula e pelo governo Dilma, o militante revolucionário dos anos 60, deputado, dirigente partidário e analista político levanta de leve a voz para dizer, “aliás, o Lula é um sujeito extraordinário. Acho que tenho de fazer, vários de nós temos de fazer, uma certa autocrítica, aqui. O que esse sujeito está enfrentando é uma coisa absolutamente inominável. E ele é brilhante, um cara de imenso valor, com muita sensibilidade e respeito pelo povo”.
Esse processo todo mudou muitas coisas e a percepção das relações de força, do tamanho do que importa e do que parecia maior ou menor do que se mostrou, essas coisas transparecem no tom e na expressão de Flávio.
Pergunto sobre os riscos do cenário sem o Lula, com o Lula banido do jogo.
Flávio afirma que a Operação Lava Jato, os juízes à frente do julgamento agora, do dia 24, e a mídia que os propagandeia, estão agindo como “incendiários”.
E, ao ar de indignação, segue-se um tom ponderado e grave: “precisamos pensar em ações com relações menos imediatas ou não muito próximas de reações, para evitar perdas, que já sabemos, já as estamos vivendo”.
Esta frase poderia querer dizer simplesmente que devemos buscar agir pensando no médio prazo, mas ela quer dizer mais do que isso.
Não estamos na guerra fria, eu disse, mas o avanço da direita e do fascismo é, de novo, um elemento global e mundialmente organizado.
“Sim”, concordou Flávio. “Tem isso, que torna tudo mais dramático, no momento. Parece que estamos nos alinhando com as trevas que estão avançando no mundo, não tem saída fácil para isso”.
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