sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Internet, da utopia à realidade do capital financeiro

   Ilustração Reuters

Internet, da utopia à realidade do capital financeiro

por Marcos Dantas

A internet, desde os seus primórdios, era vista como a concretização do sonho de restauração da ágora democrática, agora em escala planetária. Permitiria superar as barreiras de espaço e tempo que, nas sociedades modernas, impedem os cidadãos de participarem diretamente, sem representações intermediárias, dos debates e decisões relativas às necessidades de nossa vida na pólis mundial.

A internet real, pouco a pouco, veio, de fato, se transformando numa grande praça, mas não política, ilustrada, racional: a internet tornou-se um grande espaço planetário de distintas e hostis praças de mercado. Essas praças atendem pelo nome de Google, Amazon, Facebook e Apple, ou GAFA, como já são conhecidas. Dominam o território da internet. Algumas outras também estão disputando seu lugar nesse território, oferecendo vantagens específicas, como Airbnb, Alibaba, Netflix. A utopia dá lugar à realidade. E esta realidade é o capitalismo financeiro.

Os donos da rede. Investigar o funcionamento dessas plataformas para melhor entender seu poder político e econômico vem mobilizando esforços de autoridades políticas e regulatórias pelo mundo, sobretudo as européias. Muitos dos seus estudos são públicos. Basta procurar por eles... na internet. Por esses estudos, fica-se sabendo que, em 2016, o mercado mundial de serviços na internet movimentou cerca de USD 500 bilhões. No mercado acionário, o valor das ações ("valor de mercado") das mais importantes plataformas da internet, atingiu extraordinários USD 3,9 trilhões.

As plataformas podem ser classificadas conforme: 1) produtoras de audiência, a exemplos do YouTube ou Facebook; 2) produtoras de mercado, como a Amazon ou o e-Bay; 3) coordenadoras de negócios, ocupadas em facilitar a conclusão das transações, como é o caso da PayPal.

As primeiras negociam principalmente publicidade em função da atratividade de seus conteúdos. Não seria muito diferente do que já fazem, desde sempre, a imprensa escrita, o rádio e a TV exceto pelo fato essencial de os conteúdos serem produzidos pelos próprios usuários dessas plataformas que, no entanto, ao contrário de jornalistas e artistas de rádio ou TV, nada recebem por isso.

As segundas são espaços de transações comerciais, colocam quem quer vender em contato com quem quer comprar, e vice-versa. As terceiras, como está dito, facilitam as transferências de recursos.

Quaisquer que sejam os modelos de plataformas, elas proporcionaram ao capitalismo contemporâneo atingir um objetivo perseguido desde pelo menos o século XIX: "anular o espaço pelo tempo", como escreveu Marx. Elas permitem pôr em contato, sem muita perda de tempo (afinal "tempo é dinheiro"), um gigantesco universo de usuários compradores e usuários vendedores. Permitem fechar negócios, com transferência de dinheiro, num tempo no limite de zero.

Ganham o quê com isso? Por que têm por objetivo colocar um grupo de usuários em contato com outro grupo de usuários, as atividades dos usuários, seus "cliques", suas "buscas", seus atos, seus movimentos, constituem a fonte de valor de seu modelo de negócios. Elas extraem, com seus algoritmos, um gigantesco volume de dados sobre a vida, gostos, hábitos de seus usuários. Reunidos e processados, esses dados fornecem a elas informação completa sobre a totalidade do mercado em que operam. Com base nesse conhecimento, desfrutam de posição privilegiada para definir as regras de acesso e de uso de suas “praças”, sobretudo, na linguagem delas, para "melhorar a experiência" do usuário, ou seja fazer com que ele esteja cada vez mobilizado para comprar ou vender, ou produzir audiência "monetizável".

A expansão do mercado comandada, coordenada, orientada pelos proprietários das plataformas já está mudando a relação prática, subjetiva, da sociedade real com a internet e suas aparentemente infinitas potencialidades. A busca aberta e livre que encontra o que interessa em algum sítio qualquer da internet, vem cedendo lugar à oferta que chega ao indivíduo-usuário mais ou menos empacotada, sugerida como de "interesse" desse usuário porque muitos outros já teriam dito que é "interessante". Os "melhores discos", os "melhores filmes", os "melhores livros", os "melhores restaurantes", as "mais importantes" notícias, os "melhores" ou "importantes" conforme definidos pelo... mercado. O usuário parece ser a fonte do mercado mas será impossível ignorar o papel de algoritmos que processam informação total, na conformação desse mercado.

Os dados sobre algum usuário ou segmento de usuários podem ser acessados por qualquer interessado mas não lhe são vendidos, só podem ser "alugados", digamos assim. É da própria natureza dos dados. Funcionam de modo similar ao capital de empréstimo: quem toma dinheiro em banco não se torna "dono" desse dinheiro, apenas pode usá-lo sob certas condições e terá que devolvê-lo, acrescido dos competentes juros, após um certo tempo.

Assim como qualquer empreendedor precisa recorrer ao capital bancário ou financeiro para alavancar e sustentar o seu negócio, o acesso aos dados, nas condições atuais do capitalismo, também se tornou vital para a concorrência empresarial e mesmo para a vida comum de milhões de pessoas, em todo o mundo. É isto que dá um extraordinário poder de barganha às plataformas. Por isto, como nossa experiência cotidiana confirma, tanto os fornecedores quanto os tomadores de dados estão forçados, para frequentar alguma praça de mercado, a aderirem a contratos padrões pré estabelecidos pelas próprias plataformas que simplesmente exigem, de seus usuários, a cessão gratuita de seus dados para tratamento, organização e "empréstimo" a terceiros. A não aceitação dos termos desses contratos simplesmente exclui desse mercado-rede o usuário renitente. Se você não dá as "permissões", você não desfruta...

Tendo se tornado uma necessidade, quase obrigatoriedade social, a atividade interativa na internet deixou de ser livre: depende da adesão às regras unilaterais e extorsivas das praças de mercado digitais. Extorsivas porque, em troca de serviços aparentemente gratuitos, o usuário está obrigado a abrir mão de sua privacidade. Configura-se aqui uma situação de trabalho, ainda que, paradoxalmente, não remunerado. Pode-se dizer que, em troca desse trabalho gratuito, o serviço prestado pelas plataformas é, em grande parte, também é gratuito. Haveria aqui uma troca de equivalentes. O salário, já nos ensinou Marx, também supõe troca de equivalentes: horas trabalhadas pelo valor da subsistência. Só que (há sempre um "só que"...), só teria direito ao emprego e, daí, ao salário, quem concordasse em também fornecer, ao empresário, horas adicionais de trabalho em troca de pagamento nenhum, origem da famosa mais-valia. O monopólio das forças produtivas permite ao capital impor tal assimetria na relação com o trabalho. Do mesmo modo, a assimetria informacional entre o detentor da plataforma e seus milhões de atomizados usuários gera uma mais-valia inteiramente apropriada pelo capital. Esta mais-valia 2.0 se revela nos elevados valores de mercado das ações do Google, Facebook, Amazon etc.

Assim, sem surpresa, como esta mais-valia se realiza numa relação de empréstimo (dos dados), o capital financeiro domina essas praças. No Facebook, 1.435 instituições financeiras, fundos mútuos de investimento ou outros investidores institucionais ou individuais detém 68% do seu capital social. Quase 30% estão nas mãos da T. Rowe Price (3,1%); Vanguard (6,4%); FMR, LLC (5,6%); State Street (3,9%); Morgan Stanley (1,2%); Fidelity (2,17%). No Google, somam-se 1.701 instituições e investidores que detém 73,1% do capital social. Mas os nomes dominantes, com cerca de 28% do capital total, quase se repetem: T. Rowe Price (2,94%); Vanguard (5,5%); FMR, LLC (4,1%); State Street (3,5%); Capital Research (1,3%); Fidelity (1,3%) etc. Não são exceção mas regra que pode ser facilmente confirmada examinando-se os relatórios financeiros das grandes plataformas.

Fim das ilusões: regular as plataformas. Em 2015, no Fórum Mundial de Davos, Eric Schmidt, CEO da Google, vaticinou que a internet iria desaparecer. Queria dizer que a rede estava se tornando tão usual, tão corriqueira e de tal modo acessível a bilhões de pessoas em todo o mundo que, muito breve, não se falaria mais em internet, assim como raramente nos preocupamos, no nosso cotidiano, exceto na hora de pagar a conta, com a rede de suprimento de energia elétrica, algo também que, há pouco mais de cem anos, era praticamente desconhecida de toda a humanidade.

Evidentemente, a internet não vai desaparecer, assim como as redes de energia elétrica não desapareceram, enquanto uma infra-estrutura essencial para as relações econômicas ou cotidianas da nossa sociedade contemporânea. Não falamos de energia elétrica, mas falamos de "conta de luz", "Light", "Eletropaulo", "Eletrobrás", "Aneel"... Do mesmo modo, para as empresas em geral, grandes ou pequenas, e para a percepção e práticas concretas de bilhões de pessoas, em todo o mundo, que já fazem uso cotidiano da internet, o que se fala, cada vez mais, é de Facebook, Google, YouTube, Instagram, Spotify, Netflix, Uber etc. Não é mais a internet.

A internet deveria começar a ser vista como as ruas e avenidas de nossas cidades que atravessamos cotidianamente sem prestar muita atenção a elas, mas sim às lojas, aos veículos e, eventualmente, a outros transeuntes. Ruas e avenidas submetidas, porém, às posturas municipais, aos códigos de trânsito, inclusive às regras nem sempre escritas de comportamento e etiqueta. Assim precisará ser a internet. Como tal, trata-se de uma infra-estrutura que proporciona o tráfego de pacotes de dados contendo mensagens de texto ou imagens sobre infinitos assuntos do interesse de indivíduos e empresas. Essa infra-estrutura repousa sobre outra infra-estrutura, a das telecomunicações. Parecem se confundir mas a gestão de endereços IPs, de provedores de acesso ou pontos de troca de tráfego, de segurança contra virus e spans ou ataques de negação de serviços, entre muitas outras atividades, está incorporada a instituições político-técnicas e a perfis profissionais específicos que não se confundem necessariamente com as tradicionais atividades de telecomunicações. No Brasil, essas instituições são o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br (NIC.br). 

Quando começou a se expandir, no final do século passado, a internet mais parecia um simples serviço de transmissão de dados, suportado em alguma rede de telecomunicações. Mas plataformas como Facebook ou Netflix não são serviços de mera transmissão de dados mas de produção de audiências, assim como o rádio ou a televisão. Aqui já não estamos mais falando de internet, este conceito que tende a "desaparecer", mas de negócios específicos suportados sobre a internet, negócios que além de extremamente lucrativos, estão se tornando também determinantes na formação de mentes e subjetividades, na produção de cultura, no cotidiano vivido de qualquer um de nós. Não são neutros. E têm o lucro por finalidade. 

Assim, não admira que se multiplique, mundo a fora, os conflitos de governos, parlamentos e poderes judiciários com o Google, o Facebook, o WhatsApp, o YouTube, o Netflix. Em 30 de junho do ano passado, a Alemanha aprovou lei que obriga as plataformas a removerem discursos de ódio sob pena de pesadíssimas multas. Dias antes, a Corte Suprema do Canadá havia determinado ao Google filtrar resultados de buscas que conduzisse a produtos “piratas”. Na Alemanha e na França quer se obrigar o Google a respeitar a legislação européia sobre o “direito ao esquecimento”. Na Inglaterra, a municipalidade de Londres proibiu os serviços do Uber. O Uruguai, há poucos dias, decidiu que as plataformas devem pagar 22% de IVA e mais imposto de renda no país. No Brasil, sucessivas decisões da Justiça suspendem as atividades do WhatsApp, atingindo por tabela cerca de 60 milhões de brasileiros, após ser acusado de não colaborar, nos termos da própria lei brasileira, com investigações da polícia ou do Ministério Público.

Já está claro que avançam processos políticos e jurídicos que culminarão na regulação da internet, ou melhor, das praças de mercado suportadas por ela. Queira-se ou não, esse debate está avançando para o centro da agenda. Evoluirá conforme a força de pressão dos diferentes agentes: as grandes plataformas digital-financeiras (que fogem de qualquer regulação como o diabo da cruz!), as operadoras de telecomunicações, os poderosos fornecedores de conteúdos, como Hollywood ou alguns grupos editoriais e, também, os próprios Estados nacionais que, se são arenas onde se digladiam esses e outros grupos capitalistas, sofrem também a influência e ação de segmentos organizados da sociedade civil ou até podem agir conforme a relativa autonomia de alguns de seus aparelhos.

Fora aquelas regulações ou intervenções públicas fragmentárias que vão emergindo aqui e ali, a exemplo das citadas acima, ainda não há um projeto amplo, sistêmico, que oriente, no quadro de uma sociedade democrática, esse processo regulatório. Não será, porém, despropositado imaginar um cenário no qual, a internet seja considerada uma camada de infra-estrutura, essencialmente técnica, regulada por acordos internacionais (como o são, há muitas décadas, as telecomunicações, inclusive o espectro radioelétrico), distinta tanto das telecomunicações ("neutralidade de rede"), quanto dos conteúdos que trafegam sobre ela. Então, esses conteúdos seriam reconhecidos como contidos em uma camada acima, regulada de modo a distinguir os diferentes modelos de negócios, impactos e poderes de mercado, regras fiscais e tributárias, também contextos culturais, direitos humanos, privacidade e, não menos importante, soberania nacional. Ou seja, aqui valeria principalmente a jurisdição de cada país.

Uma notícia: na última semana de fevereiro próximo, em Ottawa, Canadá, reúne-se a segunda Conferência Global sobre Internet e Jurisdição. A primeira aconteceu em Paris, há pouco mais de um ano. O tema é quente.   

Marcos Dantas - Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, professor do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ e do Programa de Pós Graduação em Ciência da Informação do IBICT/ECO-UFRJ, membro do Conselho Deliberativo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

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