Que paixão é essa, que incendeia as palavras nas redes sociais? A publicação de uma fotografia dispara uma saraivada de posts irados. Estamos diante de um fenômeno que transcende a psicologia individual e a política. De que se trata? Uma hiper-sensibilidade interpretativa, um frenesi hermenêutico, frisson de antenas eriçadas, o afã da repulsa, uma espécie exótica de erótica demarcatória, exuberante retórica taxonômica que ama as frações e as mil tonalidades do mesmo.
Vertigem acusatória, obsessão punitiva que não quer justiça, nem mesmo vingança, mas a conquista de um pedaço do mundo, esquadrinhando os discursos, recortando sua geografia ideológica, esquartejando continuidades, partindo ao meio, de novo e de novo. Catarse do descarte e do desprezo, no impulso incontido da sissiparidade que impõe tenacidade meticulosa e apetite de leão para excomungar, humilhar e expelir.
A fase anal da cultura brasileira explica o sadismo generalizado e a exuberância difamatória, de que a delação constitui a culminância e a condenação, o espasmo do prazer supremo. Todos os pecados do mundo estão em toda parte, dizem, olhos arregalados, os examinadores da ultra-esquerda pequeno-burguesa e os escrutinizadores da direita. Os pecados mortais contaminam as boas intenções, proclamam uns e outros: daí a vigilância permanente dos torquemadas da internet e o entusiasmo exaltado pelos carrascos de Curitiba.
Que prazer, desautorizar o outro, que gozo incomparável exumar a alma impura do outro.
Sim, as patrulhas na internet, à direita e à esquerda, apesar de suas disposições conscientes, jogam lenha na fogueira da justiça criminal. O fogaréu, no espírito de nosso tempo, é um só. O ímpeto acusatório é um só. Esse veneno alimenta a corrosão da democracia, porque se conecta, simbólica e emocionalmente, ao atropelo dos direitos promovido pelo MP, pelas polícias e pela justiça. A cada post uma saraivada de insultos condenatórios. A cada gesto fortuito uma carga de artilharia hiper-crítica. E aqui não se critica o que se ama, como nos tempos do tropicalismo. Critica-se para odiar.
Nesse momento, “Valha-nos Lula, salve-nos da aridez de nossa própria solidão. Precisamos de ti para justificar nosso ressentimento e nossa impotência ante o mundo em ruínas. Precisamos do PT para exorcizar nossos males. Onde mais, Lula, pendurar nossas desditas? Tu és o alvo de nossa cólera porque assim aliviamos nossa dor”, é o que sentem, mas recalcam, os que estão à direita.
A dor de tripular um poder degradante, numa ordem decadente, num sistema em colapso. Por isso, por nada mais, apenas por isso atribuem ao povão o destino bruto de rebanho, tangido pelo pai protetor. “Populistas são os outros. Ignorante é a massa ignara. Nós somos guardiões da razão”, murmura a direita.
Por outro lado, ouve-se nos hinos da ultra-esquerda: “Somos os guardiões da verdade revolucionária”.
E ainda: “Não, vocês ecoam a prepotência dos inimigos. Nós é que formulamos os vereditos derradeiros”, esbravejam os sacerdotes da política identitária, “somos nós que separamos o joio do trigo, os discursos legítimos das heresias”.
Enquanto isso, para saciar as galeras furiosas, os cárceres se entopem de gente, sobretudo jovens negros, legiões de delatados por crimes de opinião cometidos na internet são lançados ao inferno do ostracismo e da vergonha, e o TRF-4 prepara-se para açoitar a história do Brasil, confrontar a democracia e imolar seu cordeiro, excluindo Lula do processo eleitoral.
Eis aí o Brasil, reino do sadismo, aprisionado à fase anal: país da excreção, da execração e da punição.
Pergunto: é hora de divisões, à esquerda?
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).
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