domingo, 14 de janeiro de 2018

Petrobras: decisões nos EUA atentam contra soberania do Brasil

José Roberto Batochio: Indenização a investidores pode até ser discutível num tribunal, mas abre um flanco de vulnerabilidade aos especuladores; Petrobras fechou acordo de US$ 3 bilhões para concluir uma classe action nos Estados Unidos, mas ainda responde a outros 13 processos semelhantes de indenização naquele país. 
 
Acidente da Plataforma Vitória 3 da Petrobras em 2015 Foto: Petrobras / Divulgação
 
 
 
"A soberania é um bem que não se pode perder senão com a vida"
 
O acordo da Petrobras com a Justiça (e com investidores) dos Estados Unidos, além de carregar em seu bojo atos de lesa-pátria, é um oneroso iceberg em que a indenização de cerca de US$ 3 bilhões já anunciada constitui apenas a ponta visível, mas existe ainda uma extensa área submersa que pode custar muitos outros bilhões.
 
As notícias de que tal acordo pacifica e assegura o futuro da nossa petroleira esbarram no fato de restarem outros 13 processos de indenização naquele país — exatamente iguais à class action que redundou no aludido rombo de US$ 3 bilhões —, ajuizados por investidores internacionais, muitos dos quais representados por fundos-abutres, que se afirmam prejudicados pela desvalorização da companhia em função dos noticiados escândalos de corrupção.
Ademais disso, ainda não se dimensionou a enormidade da oceânica multa que poderá ser aplicada na persecução criminal de diretores e outras autoridades ainda em gestação no Departamento de Estado (vide casos precedentes como Audi, Toyota, Fiat, Fifa etc), além de outras sanções pecuniárias a serem impostas na investigação administrativa instaurada na Securities and Exchange Commission (SEC), agência equivalente à nossa CVM, que lá regula o mercado de capitais.
 
O aparato judicial americano (francamente convertido em instrumento de arrecadação externa do Estado, à vista da exaustão do tax payer local) é pródigo na punição de empresas estrangeiras, aplicando contra elas as maiores multas de seu catálogo. A SEC, em 2008, cobrou US$ 800 milhões da alemã Siemens. Em 2010, US$ 400 milhões da BAE Systems, do Reino Unido. US$ 365 milhões da Snamprogetti Netherlands / ENI, da Holanda/Itália, e US$ 338 milhões da Technip francesa. Em 2013, a fatura de US$ 338 milhões foi para a também francesa Total. Pelo gigantismo da Petrobras, o elevado valor do acordo com os investidores e a natureza das acusações dirigidas à empresa, não será de espantar que a multa da SEC venha a apresentar proporção amazônica.
 
Já se sabe, o Departamento de Estado norte americano tem a mão mais pesada para impor punições financeiras a companhias de outros países. Multou o banco Credit Suisse em US$ 5 bilhões e o Deutsche Bank em nada menos que US$ 14 bilhões — reduzidos em negociação a ainda vultosos US$ 7,2 bilhões. É para montantes desse porte que a Petrobras deve preparar o seu caixa. Tio Sam utiliza uma lei de 1973, Foreing Corrupt Practices Act, para punir empresas americanas ou baseadas nos Estados Unidos acusadas de atos ilícitos, como pagamento de propinas no exterior. Não é, definitivamente, o caso da Petrobras. Não há notícia de que tenha subornado quem quer que seja nos Estados Unidos, mas a longa mão que tudo empalma da justiça americana já alcançou, entre outras, a Odebrecht e a Embraer — esta, por atos praticados na República Dominicana (?).
 
O Acordo de Cooperação Judiciária Brasil-EUA, de 2001, só prevê a colaboração entre governos, para troca de informações. Em hipótese alguma convenciona extraterritorialidade, é dizer, não autoriza a aplicação ou reconhece a eficácia de leis de um Estado no território do outro. Fosse uma nação ciosa de sua soberania, o Brasil rechaçaria essa intromissão e a punição de suas empresas, principalmente de uma que lhe é estratégica, constitui orgulho nacional e que é controlada pelo Estado, ente que em última análise por ela responde na esfera dos resultados.
 
A indenização a investidores que alegam haver sofrido prejuízos pode até ser discutível num tribunal, considerando que ao negociar ações em Wall Street — um flanco de vulnerabilidade aberto aos especuladores —, a empresa se sujeitou às leis do mercado de capitais americanas. Por razões éticas, convém não comentar a estratégia de defesa da Petrobras — ou a falta dela na capitulação em face de um acordo altamente oneroso.
 
Mesmo não admitindo culpa, pois, afinal, se afirma vítima da corrupção, abriu a guarda para outras investidas, e aqui se coloca a questão da soberania que tangencia os demais processos. A estatal brasileira já é monitorada internamente pelo escritório Baker & McKenzie, de Chicago, imposto pelo Departamento de Estado, com alçada de vasculhar os negócios (e segredos comerciais) da companhia. Toda descoberta que tiver conexão com os Estados Unidos, mesmo um simples e-mail, poderá ensejar novas punições.
 
Empresa estrangeira ser punida nos Estados Unidos por atos praticados fora daquele país é um abuso ao princípio da territorialidade. O estatuto só vigora na nação que se julga xerife do mundo, ungida pelo famoso “destino manifesto”, universalizando um tribunal de jurisdição planetária não ousada nem por Filipe II da Espanha, que se jactava de ser rei de um mundo particular onde o Sol nunca se punha. A via-crúcis que a Petrobras está sendo obrigada a percorrer atenta contra a soberania do Brasil. Deveria esta ser — mas não é — enfaticamente defendida pelo Itamaraty.
 
Pois, não bastasse a omissão, acrescem mais os atos praticados por autoridades da indefectível “operação lava jato”. Fazendo jus ao epíteto secessionista de “república de Curitiba”, apartada do Estado nacional, teriam negociado diretamente com autoridades americanas, sem o necessário placet do Poder Executivo, o fornecimento de provas para incriminar a estatal brasileira. Além de encontros de ex-diretores e delatores da Petrobras com autoridades americanas, o Ministério Público teria despachado para os Estados Unidos, em 2016, o ex-executivo da Toyo Setal Augusto Mendonça, um outro notório lobista da Camargo Corrêa e cerca de três ou quatro colaboracionistas que aqui fizeram delação premiada e que foram interrogados até pelo FBI, em busca de pistas que apontassem ilicitudes indenizáveis de companhias brasileiras. Chegamos ao cúmulo de permitir a atuação de representantes do Departamento de Estado em nosso solo que, convenhamos, não pode ser quintal de ninguém. Até o então procurador-geral da República foi aos Estados Unidos encontrar-se com investigadores locais, prestando-lhes vassalagem...
 
Em imaginária reciprocidade, atreva-se um tribunal brasileiro aplicar sanções a uma empresa americana por ilícitos praticados alhures ou mesmo em nosso território! Mais simples ainda: tome-se o episódio dos pilotos americanos do Legacy que derrubou um Boeing da Gol em 2006, matando 154 brasileiros. A Justiça Federal do Brasil condenou J.Paul Paladino e Joseph Lepore a três anos de reclusão, e os tratados internacionais permitem que cumpram a pena no seu país, mas, doze anos depois, o Departamento de Estado, tornando seu território valhacouto, protege os patrícios e ignora olimpicamente a Justiça brasileira. Brasil e Estados Unidos têm relações históricas fraternas e complementares, ora baseadas na cooperação, ora na contraposição mas, nesse terreno oportuno parodiar o que afirmou o grande José Bonifácio de Andrada e Silva sobre a liberdade pessoal e política: Senhores, “A soberania é um bem que não se pode perder senão com a vida”.
 
José Roberto Batochio é advogado criminalista, foi deputado federal pelo PDT-SP e presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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