quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Revogar para bem governar, por Paulo Kliass


Do Vermelho


A tradição relativa aos votos de fim de ano inclui algumas decisões individuais e/ou coletivas a respeito de como se comportar no período que se inicia. As modalidades de cardápio variam segundo o gosto do freguês e podem incluir desde a programação de perder um certo número de quilogramas até promessas de bom comportamento. Mas podem incluir também os desejos de parar de fumar e as estratégias para obter sucesso em algum tipo de empreendimento comercial ou político.

Por Paulo Kliass*

Em outubro teremos eleições gerais no país, com possíveis mudanças nos planos federal e estadual. Estarão em debate as funções de deputado estadual, governador, deputado federal, senador e Presidente da República. E nesse processo os votos das promessas devem se cruzar com os votos das urnas.
Além de todo um debate envolvendo um balanço relativo ao período passado, trata-se também de uma oportunidade relevante para se discutir as perspectivas de um futuro de qualidade para o Brasil. Assim, não basta apenas o reconhecimento público dos equívocos provocados pela aventura criminosa e irresponsável do golpeachment sem provas, perpetrado contra um governo legitimamente eleito há quase quatro anos atrás. Estamos sentindo na carne, a cada novo dia que passa, as consequências terríveis da ruptura da ordem institucional e democrática sem nenhum embasamento de natureza jurídica.

O desmonte de Temer

A implementação da política do austericídio também aprofundou o desastre econômico e social. A absurda combinação de política monetária arrochada com política fiscal focada no corte radical das despesas orçamentárias não-financeiras agravou o quadro recessivo, promovendo a entrada do país em um período que está se caracterizando pela maior redução do PIB de nossa História. A manutenção dos juros nas alturas combinada ao represamento das dotações de verbas públicas para a área social e para o investimento revelou-se fatal. Com isso, vieram a generalização da falência de empresas e os sucessivos recordes no quesito desemprego dos trabalhadores.

Por outro lado, aos poucos foi se tornando mais clara a dimensão do desastre aos olhos dos que ainda vacilavam no apoio ao governo de Temer e a seu exército de destruição das conquistas mínimas de um Estado de Bem Estar. Afinal, se lograram êxito em sua missão de chegar ao Palácio do Planalto sem a necessidade de um único voto da população brasileira, é de se concluir que iriam buscar maximizar a satisfação das necessidades das forças políticas e econômicas que os colocaram lá dentro.

Essa parece ser a missão daquele que foi eleito vice presidente em 2014 e que insiste em manter a disputa seus índices de popularidade com a margem de erros das pesquisas de opinião. Nunca antes na história desse país um chefe de governo foi tão mal avaliado por seus cidadãos. .Ele parece ter incorporado a incumbência das forças do mal para que promovesse a destruição de todas as possibilidades de caminhos para a necessária retomada de um projeto estratégico de desenvolvimento nacional. 

A lista das maldades é imensa. Reforma trabalhista, com a flexibilização da CLT e retirada de direitos dos trabalhadores. Tentativa de aprovar uma Reforma da Previdência, também redutora de direitos e focada apenas na redução de despesas. Abertura escancarada e crescente da economia brasileira às multinacionais e ao capital estrangeiro, a exemplo da saúde, educação e infraestrutura. Entrega da exploração do Pré-Sal às multinacionais petrolíferas, com o consequente e deliberado enfraquecimento da Petrobrás. Tentativa de promover o fim da atual limitação existente para a venda de nossas terras agrícolas para proprietários estrangeiros.

Teto de gastos: destruição do Estado

Mas talvez a medida que seja mesmo o retrato mais fiel do governo do golpe seja a famigerada PEC do Fim do Mundo. Foi assim que ficou conhecida a proposta encaminhada ao Congresso Nacional por Temer em dezembro de 2016 e que se transformou na atual Emenda Constitucional nº 95. Trata-se de uma regra que estrangula toda e qualquer possibilidade de se fazer cumprir os preceitos constitucionais nas áreas de saúde, educação, seguridade social, pessoal, investimentos e outros itens relevantes para a maioria da população.

Tal amarra foi introduzida em nosso texto constitucional na onda do discurso da necessidade de “austeridade fiscal” ilimitada e sem nenhum argumento sólido a respeito da sustentabilidade desse modelo perverso. Com o velho e conhecido blábláblá a respeito da ineficiência do Estado e de uma suposta e mentirosa catástrofe iminente nas contas públicas, Temer vestiu a fantasia do garrote vil. A intenção explicitada na medida é que durante 20 longos anos não haja nenhum aumento real dos valores alocados para as despesas orçamentárias em nosso país. Uma loucura!

Obviamente que está embutida nessa “solução mágica” tão exigida pelo financismo a liberação de todas as despesas associadas ao pagamento de juros e demais serviços financeiros da dívida pública. Assim, para esse tipo de gasto não haverá nenhum limite de crescimento. Já os demais dispêndios não poderão crescer mais do que a inflação do período, mesmo que ocorra algum tipo de crescimento das receitas tributárias. Trata-se de um atestado de óbito, com data previamente marcada para o fim do paciente.

EC 95: Brasil ficou ingovernável

Ocorre que há uma certa distância entre essa esbórnia do militantismo ideológico em prol dos preceitos do neoliberalismo e as condições objetivas do pragmatismo da política “tal como ela é”, até mesmo para os setores mais conservadores de nossas elites no Congresso Nacional e nas demais esferas de representação pelo Brasil profundo afora. E boa parte das forças políticas começa a cair na real e vai percebendo as consequências efetivas de tal opção no que se refere ao atendimento das demandas da população e mesmo das necessidades para a própria dinâmica da economia.

Afinal, estabelecer os parâmetros para esse teto dos gastos em época de recessão profunda significa mais do que congelar os valores por duas décadas. A medida tem o sentido de promover uma verdadeira autofagia dos segmentos que lutam por recursos mínimos nas áreas sociais. Não haverá condições para o Estado promover os mínimos de recursos exigidos para saúde, assistência social, educação e previdência social, por exemplo. Isso para não falar do esmagamento dos valores alocados para pagamento de funcionalismo e investimento.

Qualquer candidatura que pretenda se ocupar da Esplanada dos Ministérios a partir de janeiro do ano que vem não terá como negar essa barreira nos debates que se aproximam. Caso não altere esse nó da EC 95, o futuro ocupante do Palácio do Planalto que saia como vencedor nas urnas nada mais fará senão dar continuidade a essa gestão desastrosa de Temer. Pode prometer o que quiser para áreas como segurança pública e violência, por exemplo, que não terá como aplicar recursos da União para um setor tão carente como esse. Poderá fazer inúmeras promessas para educação e saúde, mas tampouco conseguirá cumpri-las em razão das limitações do teto.

Referendo revogatório é a única solução

Se o candidato tiver alguma pretensão a mais do que as ambições monocórdicas de Henrique Meirelles e sua cruzada pela destruição do Estado brasileiro, aí o tom de campanha será obrigatoriamente outro. A vigência da regra do teto do gasto impede, na prática, qualquer governante de governar até 2036. Essa é a razão mais óbvia para que todos os pretendentes sinceros postulem pela sua revogação. Não existe a menor possibilidade de governar com a vigência dessa norma asfixiante que impede o Presidente da República de oferecer condições básicas de habitação, saneamento, segurança nacional, iluminação pública, para não repetir as demais já tão conhecidas.

Essa é a razão para a ampliação tão veloz do movimento pelo Referendo Revogatório. Cada vez mais amplos setores de nossa sociedade percebem a enrascada em que estamos metidos todos. Para além da questão da falta de legitimidade política para boa parte das medidas adotadas por Temer, o fato é que não há receita mágica que dê conta da missão de cumprir um mandato de 4 anos do governo federal com tais limitações.

Além da limitação do teto de gastos, há outras medidas que também devem ser revogadas a partir de janeiro próximo. É o caso do desmonte da CLT, as isenções trilionárias de tributos que foram mantidas e ampliadas em benefício das grandes empresas, as privatizações desenfreadas, a entrega do Pré Sal, entre outras. Enfim, decisões que abrem mão de receitas de impostos tão necessárias para o processo de desenvolvimento e que aprofundam o grau de injustiça e desigualdades sociais e econômicas em nosso país.

Independentemente da orientação política ou ideológica dos candidatos, quem se propuser a governar o Brasil - de fato e não apenas a dar continuidade à destruição dos últimos anos - deverá encarar esse desafio de frente. Qualquer assessor de políticas públicas convocado a dar sua opinião sincera e que não esteja comprometido com os interesses do financismo não tem como negar a realidade. O Brasil continuará sendo ingovernável caso o texto da emenda do teto não seja retirado de nossa Constituição.

Não temos alternativas fora de uma consulta à população por meio de um referendo. Esse é o caminho para se desfazer tamanho equívoco cometido em nome de todos. A única solução que assegura um futuro às novas gerações passa pela vontade política de oferecer políticas de natureza social e infraestrutura para um país tão desigual e tão carente. Ou seja, é necessário revogar para bem governar. 


*Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal

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