Protestos marcaram Carnaval de 2017, e tendem a se repetir em alguns dias. “As ruas não foram capazes de frear muitas regressões, mas a necessidade de agir tem tocado setores antes desmobilizados” Não há, de fato, um levante social contra os retrocessos. Mas multiplicam-se os sinais de fim da apatia e de desgaste acelerado do golpe. Seus líderes arriscam-se a um “tapetão”?
Por Paolo Colosso
Boa parte das esquerdas sente-se acuada com a politização do Judiciário, que acelera um julgamento cujas sentenças são visivelmente alinhadas. De fato, o caminhar dos fatos deixa claro a que veio a ruptura de 2016. Mas a nitidez do estrategismo e o cinismo dos atores políticos que orbitam em torno do bloco no poder são fatores que reforçam o déficit de legitimidade perante o grosso população e, ainda, a perda de hegemonia também das narrativas conservadoras.
A figura de Michel Temer tentando emplacar na TV a reforma da Previdência, numa cena pré-anunciada com Sílvio Santos, não convence uma criança de cinco anos. Dar uma nota de R$ 50,00 ao coadjuvante é uma paródia do empresário da comunicação, mas também de si mesmo. Talvez a população não seja o público com quem queira dialogar; talvez o objetivo seja mesmo apenas convencer as bancadas indecisas de que faz um bom trabalho de contenção de indignação popular, preparando terreno para votação do projeto no pós-carnaval. O pronunciamento de Cristiane Brasil para as redes, na qual a indicada ao Ministério do Trabalho fornece – junto de amigos numa lancha – explicações sobre a naturalidade de processos nessa instância, diz muito sobre o imaginário da deputada acerca das relações de trabalho. As indicações do presidente merecerão um capítulo na história.
A recuperação do PIB de 2017 em torno de 0,8% foi veiculado em tom de reanimar tropas; os empregos criados, por sua vez, foram a maioria em setores informais. Pesquisa recente da Confederação Nacional da Indústria mostra que o medo de perder o emprego ainda segue alto na população.
O clima das ruas nem de longe é de apatia. Ano passado tivemos a maior greve geral das últimas décadas, a geração das lutas urbanas pós-junho ocupou plenárias, secretarias e travou avenidas, enquanto a “sociedade civil” verde e amarela assistiu assustada ao desdobramentos do “acordo nacional”. As ruas não foram capazes de frear muitas regressões, mas a necessidade de agir e disputar os rumos partilhados tem batido à porta de progressistas diversos — figuras públicas, intelectuais, artistas, juventudes, universidades, entidades profissionais e de classe anteriormente desmobilizadas. Num quadro de extrema gravidade, diferenças antigas se tornam menores, diálogos são retomados, interações transversais entre gerações acontecem, ações convergentes localizadas já se tornam possíveis.
O bloco no poder conteve inquietações das ruas, mas sua situação não é favorável no enfrentamento de pleitos. Não por acaso o FMI afirma em Davos que as “incertezas” das eleições em 2018 não são bem vistas ao famigerado mercado – Temer tem feito um ótimo trabalho.
Bolsonaro é de fato um mito. Suas respostas sobre setores estratégicos são anedotas espontâneas. Até as grandes empresas de comunicação, que nos últimos anos não temeram incitar um conservadorismo rançoso, assumiram que Bolsonaro é demasiado, beira o nível da barbárie, e partiram para o ataque ao parlamentar. Pretenso guardião da moralidade, está com certa dificuldade para explicar a distância entre suas rendas e o patrimônio acumulado pela família. Seus ataques a programas assistenciais petistas se voltam contra si no recente caso do auxílio-moradia, que o deputado afirma ter utilizado para “comer gente”. O que o faz permanecer bem em pesquisas eleitorais? A capacidade de explorar clichês ainda circulantes nos setores reacionários da opinião pública, o que se liga à habilidade de simplificar questões complexas. Bolsonaro é o poço de rancor e agressividade onde parte da população deposita sua descrença na política, nesse momento em que ainda não podem pensar muito a respeito. Entre as camadas populares, porque essas estão trabalhando mais do que nunca com medo de perder o emprego e de não ter condições de pagar suas dívidas. Os setores de classe média escolarizada – o que não significa politizada – nos quais o ex-militar se mantém, são aqueles focados em retomar seus ganhos de capital ancorados tão somente no conto obtuso “o PT quebrou o Brasil”. É bem provável que, ao assistir seu candidato debater, muitos apagarão seus posts em redes sociais.
Alckmin não é capaz de gerar esperança e vai ter de se esforçar para usar a retórica da eficiência. A limpeza do rio Tietê foi uma pauta tucana dos anos 1990 que ficou esquecida, não resolvida, mas conta com investimentos da ordem de 3,5 bilhões de dólares. No transporte metroviário, a ampliação da malha é lenta, os prazos de término de obra são revistos inúmeras vezes, contratos são objetos de controvérsias jurídicas antigas, as linhas privatizadas tendem a ser mais caras à administração pública. Na pauta da educação, o governador ganhou notoriedade nos últimos anos por defender cortes que renderam indignação massiva de estudantes e familiares. O Estado de São Paulo pode até continuar a ser uma locomotiva, mas uma cuja geração de riqueza não leva à diminuição de desigualdade. Alckmin tem pouco a mostrar.
O gestor não-político da cidade de São Paulo é exemplo de quanto tempo dura a espetacularização da política. Mesmo na “cidade linda”, o programa que fora seu carro-chefe por meses, a zeladoria urbana andou pra trás. As viagens pelas capitais globais deixaram ver uma aspiração afobada em projetar-se, o que o mantivera distante do cargo para o qual foi escolhido. O aumento da velocidade das marginais, que estava no título da campanha “acelera SP”, de fato fora um confete para o eleitorado apresenta agora sua conta: resultados negativos em termos de aumento de acidentes e mortes nas vias expressas.
Luciano Huck parece ter percebido que é melhor não se expor com tanta antecedência. O apresentador sente que sua geração está pronta para agir, mas ainda tem de deixar cair no esquecimento público uma polêmica da casa de veraneio em área de preservação ambiental de Angra dos Reis – regularizada pelo então governador Sérgio Cabral – e recebimentos pouco esclarecidos entre Aécio Neves e sua rede de academias da qual é sócio com Alexandre Accioly.
De algum modo, todos esses vão ter de explicar às suas bases a ligação com um ativo tóxico, que é Michel Temer. Nesse mar turbulento, aí está outra dificuldade. Para a direita, fazer política implica muito pouca organicidade com a base, mas sobretudo acertos financeiros, troca de nome de siglas, além de encenações e perfis pagos de Facebook. É difícil pedir deles que recubram uma prática que não cultivam.
Há ainda outras possibilidades, como Marina Silva e Joaquim Barbosa que, por parecerem de fora, merecem análise mais detida. Todavia o fato é que, se se mantiver o rito eleitoral, o que não é completamente certo, ainda estão sem perspectivas de futuro os “outros 99%” não-representados nessa democracia com ares farsescos. Nesse sentido, o avanço do bloco pode conter em si uma derrocada.
Paolo Colosso
Bacharel em Filosofia pela Unicamp, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Publicou em 2017 "Rem Koolhaas nas metrópoles delirantes: entre a bigness e o big business" (Annablume, 2017)
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