sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Bomba semiótica?


por Fernando Horta

Em 1972 um fotógrafo vietnamita, Nick Ut, e uma menina coberta por Napalm, Kim Phuc, foram responsáveis pela “bomba semiótica” mais conhecida deste século. Kim, então com nove anos, no centro de uma foto em preto e branco, com várias outras crianças também chorando, sendo escoltadas por soldados, fugindo de um ambiente de guerra por uma estrada vazia e rústica em que o observador olhava em sentido contrário: a menina saía da guerra e o sujeito que contemplava a foto era dragado para dentro do conflito. A obra de arte de junho de 1972, dizem, teve um efeito “devastador” na “opinião pública” norte-americana. A guerra, no entanto, só terminaria em 1975, ainda que os norte-americanos tenham se retirado em 1973, com a assinatura do Tratado de Paris.

Ocorre que a bela foto de Ut e o sofrimento de Kim não foram os primeiros elementos semióticos a chegarem no público dos EUA e no mundo. O Vietnã (e toda a Indochina) eram um problema para a política externa dos EUA desde 1955, e inúmeras fotos (bombásticas e belas), relatos, livros já tinham sido censurados pelo governo norte-americano, censurados pelas empresas privadas de comunicação ou amargavam o desinteresse do público americano, relegados a um espaço diminuto em prateleiras de revistas. Uma breve comparação iconográfica entre a imprensa francesa (que também exercia censura, embora em menor escala em função da força dos partidos de esquerda) e a americana, a respeito das imagens do Vietnã, é capaz de mostrar que a foto de Ut não é a causa do fim da guerra, mas a consequência de anos de manifestações – bastante físicas – e de críticas e ataques à insensatez da barbárie na Indochina. Foi somente porque os movimentos organizados que exigiam a paz por todo território norte-americano conseguiram abrir uma brecha na cortina de controle civil dos EUA, que a foto de Ut e Kim pode aparecer e significar.
Dizer que a “bomba semiótica” de Ut foi responsável pela saída americana da guerra é desconsiderar os milhares de manifestantes, com cartazes feitos à mão, que apanharam da polícia, foram presos e processados, nos EUA, por quase 20 anos. É esquecer que líderes negros há muito vinham denunciando que nas tropas enviadas à Indochina, o sangue negro era maioria e sempre no front. É não saber da história dos movimentos de latinos, nos EUA, que denunciavam e lutavam, desde a década de 60, contra a política de “deportação ou alistamento”.

Não, a “bomba semiótica” não foi inventada pelos pós-modernos. O romance “A Cabana do Pai Thomas” é tido como uma destas bombas contra a escravidão, publicado em 1852. Mas foi o romance de Harriet Stowe ou a luta, por séculos, dos negros buscando sua liberdade? Gregório de Matos Guerra, no Brasil do século XVII, é conhecido como “Boca do Inferno”. Suas “bombas semióticas” atingiam em cheio a Igreja e o governo colonial da época que, segundo Gregório, era “quem o dinheiro nos arranca, nos arrancam as mãos, a língua, os olhos”. Se recuarmos ainda mais, o que foi a Divina Comédia de Dante, senão, talvez, a maior “bomba semiótica” do século XIV? E o que dizer do teatro grego na Antiguidade? Sim, não foi a modernidade ou a pós-modernidade que ensinou a arte dos protestos semióticos e das críticas de sentido. Aliás, “arte” é já em si mesma uma releitura da realidade, que pode ser crítica (como a da Tuiuti) ou conservadora (como a da Beija Flor). Pode questionar o senso comum ou repetir chavões. Pode ser usada contra o poder ou pelo poder. Ou o corpo esquartejado de Tiradentes, exibido por toda a Minas Gerais, não foi uma tremenda “bomba semiótica” em qualquer pensamento que tivesse por objeto o questionamento sobre o papel da Coroa portuguesa no Brasil?

Cada Pelourinho, cada Tribunal de Justiça em mármore, cada quartel com canhões à vista, cada uniforme em cinza ou bege são “bombas semióticas”, a mostrarem o custo da desobediência, da insurreição e da inconformidade. Entretanto, nenhum uniforme cinza ou bege deixa de ter ao lado da perna o bastão, a arma, as algemas e, mais recentemente, o spray de pimenta ou a arma de choque.

Não se trata, pois, de desconhecer a força dos símbolos, o apelo das emoções ou o espaço que a arte exerce no questionamento da realidade. Trata-se de verificar na história que os efeitos da luta simbólica são sempre resultados de lutas políticas materiais antigas, às quais, muitas vezes, não queremos saber e, muito menos, nos envolver. Apesar da “Divina Comédia”, o controle da Igreja durou até o século XVIII. Apesar do “Boca do Inferno”, a coroa portuguesa se manteve até 1822 e sua influência, e decisivamente até 1831. Mesmo com a “Cabana do Pai Thomas”, os EUA viveram até o século XX um apartheid simulado e experimentam hoje os efeitos do preconceito racial. Nem Luís Gama, e toda a sua verve e eloquência, conseguiram livrar do Brasil a chaga do preconceito.

Falar em “bomba semiótica” é, portanto, minorar os protestos e resistências diárias que não aparecem na Globo. Os olhos perdidos, os crânios quebrados, os processos e intimidações institucionais que acontecem no Brasil desde 2014, aos montes. Não há maior “bomba semiótica” do que a foto de Luiz da Luz, mostrando o estudante Mateus Ferreira sendo covardemente atingido pelo criminoso de farda cinza, o capitão da PM Augusto Sampaio. Capitão este que foi imediatamente condecorado pela Associação de Oficiais e que deve, em breve, ser promovido a major.

Tuiuti foi sublime. Jack Vasconcelos é merecedor de todos os elogios que já foram a ele feitos e muitos outros que, com certeza, a história ainda registrará. A comunidade que sustenta a escola é corajosa, mas não apenas pelo desfile – visível, forte, irretocável – mas também por suportar todos os dias, em todos os momentos as violências imperceptíveis (para nós) que desgraçam as vidas dos que menos recursos têm e, ainda assim, serem gigantes a abraçar uma luta que, a rigor, não é deles. Entre lutar contra a “corrupção”, denunciar o golpe ou se opor ao “vampiro neoliberalista” (Temer), os pobres precisam lutar contra a fome e a violência, da polícia ou do criminoso, indistintamente. E não dá tempo para lutar contra tudo isto, criar os filhos, sobreviver, e de noite pedir a Deus um dia melhor.

Mas não se deixe iludir, Jack Vasconcelos. Muitos dos que hoje lhe felicitam – com razão – pelo brilhante trabalho, deixam escamoteado o agradecimento por você lutar uma luta eles não lutam. Por trás de cada arroubo pós-moderno existe a felicidade consciente de que “enfim” o pobre faz o protesto que os mais afortunados não querem fazer. O individualismo, que é egocêntrico ao extremo, acha que alguns têm menos a perder do que outros, afinal o fim da democracia no Brasil e a crise econômica afetam aos grupos sociais diferentemente. E os que vão passar fome devem, na cabeça de muitos que se dizem progressistas, ser os que primeiro precisam se arriscar. Pouco eles têm a perder, argumentam de suas poltronas. Sim ... mas este pouco é para os mais humildes tudo.

Salve Paraíso do Tuiuti! Salve comunidade de São Cristóvão! Salve Jack Vasconcelos! Mas também salve a todos os que lutam as batalhas diárias na resistência contra as violências que crescem incessantemente desde 2013. Se é verdade que Tuiuti fez tudo o que poderia fazer, o mesmo não se pode dizer da esquerda no Brasil e nossas lideranças políticas. E eu não vou bater palmas e criar teorias maravilhosas quando outros lutam a minha luta. Não vou esconder os meus fracassos nos sucessos de alguém. O golpe segue. Não estamos numa democracia. Não estamos num Estado de Direito. As “bombas semióticas” ainda não têm um ambiente material para que seus efeitos sejam efetivos. E não têm porque estamos colocando a carroça na frente dos bois. A semiótica na frente do material. E isto é um tremendo erro, indiferente às suas palmas.

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