Cinco apontamentos sobre o Poder ou Porque a intervenção no Rio não tem como dar certo
por Fernando Horta
Durante muito tempo se tomou o Poder como algo que podia ser portado. Algo que poderia ser conquistado, perdido, tomado, trocado e etc. Os verbos denotam uma existência, ainda que imaterial, a parte dos seres. Os exemplos literários mais eloquentes deste tipo de concepção de Poder estão na famosa “Excalibur” ou no bastão que Aquiles portava, quando em discussões com seus iguais. Aquele que conquistava a “Excalibur”, passava e exercer um poder de fato, quando a Senhora da Lago (do Romance de Marion Bradley) tomava a Excalibur e a escondia sob as águas, o poder deixava de estar acessível aos humanos. Da mesma forma, quando em reunião com outros chefes militares da elite da sociedade grega (reis e príncipes), aquele que estava com o bastão na mão tinha o direito de falar, poderia exercer o poder de falar. Quem não estivesse com o bastão e tentasse falar era agredido com ele, e a agressão era entendida como legítima.
Em nossa sociedade contemporânea esta mesma ideia, do Poder como algo diferente do indivíduo (externo a ele), com existência própria e que pode ser capturado, comprado, mantido ou perdido, se materializa nas armas de fogo. É bem conhecida pela Psicologia e Psiquiatria a necessidade de afirmação do indivíduo através (mas não somente) da arma. Inseguro pela sua natureza, alguns homens buscam a arma como forma de compensar a percepção, normalmente ruim, que têm de si. O que a imensa maioria destes amantes de armas e do punitivismo não conseguem entender é que o seu conceito de Poder (que a imensa maioria nem sabe que possui) está completamente errado. E isso acaba causando mortes. Supostamente, se o Poder pode ser tomado, conquistado, ganho ... então seu filho pequeno, vidrado não na arma, mas no poder, tem a chance de senti-lo por alguns minutos, desde que empunhe o símbolo que para o pai (ou a mãe) parece conter todo o segredo de sua posição social e psicológica. E morrem ou matam de forma acidental.
Assim, a compreensão do poder como uma “coisa” externa ao ser, que garante a ele habilidades diferentes pela simples detenção, também está sujeita a contestação. Um outro indivíduo pode ter uma arma e usar para desafiar aqueles que acreditam (e professam) esta ideia de poder. E esta concepção se torna fiadora das violências sociais, sejam elas “conformadoras”, a mando do poder de Estado ou “desafiadoras”, contrárias a ele.
O que os cientistas sociais do século XX mostraram, e especial a partir de Foulcault (embora em Kant e Hegel a ideia já estivesse presente), é que o poder é sempre uma relação. Não é, pois, a Excalibur que alguém poderia eventualmente tomar. O Poder é a relação entre Arthur e a Senhora do Lago e, ao mesmo tempo, a relação entre Arthur e o povo da Bretanha. Dado que é uma relação, ele não pode ser tomado, perdido, achado, comprado ... Ele sempre advém da existência de uma conexão entre dois pontos. É sempre construção entre quem o exerce e sobre quem é exercido. E esta relação é inescapavalmente histórica. Ou seja, os poderes não são eternos, constantes ou homogêneos. Eles são exercidos de forma diferente para cada par ordenado (quem exerce e sobre quem é exercido) que você possa delimitar.
Se você apontar uma arma para quem não tenha noção de que o que você tem é uma arma, não há exercício de poder. Antes da questão física, é preciso existir um grupo de noções compartilhadas. É preciso que a pessoa a quem a arma é apontada reconheça os danos que ela pode fazer, entenda tais danos como prejudiciais a si, não tenha outro poder que a impila contra a arma ... enfim, há uma série de condicionantes para que o porte da arma, sua demonstração física ou uso indiscriminado seja entendido efetivamente como poder. Se a ponta que sofre o exercício poder não partilhar destas referências, quem exerce o poder será contestado. E a cada uso do poder ele se torna menor. Há um desgaste inerente a qualquer poder pela sua simples utilização. Por isto, todos os cientistas humanos afirmam que, ainda que alguém possa usar o poder de forma legítima, ele o deslegitima pelo uso.
Um policial que espanca e agride constantemente perde poder. Um juiz que exerce sem comedimento seu direito de decidir é questionado. Um presidente que se mostra inábil o suficiente para crer que é “detentor” do poder, não goza de liberdade para usá-lo e, ainda que os efeitos a curto prazo pareçam lhe dar certeza de que detém poder, a médio e longo prazo tudo ruirá.
Assim, tomando o poder como relação; como relação que se constitui no tempo e na sociedade (e, portanto, difere em essência a todo instante e entre todos os que dele partilham) e, ainda, como relação que SEMPRE se desgasta em função do seu uso, passo a fazer cinco apontamentos necessários para pensarmos a questão do Rio de Janeiro:
- O Poder não é passivo em nenhuma das duas pontas da relação. Todo ser humano, independente dos recursos que dispõe ou da sua posição social exerce poder. Para exercer poder basta que se tenha capacidade de ação e pensamento. Assim, a parte que pensa exercer o poder recebe também uma série de consequências dos poderes que sobre ele são exercidos. A relação é dialética. O soldado que vai para a rua exercer a violência, recebe o exercício desta violência em troca, e se modifica. A função do exército depende da noção do “inimigo”, aquele a quem não se deve respeito, tolerância ou qualquer misericórdia. Numa guerra, o inimigo deve ser extirpado, o mais rápido possível. Ele encarna o “mal” e é assim que os soldados são treinados. Nas ruas, o inimigo não existe. Não há ninguém a quem o soldado do exército esteja apontando uma arma que não seja detentor de inúmeros direitos e prerrogativas. E a simples presença da força de exercício de poder lá a deslegitima e provoca estragos no tecido social.
- O poder não é apenas o vetor de exercício definido politicamente pela ação imediata daquele ordenado a fazê-lo. O poder é sempre uma RESULTANTE (para usar uma noção da física) de diversos poderes exercidos simultaneamente sobre os indivíduos. Não há, assim, a ESCOLHA das pessoas em obedecer a um ou outro poder. Há uma relação de choque, no tempo. Muitos acreditam que moradores de periferia tem suas lealdades empenhadas “ao crime”, “ao tráfico” ou outras bobagens ditas como desabonadoras da vida naquelas regiões. Mas isto simplesmente não é verdade. Não há escolha. A partir do momento que o exercício do poder de Estado, ali, é delimitado no tempo, não interessa o quanto de poder o Estado possa exercer naquele momento, após o seu cessar os poderes presentes e constantes do local voltarão aos seus lugares. Os moradores sabem disto, vivem nesta regra e sobrevivem apesar destes conflitos. Não há arma capaz de substituir a presença ativa do crime e do tráfico na vida destas pessoas, e só quem nunca compreendeu esta queda de braço acha que há alguma correção na criminalização da periferia.
- O poder não é apenas exercido por meio da racionalidade. A ação pensada não é a única a exercer poder e suas consequências não são, nem de longe, previsíveis. Os poderes circundam a todos nós, existem em espaços, símbolos, ideias tanto quanto existem num soco ou num tiro. A condição é que existam duas pontas nesta relação, e um punhado de noções cognitivas compartilháveis. Não há necessidade da vontade no exercício do poder. A foto que circula, da menina negra de não mais do que seis anos olhando bestializada para o uniforme e o fuzil do soldado, é o que de pior poderia acontecer para nossa sociedade. Ainda que o militar esteja ali conscientemente buscando dar o melhor de si e ser o mais justo e correto, sua presença provoca uma série de consequências imprevisíveis e outras que já mapeamos e conhecemos muito bem. Sem ser percebido como legítimo por aquele que sofre, o exercício do poder sempre se reveste do uso fútil e injusto da violência. E esta percepção instila, para além do já mencionado desgaste, a noção de rebeldia. E tudo o que uma sociedade não deveria provocar é o sentimento LEGÍTIMO de rebeldia contra seu poder. Muito pelo contrário, dever-se-ia buscar a aquiescência da população, mas para isto seria necessário recolocar a democracia em prática e baixa-la ao nível das relações locais. O Rio de Janeiro, suas elites e governantes, nunca realmente quiseram fazer isto. A violência do exército ou da polícia é percebida no mesmo status de legitimidade (senão menor) do que a do crime e do tráfico.
- O maior poder em exercício é sempre o econômico. A demanda é o que nos une. Todos precisamos comer, beber, vestir e etc. E o poder econômico é exercido a todo momento e por toda a existência humana nas sociedades. O poder econômico capitalista tem como cerne a ideia de “concorrência por recursos escassos”, baseado na “meritocracia” (quem em última instância é a capacidade pessoal de sobreviver). Neste sentido, o traficante ou o ladrão de banco não diferem, em essência, do político ou do empresário. Ambos vivem sob a mesma ótica e perfazem os mesmos papéis. A diferença ética que atribuímos só poderia ser percebida pela população, se esta tivesse acesso à educação. Como o Estado não provém educação de qualidade, nenhum uso da violência terá qualquer sucesso, já que usa a mesma premissa sob a qual aquelas populações estão acostumadas a viver. Contudo, as condições de pobreza, diferenciação social e falta de uma noção de futuro acometem aquelas populações o tempo todo. A violência “saneadora” do Estado perdura por um mês, ou uma semana apenas ... O crime é filho da exclusão social e a violência urbana, em um sistema de desigualdade ilógico e ilegítimo, e não de alguma maldade congênita que populações na periferia tenham em seu DNA. O soldado armado é o diferente, é o estranho. É o poder pontual que, cessando, dará lugar ao andamento “normal” dos poderes econômicos. É uma criança empurrando água e fazendo onda contra o oceano.
- Quando se trata de poder, as populações mais pobres costumam ter noções mais acuradas do que as mais ricas. Sobreviver numa favela requer um nível de consciência geográfica, sociológica e política que em nenhum lugar no Leblon ou na Villa Madalena se encontra. Os filhos das elites econômicas crescem protegidos de quase todo tipo de violência e, assim, não desenvolvem ferramentas para compreendê-las, assimila-las e mesmo lidar com elas. Na periferia é diferente. Eis que a vida não é tutelada pelo Estado, apenas a coletividade, as alianças pessoais e uma imensa dose de maturidade são capazes de fazer aquelas crianças chegarem à condição de adultos. Sobreviverem. Desta forma, se o discurso infantil da “intervenção para sanear o crime”, exarado incessantemente pela mídia, parece fazer sentido para a elite branca do RJ, ele não tem NENHUMA legitimidade ou qualquer senso de realidade para as populações da periferia. Especialmente as pardas ou negras. Elas sempre conviveram com o crime, e nunca o Estado se preocupou. Sem um discurso percebido como legítimo, os moradores que sofrem esta violência passam a buscar quais são efetivamente os interesses do poder. O tráfico ou o crime organizado deixa muito explícito seus interesses, suas regras, seus limites ... a sociedade organizada DE FORMA IMPRESSIONANTE não deixa. Tenta escamotear suas inconfessáveis razões na fala de um General uniformizado ou de um presidente não eleito. O resultado é que, ao invés de a ação de intervenção usufruir do apoio dos moradores, os grupos atingidos esperam apenas pelo seu término para que a “vida volte ao normal”. E se a eles for perguntado porque os militares estão ali, eles dirão que é em benefício de vários sujeitos sociais, mas nenhum destes sujeitos mora ou pertence àquela comunidade.
Assim, não é força física, bala, número de pessoas ou arma que vão fazer diferença para as populações da periferia do RJ. Populações que convivem diariamente com exclusão, um Estado menor que o mínimo, falta de perspectivas sociais e econômicas, racismo e violência de todo o tipo. Mais pressão nesta panela não faz absolutamente nenhuma diferença na vida de quem se acostumou a levantar pela manhã e driblar os corpos mortos de jovens que moravam em sua vizinhança. Se acostumou a dormir à noite, embaixo da cama, para fugir dos tiroteios. O tráfico e o crime são, neste sentido, até mais legítimos. Um morador de periferia consegue falar com o chefão do crime com muito mais facilidade do que com o deputado, o senador ou o presidente que elegeu. O chefão talvez até saiba o seu nome, o presidente – com certeza – nunca saberia.
O crime organizado é decorrência da exclusão social, da pobreza sistêmica e de um Estado (mínimo) que só se faz presente na borracha dos policiais – quase sempre corruptos. Guarde suas considerações morais para você, elas não têm nenhuma utilidade nas periferias. Não vá falar do que é “certo” ou “errado” para quem percebe que o mundo trabalha contra ele, e que sua sobrevivência depende exatamente de nunca se deixar parar na área certa, nem na errada. A periferia não é branca, nem preta. É cinza.
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