domingo, 18 de fevereiro de 2018

Estados Unidos: Quanto mais alto, maior a queda



A arrogância de Trump está no auge. Mas, se a crise das bolsas for duradoura, pode ter chegado ao seu limite

Os dias têm sido agitados para a política dos Estados Unidos. O vice-diretor do FBI, Andrew McCabe, renunciou inesperadamente em 29 de janeiro. Sofria pressão da Casa Branca e do Partido Republicano com o pretexto de que sua esposa, Jill, candidata democrata ao Senado estadual da Virgínia em 2015, recebeu uma doação de 500 dólares de um grupo ligado ao governador desse estado, aliado de Hillary Clinton, mas por trás havia a intenção de puni-lo por não ajudar a deter a investigação em torno das conexões russas da campanha de Donald Trump.

Christopher Wray, o diretor nomeado por Trump após a demissão de James Comey, estaria para rebaixar o vice prestes a se aposentar. A renúncia antecipada permitiu-lhe, ao menos, preservar a aposentadoria integral.

Isso reforçou os rumores de que Trump pretende afastar também o vice-procurador-geral Rod Rosenstein, o que abriria caminho para substituir o procurador Robert Mueller, por ele indicado que, encarregado da investigação russa, a levou mais a sério do que a Casa Branca gostaria.

Em 2 de janeiro, apesar de pedidos do FBI em contrário, o deputado republicano Devin Nunes publicou um memorando no qual desqualifica o órgão e a investigação com o argumento de que ela foi em parte deflagrada pelo famigerado Dossiê Steele (aquele da “chuva dourada”, divulgado inicialmente pelo BuzzFeed em janeiro de 2017), encomendado a um ex-espião britânico e financiado em parte pelo Partido Democrata e pela campanha de Hillary. Após a publicação do “memorando Nunes”, um repórter perguntou diretamente a Trump se pretendia demitir Rosenstein. “Você pode imaginar”, respondeu o presidente.

O memorando foi criticado pelo FBI, que o acusou de ser deliberadamente enganoso por omitir informações vitais e os democratas o refutaram com seu próprio documento, publicado pelo deputado Adam Schiff, do Comitê de Inteligência. A agência apenas citou o dossiê ao tribunal secreto da FISA (Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira, em inglês), ao qual cabia autorizar a investigação, sem esquecer de mencionar os interesses políticos que o financiaram.

O fundamental para a decisão de pedir a autorização, como também para a de concedê-la, foi que seus agentes tinham evidências independentes de que ao menos parte das alegações do dossiê era embasada em fatos reais. E, de fato, muitos integrantes da campanha de Trump já admitiram contatos ilegais ou duvidosos com o governo russo, embora as afirmações mais chocantes não tenham (ainda?) sido comprovadas.

Entretanto, no atual clima de extrema polarização política, no qual o público tende a simplesmente ignorar os pontos de vista alheios, o alarde da mídia mais conservadora (principalmente da Fox News) em torno do “memorando Nunes” bastou para tranquilizar as bases republicanas e permitir ao partido cerrar fileiras em torno de Trump e sua estratégia.

Isso se aplica mais imediatamente à DACA (Ação Adiada para os Chegados na Infância, em inglês), na qual os democratas buscam a legalização, sob certas condições, da permanência de cerca de 800 mil imigrantes sem documentos chegados antes da maioridade.

Os dois partidos haviam chegado a um acordo no Congresso, mas Trump o vetou, exigindo que qualquer acordo sobre esses jovens fosse condicionado à aprovação de recursos para a construção de sua maior obsessão e mais notória promessa de campanha, a construção do muro na fronteira do México e ao endurecimento das condições para novos imigrantes – e os republicanos o acataram.

O que deve levar a novo confronto e possível nova suspensão das atividades do governo federal a partir de 23 de fevereiro, quando vence a autorização orçamentária emergencial concedida pelos democratas em 22 de janeiro e prorrogada na terça-feira 6. A menos que, como aconteceu outras vezes, a oposição se acovarde ante os ataques da mídia conservadora.

Trump parece contar com isso. Seu relatório formal sobre seu primeiro ano de governo, apresentado como o discurso ao Congresso sobre o estado da União em 30 de janeiro, foi irrestritamente triunfante – e cheio de inverdades, como vários checadores de fatos se deram ao trabalho de assinalar. Atribuiu-se a queda do desemprego em geral e entre as minorias em especial, embora a tendência do primeiro ano de seu governo tenha apenas continuado a do governo de Barack Obama

Não só reivindicou “o maior corte de impostos da história dos EUA”, o que é simplesmente falso, como alegou que ele proporciona “um tremendo alívio para a classe média e os pequenos negócios”, uma mentira atroz, pois mais de três quartos dos cortes beneficiam os 5% mais ricos e as grandes empresas. Gabou-se de acabar com a “guerra ao carvão limpo” – mineral inexistente, pois o consumo de carvão é intrinsecamente poluente – e transformado o país em exportador de energia, o que já era antes de sua posse. 

Atribuiu-se uma suposta mudança de uma fábrica da Chrysler do México para os EUA, quando a decisão de criar uma nova planta em Michigan resultou de uma negociação de 2015 com o sindicato que não implicou o fechamento de nenhuma linha de produção no país vizinho.

Para defender restrições à imigração, mentiu sobre o funcionamento da concessão de vistos a imigrantes e exagerou grosseiramente a importância de dois atentados cometidos por imigrantes no país, nada representativos da imigração ou dos verdadeiros perigos do terrorismo nos EUA, para não falar da violência em geral. E acusou os legisladores democratas de serem “antiamericanos e traidores” por não o aplaudirem.

Igualmente importante, apesar de ter escapado ao crivo ou à alçada dos checadores, foi a mudança de estratégia militar implicada em modernizar as armas nucleares existentes e criar novas, “mais práticas”, que alteram o equilíbrio com as demais potências e aumentam perigosamente o risco de uma guerra total a pretexto de “restaurar o prestígio” dos EUA.

E a cadeia de mentiras e meias-verdades armada para justificar um ataque ao Irã, denunciada por nada menos que o coronel da reserva Lawrence Wilkerson, ex-chefe de gabinete do general Colin Powell. Em matéria publicada no New York Times de 5 de fevereiro, ele admite ter ajudado o antigo chefe e o governo de Bush júnior a “vender a falsa escolha da guerra” por meio de evidências forjadas sobre as “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein – e reconhece a aplicação do mesmo esquema por Trump e sua embaixadora na ONU, Nikki Haley, para preparar uma intervenção ainda maior e mais destrutiva.

Dos mirabolantes autoelogios presidenciais, talvez o menos mentiroso seja o referente à alta das bolsas no seu primeiro ano de governo. As bolsas já vinham em alta nos anos anteriores – o que, em 2016, o próprio Trump desdenhava como mera “bolha” –, mas não é implausível afirmar que sua eleição lhes deu maior impulso. Um pouco por seus nebulosos planos de reconstrução da infraestrutura, mas principalmente pela expectativa de que seu governo cortaria os impostos empresariais (o que de fato aconteceu) e isso obrigaria outros países a imitá-lo (o que ainda pode acontecer).

A Apple de Tim Cook ajuda a promover a política de Trump em troca do corte nos impostos. Mas a queda das bolsas pode ter anunciado o fim da festa (Foto: Brendan Mcdermid/Reuters/latinstock)

As grandes empresas adoraram. Dezenas delas distribuíram migalhas dos enormes ganhos dessa reforma fiscal a empregados para convencê-los de que a política de Trump os beneficia. Por exemplo, a Apple ganhou 40 bilhões de dólares em 2018 e prometeu distribuir 300 milhões (0,75%) em bônus extras a seus empregados, o Bank of America, que ganha 3 bilhões, distribuirá 145 milhões (menos de 5%) e a Walmart, com ganhos de 4 bilhões, anunciou 400 milhões em bônus (10%) e um aumento no do piso salarial que significaria 300 milhões anuais – para em seguida anunciar milhares de demissões.

É o ponto fraco da reforma trumpiana e, por tabela, da alta das bolsas: ela traz lucros bem mais gordos, no curto prazo, para grandes empresas e seus acionistas, mas não maiores investimentos ou geração de empregos no país, nem aceleração do crescimento econômico.

Trump citou no discurso um plano de investimentos da Apple de 350 bilhões, mas tudo indica que já estava preparado e seria implantado independentemente do corte nos impostos. Sem uma retomada do crescimento a um ritmo bem superior ao das últimas décadas, a alta das bolsas no último ano não se justifica.

Talvez tenha sido a percepção, ainda que tardia, dessa realidade que desencadeou a queda das bolsas que fez o índice Dow Jones cair de 26,2 mil pontos em 1º de fevereiro para 24,4 mil no dia 5, quando se registrou o maior tombo em pontos de um dia em toda a sua história, 1.175 pontos. Essa queda de 7%, que se refletiu em outros mercados do mundo, aniquilou 4 trilhões de dólares em quatro dias.


Poderia ser um acidente de percurso, mas é de notar que foi precedida pelo colapso de criptomoedas como o Bitcoin, que já em janeiro despencava do pico de 20 mil dólares de dezembro e agora está perto dos 7 mil. Como assinalávamos em dezembro (Bitcoin, a volta da bolha assassina, CartaCapital 981), esse mercado era o exemplo mais extremo de acumulação de capital especulativo sem encontrar aplicação na produção.

Quando a fragilidade da onda começou a ficar aparente, portou-se como um canário na mina. Se isso se revelar o início de uma reversão prolongada dos ganhos dos últimos anos, boa parte do discurso dos republicanos e de Trump se esvazia. Talvez até mesmo entre seus eleitores mais dogmáticos e fiéis, uma vez que, nos EUA, grandes quedas nas bolsas não são problema só de uma elite financeira, mas de uma grande maioria cujas poupanças e previdência dependem de carteiras e fundos de ações.

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