foto: Reprodução/Youtube
JOÃO MARIA TRABALHOU dezesseis anos plantando maracujás, dirigindo carros e vendendo ovos sem nunca receber um centavo. Em quatro cidades de três estados diferentes, João (cujo nome verdadeiro foi ocultado por razões de segurança) serviu a lojas e fazendas controladas pela cúpula da igreja evangélica Comunidade Cristã Traduzindo o Verbo. João Maria chama a si mesmo e aos outros centenas de fiéis da congregação de “irmãos”. Para o Ministério do Trabalho e para a Polícia Federal, eles são escravos.
O primeiro contato de João Maria com o grupo religioso aconteceu em 2000, quando ele se recuperava de um vício e estava internado em uma clínica de reabilitação em Mariporã, interior de São Paulo. Convidado a conhecer a igreja na capital paulista, acabou morando em uma casa da congregação na zona norte da cidade. Desde 2002, começou a trabalhar para a igreja e nunca mais parou. Ganhava apenas casa, comida e nenhum centavo.
Assim como ele, ao menos outros 564 trabalhadores foram escravizados em situações parecidas.
Assim como ele, ao menos outros 564 trabalhadores foram escravizados em situações parecidas, segundo auditores fiscais do Ministério do Trabalho. Eles estariam submetidos a condições degradantes, elemento suficiente para caracterizar o crime, já que todos os seus direitos trabalhistas haviam sido suprimidos.
As conclusões são resultado de uma investigação apresentada na última quinta-feira pelo Ministério do Trabalho em conjunto com a Polícia Federal, que já havia prendido 13 suspeitos em fevereiro. Este é o maior caso de trabalho escravo flagrado no Brasil nos últimos dez anos, desde que 1.064 trabalhadores foram resgatados de uma fazenda de cana no interior do Pará, em 2007. Ao contrário daquele caso, as pessoas cooptadas pela igreja não estavam em um único local, mas espalhadas em pelos menos 17 cidades de três estados diferentes: Bahia, Minas Gerais e São Paulo.
Eles trabalhavam em postos de gasolina, fábricas de salgados e doces, restaurantes, cafés, lojas, fazendas
Eles trabalhavam em postos de gasolina, fábricas de salgados e doces, restaurantes, cafés, lojas, fazendas e outros estabelecimentos que eram registrados em nome de laranjas da congregação e ligados à empresa Nova Visão. A empresa está registrada no nome dos pastores Cícero Vicente de Araújo e Miguel Donizete Goncalves, líderes da igreja.
Em 2006 ele já havia sido acusado de manter 800 pessoas em regime de escravidão sob outra congregação, a “Jesus, a Verdade Que Marca”. Em 2015, mais um caso envolvendo o pastor e a antiga seita, quando fiéis deram depoimentos repetindo as pregações do líder. Para se defender, publicou um vídeo no canal da igreja, no ano passado, mostrando o que ele diz ser um documento que o isentaria de processos penais. E pergunta: “esses que estão me julgando, me caluniando, me difamando… essas pessoas, eles têm o espírito de Cristo?”.
Escravos, não. “Irmãos”
Além do número de vítimas, outra característica torna esse caso inusitado: os fiéis não se enxergavam como trabalhadores, mas como “irmãos”. Eles eram orientados a não prestar informações e se negavam a responder perguntas simples feitas pelos auditores fiscais. “De uma maneira geral, os trabalhadores mentiam copiosamente sobre a condição deles. Era uma mentira atrás da outra”, diz o auditor Marcelo Campos.
Como os trabalhadores não desejavam sair do local, não houve resgate, e a maioria permanece na mesma atividade. “Se ele fala ‘não saio’, não tem como eu obrigar ele a sair. É como se eles estivessem agarrados no paraíso”, compara Campos. Para ele, a única maneira de acabar com a situação seria por meio da inviabilização de todas as atividades comerciais da igreja pela justiça.
Fiéis entregavam até FGTS
Sem possuir páginas em redes sociais e com poucos vídeos no YouTube, a igreja evangélica Comunidade Cristã Traduzindo o Verbo pregava na base do corpo a corpo ou em programas de rádio e televisão locais. Segundo os auditores, os recrutados estavam “geralmente em situação de risco”, e escutavam sermões sobre um modo de vida baseado no desapego e no serviço à comunidade.
Essa rotina girava em torno de casas mantidas pela igreja, para onde os novos fiéis eram levados. A maior delas fica na Lapa, bairro de classe média da capital paulista. Nada era gratuito. Os que recebem algum tipo de remuneração devem pagar R$ 400 mensais para se manterem dentro da casa. Na prática, a remuneração passa a ser simbólica, já que ela volta para a igreja através desse aluguel. Outros trabalham sem receber nada em troca da moradia e de produtos básicos.
Os fiéis também eram estimulados a ceder seus pertences. Um deles, demitido de um emprego como metalúrgico, havia recebido 30 mil reais de rescisão. Ele entregou 6 mil reais em São Paulo e os outros 24 mil na Bahia.
Sócios só no papel
Os fiéis moravam em 27 casas comunitárias espalhadas pelo país, onde tinham contato somente com outros seguidores da igreja. Os seus empregos, alguns no mesmo local da moradia, eram mantidos por relações fraudulentas, em que o salário era parcial ou totalmente retido pela igreja.
Um exemplo é o Real Grill Restaurante, na cidade mineira de São João del-Rei. Para fraudar as relações trabalhistas, os funcionários eram registrados como sócios da empresa, com cota de 2% cada, enquanto um laranja da igreja controlava 60% do capital. Mas, apesar de serem sócios, eles seguiam uma rotina de empregados – eram garçonetes ou caixas, e tinham a maior parte do seu salário retido.
Já em uma fábrica de salgados e doces da também mineira Pouso Alegre, os trabalhadores tinham todo o seu contracheque descontado antes de chegar às suas mãos. “Primeiramente, é separado o valor para a compra de novos insumos. Em seguida, são separados os valores para as despesas da casa (aluguel, água, luz, telefone, alimentação, internet, entre outros) e depois os valores destinados às despesas pessoais. Foi relatado que todo o dinheiro arrecado é somado e direcionado para a manutenção das despesas da casa”, diz o relatório dos auditores.
Nas fazendas do grupo, também foram encontrados 32 adolescentes que trabalhavam principalmente nas colheitas de maracujá, limão e mexerica. Eles trabalhavam sem equipamentos de proteção e estavam expostos a uma série de perigos, inclusive o contato com agrotóxicos sem nenhum tipo de treinamento. Os membros da igreja afirmaram que os adolescentes não eram empregados, mas membros de uma associação comunitária. Para os auditores, isso não passava de uma fraude para cobrir a verdadeira relação de emprego.
151 trabalhadores já eram conhecidos da PF desde 2013
A investigação contra a igreja começou em 2013, quando a Polícia Federal deflagrou a operação Canaã para investigar o enriquecimento ilícito de seus líderes. Essa operação também se desdobrou em fiscalizações trabalhistas, que encontraram 348 pessoas em situação análoga à escravidão – 151 delas seguiam ligadas à igreja em 2018.
Depois de novos relatos de que a igreja continuaria a sua atividade normalmente, foi deflagrada uma nova operação em 2015, batizada como Volta a Canaã, que resultou na denúncia de 24 integrantes da congregação. As novas fiscalizações, realizadas desde fevereiro deste ano, foram ordenadas pela Justiça Federal de Minais Gerais depois dessa segunda investigação. Denominada Canaã – A Colheita Final, a operação foi conduzida pelo Ministério do Trabalho e pela Polícia Federal.
Em 6 de fevereiro, a Polícia Federal prendeu 13 dirigentes do grupo econômico e da igreja. Outros dez continuam foragidos, incluindo o líder da organização, o pastor Cícero Vicente de Araújo.
Os autos de infração devem ser incorporados aos processos que já tramitam contra a igreja, e seus líderes podem ser responsabilizados criminalmente pelo trabalho escravo. A empresa também terá de responder pelas violações trabalhistas em processo administrativo no Ministério do Trabalho, que pode ter consequências na justiça.
A reportagem tentou contato com a Comunidade Cristã Traduzindo o Verbo através dos telefones de alguns de seus estabelecimentos, mas não obteve resposta.
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