Em entrevista exclusiva ao Nocaute, o ator norte-americano fala sobre racismo, Donald Trump, América Latina e Lula
Por Nocaute
Fernando Morais: Para nós do Nocaute é uma alegria, uma honra, ter aqui esta figura fascinante que é o Danny Glover, que todo mundo conhece como ator e como ativista político, sempre ao lado das boas causas e nascido no dia 22 de julho de 1946. Por que eu sei do detalhe? Porque eu também nasci no dia 22 de julho de 1946.
Danny Glover: Ele é o meu irmão mais novo que também nasceu dia 22 de julho? Eu tenho outro irmão do dia 22 de julho! Eu amei, eu amei! Existe alguma coisa sobre o dia 22 de julho que, ao passar dos anos, encontro amigos que também nasceram nesta data. Eu estava na Costa Rica, junto com um amigo que eu conheço desde a faculdade, Roman Gonzalez. Nós nos conhecemos na universidade em 1968 e depois fomos trabalhar com serviços públicos no governo da cidade. Recentemente eu o encontrei na Costa Rica, ele é alguns anos mais velho do que eu, mas também nasceu no dia 22 de julho. Eu não sei se mantemos nossa amizade a um nível de ativismo, de estudantes que trabalhavam em serviços públicos, essa foi a fundação de nossa amizade. O grande poeta Quincy Troupe também é do dia 22 de julho. Essas simples relações que tenho são importantes. Eu sempre penso que as datas são importantes.
Eu nasci na cidade de Mariana, que foi vítima daquela tragédia ambiental, daquele crime, e no dia que eu soube eu telefonei para lá, para me irmão, e perguntei: alguma autoridade já apareceu aí para ser solidário? Ele me respondeu: A única autoridade que apareceu aqui até agora foi o Danny Glover. Ele foi a Mariana se solidarizar com a população que era vítima da tragédia ambiental
Eu acho que uma das coisas mais claras que tenho em vida é que: independentemente de como isso aconteceu, e eu não tiro crédito em cima disso, eu sempre quis estar ali, achei que era necessário ir até lá para ser testemunha de algo que acabara de acontecer. E falar com as pessoas, do jeito mais simples possível, independentemente de diferenças ideológicas que possamos ter, é o que me importa. Essa história foi importante para mim. Esta é a qualidade que me acompanha desde a época em que nasci, junto com uma estrutura politizada e social. O movimento civil americano, de pessoas que se manifestavam pois se importavam com algo, que foram até o sul, que se encorajaram com as pessoas do sul é importante pois eles se importavam com o que estava acontecendo, eles realmente se importavam, e eram pessoas jovens.
Existe um certo idealismo que acompanha tudo isso. O meu lugar e a minha responsabilidade é de ir até lá para ouvir a história deles, e isso é basicamente quem eu sou. E outra coisa que penso é que estou celebrando a coragem deles, conhecendo a coragem deles. Eu estou lá por solidariedade, mas não sei se conseguiria ser tão corajoso como eles são.
O senhor é identificado no mundo inteiro como um cara permanentemente solidário com a América Latina, com os movimentos de libertação da América Latina. Se a gente olhar para o mapa da América Latina há dez anos, veremos que só havia amigos nossos e amigos do povo latino americano e hoje não. Hoje está cheio da ditadura de novo, no Brasil inclusive. Na sua opinião, o que houve para produzir essa mudança tão ruim na América Latina nos últimos anos?
Eu não sou um expert nesse assunto, eu posso testemunhar que de fato havia uma enorme energia, uma enorme resposta que do estava acontecendo na América Latina. Estava celebrando o que estava acontecendo e mesmo tempo denunciando. Aqui no Brasil, a eleição de um trabalhador, de Lula, foi algo extraordinário. Alguém que chegou até o topo sem nenhum treinamento educacional formal, mas que teve inocência, uma ressonância extraordinária do jeito de se relacionar com o povo, ele toca nas pessoas, as pessoas acreditam nele.
Ele se transformou em uma das mudanças mais extraordinárias no Brasil, o respeito aos mais pobres, o respeito aos afrodescentes, as mulheres, além da inclusão durante o processo governamental. Tudo isso me encorajava a assistir, porque pensava que podia ver isso acontecer em algum lugar, encorajado por alguma ação que talvez seja replicável em outros lugares também.
Quando eu vim aqui e vi tudo isso acontecendo, tive esperança que as pessoas olhassem aquele momento do mesmo jeito que eu estava olhando, como um momento de encorajamento. O Fórum Social Mundial veio até aqui, o Evo Morales veio até o Fórum Social Mundial. Alguém que em defesa de seu país, a Bolívia, se inteirou sobre o tema da privatização da água. Esses símbolos, de algum jeito, representam uma mudança no que estava acontecendo no mundo, o que estava acontecendo nessa região, que estava se descobrindo como uma região diversa. Você pode ver que a incrível diversidade também foi um fato importante.
No meio de tudo isso que a gente podia chamar de progressos sociais, os Estados Unidos me elege um sujeito chamado Donald Trump. Como é que o senhor interpreta isso? O mesmo país que tem um ativista como Danny Glover, acaba escolhendo como presidente da República, um louco um tarado como o Trump. Como é que um norte americano ativista, sindicalista comprometido como o senhor vê isso. Qual foi o choque de ver a vitória do Trump?
É a questão que ainda nos perguntamos. É uma questão que também sublinha as forças que afetam nossas vidas, que também nos desempoderam. Existem muitas explicações para a eleição de Donald Trump, até mesmo os reality shows, que afetaram o corrida eleitoral. Existem diferentes jeitos para tentar explicar isso. Você pode dizer que as pessoas ficaram desacreditadas com o processo eleitoral e elegeram alguém de fora do processo. Essas pessoas que o elegeram, se você olhar as estatísticas, não são os pobres, desacreditados, mas sim, pessoas brancas que acharam que haviam estranhos em seu próprio país. Essas pessoa tinham em comum a renda, uma renda de classe média, eles estavam preocupados com a estagnação do país, com diálogo político que estava acontecendo no país. Existem muitas razões para isso ter ocorrido. Nós falamos sobre a ideia de democracia nos Estado Unidos, mas não existe um lugar que tenhamos um papel importante no processo eleitoral. Votos são decididos por razões diferentes, as pessoas criam apatia ao processo eleitoral pois não participam dele, a não ser nas eleições a cada quatro anos. Mas onde as pessoas participam e quem são os que participam neste processo? Na eleição de líderes de estado, de cidade, de economia. Todos esses importantes postos mostram que existe uma cultural interna no meio da política, e a sensação das pessoas é de descrença nesse processo, de não se sentir envolvido. Todos esses pontos culminam em um impacto de interesse.
Eu via movimentos nos Estados Unidos que aconteciam ocasionalmente. Eles ficavam incentivando as pessoas 24 horas por dia, discutindo as dinâmicas de mudança, as possibilidades de como seria o futuro, e usando o processo eleitoral como referência para justificar as ações que eles gostaria de ver como cidadãos.
Há um ano eu entrevistei o Julian Assange na embaixada do Equador em Londres. Ele afirmou que é possível provar que os Estados Unidos Estavam por trás do golpe que derrubou a Dilma por causa do petróleo. Meses depois o presidente da Turquia, Erdogan, disse que a tentativa de golpe lá também foi armada pelos Estados Unidos por causa da longa fronteira com a Rússia. Na sua opinião, você acha que os Estados Unidos tem responsabilidade nesses golpes que temos visto aqui?
Eu acredito que eles tenham tido um papel no golpe. Eu acredito que os EUA, por causa de seus interesses…No cenário maior, como sabemos, a ideia de Estado-Nação, a soberania, e quanto mais e mais países latino-americanos, seja Bolívia, Argentina, Equador, Venezuela mais notavelmente, Brasil, têm reformulado a narrativa de suas próprias relações como Estado-Nação e de soberania, mais e mais a política exterior dos EUA têm se articulado para tentar reverter essas forças nacionais, para submeter essas forças.
Os EUA têm feito isso historicamente na América Latina, desde a Doutrina Monroe em 1823. A América Latina tem sido influenciada desde então e os EUA continuam com essa mentalidade até hoje. E está além da administração, e além das relações culturais e políticas internas dos EUA, a política em relação à América Latina sempre foi de que EUA eram as forças dominantes da região e portanto sustentaram golpes, os golpes militares por volta da década de 60, e usando isso como plataforma para dominar e desestabilizar qualquer política progressista que pudesse estar ocorrendo. A América Latina tem uma história longa de autoafirmação e soberania. Simon Bolivar mostra essa tendência histórica. Tudo isso mostra como a política externa dos EUA têm adotado, simplesmente nessa região, e tomado a postura de “Voz do Mundo Livre”.
Você tem acompanhado o processo da Venezuela por um bom tempo já, desde o Chávez, Venezuela tem hoje mais de 302 bilhões de barris de petróleo ainda debaixo da terra. Você acha que esses ataques dos EUA contra a Venezuela estão conectados com democracia ou conectados com o petróleo?
Eu acho que é um pouco mais profundo do que isso. Como eu disse antes, a ideia de organizar seu ponto de vista, de você mesmo em relação à soberania em um referendo nacional, foi isso no que Chávez se tornou, se colocou no centro da soberania nacional pela eleição presidencial. E o que vamos fazer em relação a isso? Sempre vejo isso pela vantagem que a Venezuela tem com essa enorme quantidade de petróleo, e o fato de que o petróleo se tornou crucial para o contínuo avanço industrial.
A coisa mais profunda que estava ocorrendo era a mudança de como o dinheiro provindo do petróleo era usado, se é usado para reduzir a pobreza, se é usado para aumentar o acesso à casa, se é usado para melhorar a educação, então essa é uma referência diferente. Esse é um país com uma enorme riqueza, e no momento em que o preço do petróleo está alto, estavam aptos a fazer programas sociais que melhoraram a condição de vida das pessoas. Aí está o perigo.
Se eles conseguissem trazer médicos, médicos cubanos, e fizessem uma programa no qual melhorassem o sistema de saùde para os cidadão da Venezuela, e é um país relativamente pequeno 25 milhões de pessoas com todo esse petróleo.
Então a mudança que pode ser feita nessa população pode ser tão dramática, se tiver uma vontade política para essas mudanças, e a vontade política foi criada pelos movimentos sociais que sempre pediram por isso nos processos eleitorais, portanto a vontade política está lá. Então o perigo está em como se cria essa vontade política e novas formas de relações com ALBA, e todas essas coisas estão agora formando novas relações regionais na américa-latina, da Bolívia à Argentina ao Equador ao Brasil.
Tudo isso é muito perigoso quando se quer manter e sustentar poderes. Mas o começo dessa corrente social, o que estava acontecendo lá, é o aspecto mais perigoso, pois os EUA não sustentariam a estabilidade da região, e o que se faz é o que já foi feito anteriormente e isso demonstra insegurança do império.
Essa mudança inspira não só regionalmente, mas em outros lugares do mundo, se eles podem fazer, nós também podemos. Há um outro tipo de relação com o poder, e tem sido uma relação de dominação e poder nos últimos 500 anos. E particularmente quando os EUA se tornaram uma potência mundial.
O senhor foi nomeado pela ONU como embaixador dessa década para questões afrodescendentes, aqui no Brasil a questão racial está umbilicalmente ligada à questão social, as pessoas são discriminadas não só por que são negras, mas são todas pobres, você vê isso em outras regiões do mundo? Uma situação semelhante à nossa, o racismo não é só racial, mas é também social, também uma questão de classe.
Existem muitas formas de se olhar sobre isso, a relação entre poder, pobreza, raça, classe são problemas nos EUA também. Os EUA se tornaram poderosos ao custo da escravidão e produção de algodão. No tempo da revolução era apenas uma pequena colônia num mundo cheio de colônias controladas pela Inglaterra. Depois da expansão da produção de algodão ele se tornou o primeiro combustível da revolução industrial, isso mudou toda a situação, o algodão. E por causa disso, no começo do século dezenove se tornou um dos países mais poderosos economicamente.
Como era a relação e o papel entre os EUA e a Inglaterra durante a revolução industrial naquele contexto, já que o Brasil era um grande produtor de algodão, porque tinha a maior quantidade de escravos, os escravos vinham da África por aqui, haviam outras dinâmicas ocorrendo.
Mas certamente, se vamos falar de democracia, o mínimo que deve ser feito é acolher os descendentes africanos. Se temos uma ideia do que é a democracia e o que envolve e preenche essas ideia em torno da democracia, são ideais simples, são dinâmicas em relação aos cidadãos e os problemas raciais são centrais para a realização da democracia não importando se estamos no Brasil ou nos EUA. Então esse se torna o ponto central do qual olhamos para a ideia de democracia.
Por causa da posição do Brasil, em termos de diferença racial na qual mais de metade da população é afrodescendente, esse ponto é crucial aqui. Brasil tem o potencial de liderar não só a luta pela democracia, a luta por justiça racial, reparar a justiça social interna, mas na região latino-americana e talvez no resto do mundo.
São essas coisas que são necessárias de entender, não podemos apenas empurrar a ideia de igualdade de raça, quando olhamos para o que está acontecendo no Brasil, temos que entender para construir um país de diversificação, construir uma democracia dinâmica. Isso será um grande salto até para o Lula, até se tivermos a Dilma, até para um governo progressista.
Temos que falar de todas essas coisas, pois elas são centrais. A maioria das conversas que eu tive nesse sentido, sobre os problemas raciais, tem sido sob esse ponto de vista, que não podemos mover mais um centímetro se não conversarmos com o Caribe, ou com as relações que foram construídas nos últimos 500 anos. Em alguns aspectos é preciso de uma mudança extraordinária para conseguirmos não apenas criar um mundo de sistemas necessários para a sobrevivência da humanidade para lidar com as mudanças climáticas, aquecimento global, mas também para lidar com a própria justiça.
O senhor, que tem uma visão universal desse problema, como você identifica a raiz dessa doença, o ovo da serpente, num lugar como o Brasil que 50% da população é negra, nós temos de 35 ministros temos 1 ministro negro e em 500 anos de história tivemos um único ministro da suprema corte negro, onde está a raiz disso? Onde está a tragédia por trás disso? Esse país que teve a sua riqueza construída muito com a mão escrava vindo da África, como é que um país retribui tão mal à um povo como a população negra que veio construir esse país. Como você explica isso? Tem explicação para essa doença?
Eu seria prepotente se eu te dissesse. Se eu fosse um afrodescendente brasileiro eu teria algum tipo de condição para entender mais desse dilema e os impactos psicológicos que o racismo tem na população. É um caminho, deixe-me te contar, eu posso sentar aqui e falar tudo o que eu quero sobre esse problemas que levantamos, mas ao mesmo tempo minha avó nasceu escravizada, meu avô nasceu escravizado, e essa é a parte que me identifico tanto político, histórico e socialmente. Posso me sentar aqui com as oportunidades que tive e te falar as coisas que influenciaram a minha vida, a vida do Danny Glover, uma das coisas que me fez inseguro, me fez sentir menos humano e quais as pontes que levaram, quais coisas que fiz na vida para não sucumbir a isso, mas tentar me sentir merecedor de algo. Tem sido assim por 70 anos da minha vida.
Como posso dizer que o que eu passei, o que eu senti e o vazio que senti, como passar isso para meus filhos de um jeito que eles entendam o que eu vivi e transformem isso e se inspirem em algo maior.
Todas essas coisas aconteceram. Aconteceram no nível familiar, comunitário. E aconteceram no nível nacional também. Então para chegar onde cheguei, chegar nesse ponto, foram lutas internas e forças externas que das maneiras mais insidiosas, mais absolutas, e mais sutis, me disseram, assim como Muhammad Ali me falou quando sussurrou ao meu ouvido: “Ainda é um preto”.
Ele entendeu isso, mas entendeu algo mais profundo do que isso, que é o que você teria que fazer, da história disso. Tudo isso você luta contra, tenta achar outra forma. O que teria acontecido se eu não tivesse o instrumento que eu tinha? O que teria acontecido se alguma coisa na minha vida que me levasse a ser encarcerado e como isso determinaria e pré-determinaria uma série de circunstâncias na minha vida.
Pega esse indivíduo, Danny Glover, que todo mundo sabe que é bem-sucedido, e multiplica pelas dezenas de milhões de pessoas que têm que lutar por isso. Que vêm ao mundo sem direito a nada a não ser à luta e os corajosos….James Baldwin, o grande escritor e uma das pessoas mais incríveis que você poderia conhecer, disse que um homem negro vivendo em Alabama merece uma medalha de honra. Só por sobreviver ali.
Quando ele foi para Alabama e viu um homem negro, ele disse: “Eles merecem uma medalha”. Pega isso na história e compara com o Brasil. A ideia da raça acontece daqueles que de diversas formas controlam, dominam, a ideia de racismo não atua ali, mas atua em termos da nossa consciência e da percepção que temos de nós mesmos. E lutar contra isso. Lutar todos os dias a luta da minha mãe, todo dia que meu pai lutou, todo dia que minha avó lutou, todo dia que meu avô lutou e todo dia que todos que me antecederam lutaram.
E essa é a questão. Como a gente agora aceita essa verdade em torno da raça? Como fazemos tudo que está em nosso poder, o seu poder, os que têm poder, como você usa tudo o que estiver a seu alcance para colocar isso no centro do que acontece? Vai haver inseguranças, medos, raivas, é o que está acontecendo agora. Qualquer um que fale em países de merda, que mexicanos são estupradores e ladrões e outros tipos de clichês, você pensa que está no século 21? Depois de tudo o que foi feito? Isso é insano! E deixar alguém assim ser presidente? É insano! Mas é a realidade.
É construído em torno de algo que, apesar de fingir que conquistou algo, a longo prazo não conquistou nada. E é baseado numa sociedade na qual as ideias do século 20 são todas ligadas ao indivíduo, e não à comunidade, mas ao acúmulo de coisas, do que for. Desse copo. De um carro. E o perigo que você sente se você não pode acumular aquele carro. Essa é a dinâmica do século 20. Você tira as pessoas da terra, você tira elas da fonte de criação, tira eles de lá e os deixa como peças de um sistema – seja com um emprego de classe média ou em um emprego que pague um salário baixo. Num sistema que só determina o que você é pelo que você possui. Isso é que acontece no Brasil.
Desde a Segunda Guerra Mundial, tem tido mais tecnologia, mais acesso a diferentes formas de tecnologia do que qualquer país da região ou do mundo. E ainda assim é o que índice mais baixo em termos de pobreza. O mais baixo, educação, pobreza, raça, tudo isso. Como você ter tanta abundância de riqueza, 200 milhões de pessoas, e você não consegue encontrar uma forma na qual haja uma sociedade justa não só para os afrodescendentes, para toda os brasileiros.
Quais são as questões, contra o que estamos nos posicionando. E o quão profundo e influente isso é no inconsciente. Se você retroceder agora, 500 anos disso até chegar num ponto em que você diz: eu finalmente entendi o que é ser um ser humano.
Alguns norte-americanos brancos se sentem incomodados de ver uma estrela de Hollywood como você defendendo o oposto dos interesses e da ideologia do establishment? Eles reagem mal a isso?
O mainstream pode significar muitas coisas. O que temos aqui? Qual é a analogia? Há bons negros e maus negros. Há pessoas que você consegue tolerar até certo ponto e ouvir o que têm a dizer, e eles seguem adiante e encontram o negro com quem você consegue falar, e ele se torna mais sensível. É uma linha muito tênue. Não vou te apresentar os 10 pontos do programa dos Black Panthers. Aquilo era necessário quando os irmãos se uniram naquela época, mas eu não posso te apresentar isso agora. O Black Lives Matters representa alguns desses pontos e as mulheres representam alguns desses pontos.
Mas o que eu estou dizendo é que há uma certa tolerância na conversa, tolerância cultural, mas a mensagem é: você tem uma manifestação artística como o hip hop, e a expressão do hip hop vai direto no cerne da questão, se é brutalidade policial, pobreza, mas aí é a música desempenhando esse papel. Se você define música.. Quando as impressões me encorajam a dizer “Fiquem prontos, mudanças vão acontecer”. As pessoas tinham a percepção naquele momento histórico de que mudanças estavam por vir. A música por si só era um prelúdio, ou um momento de inspiração por mudanças, dizendo que era possível.
Aí na geração seguinte, quando as mudanças em tese aconteceram, e você tem pessoas em áreas urbanas criando o hip hop. E coisas perigosas, a brutalidade da polícia. Todas essas coisas aconteceram na música. Então o que você faz? Diz que essa narrativa não é aceitável. Então você mercantiliza isso. Quem são os negros seguros? Qual é o hip hop seguro? Quem são os rappers seguros? E aí mudam a forma da música e falam de outro contexto, de mulheres e coisas assim, fora do contexto social no qual essa manifestação artística começou. Fora do contexto social, e político. Isso é profundo. Então o sistema em si tem as suas formas de desviar os interesses. Nesse sentido, enquanto eu…vou contar uma coisa.
Quando comecei a atuar, eu achei que pudesse ser útil. Tinha minha própria plataforma, poderia fazer o trabalho do grande escritor sul-africano, Athou Fugard, que lidou com a questão do apartheid, posso fazer o seu trabalho, posso expressar o que é importante para mim no mundo.
Era um momento em que as pessoas se uniram em torno de “Libertem, Nelson Mandela”, “Fim do apartheid”, todos os slogans dos quais nos lembramos daquela época, dos anos 70 até os 80. Então eu estava num lugar seguro, para ser sincero. Eu estava num lugar em que podia fazer uma arte cultural, uma produção cultural que expressava minha visão e minha relação com o mundo. Todo mundo aceitou.
Se Nelson Mandela saísse da cadeia, seria diferente. No estrutura da expressão, eu pude fazer um filme, de ação, drama, comédia, sobre lavagem de dinheiro na África do Sul, de uma forma fictícia, de maneira que o governo sul-africano, ainda no apartheid, bane o filme de ser transmitido. De um lado, você está no topo do mundo. Mas vai além disso. Então na África do Sul, com o que estiver acontecendo lá agora, calamidades, ou o que for, isso mudou. Qual o seu papel como cidadão, cidadão primeiro, e artista cultural dentro de uma estrutura. E ao mesmo tempo, navegar pela apatia ou falta de esforço e interesse que acontece na sociedade, no país em que eu vivo. Lida-se com tudo isso. Eu sempre estou em busca, querendo identificar como as pessoas estão passando por um processo de transformação.
Se eu for à Venezuela e uma transformação acontece, e não somente pelos olhos do presidente dinâmico, mas pelos olhos do povo. Como vou celebrar isso e usar isso como uma plataforma para falar do mundo e das possibilidades de transformação de relações políticas, sociais, históricas.
O presidente vem até mim, na primeira reunião o presidente Hugo Chávez diz para mim, eu tinha acabado de chegar do Haiti: “Nós da América Latina devemos muito ao povo haitiano”. Vem uma luz no meu cérebro. Do que ele está falando? O que é essa relação, o que isso significa? Ele sabe mais do Haiti, o povo da Venezuela, com a revolução bolivariana, sabe mais do Haiti do que qualquer outro, do que eu e as pessoas do meu próprio país.
Eles sabem da revolução haitiana. Eu entrei em salas com crianças e perguntei: “Vocês sabem da revolução francesa, americana, e da revolução haitiana?”. Nunca tinham ouvido falar. Navegamos por tudo isso mas aí ele me fala uma coisa e também vemos a ação. Ele falou: a nossa Constituição, com 25 milhões de pessoas, a Constituição cuidou das mulheres, cuidou dos indígenas, isso é o que a gente escreveu na Constituição, mas não cuidamos do que precisamos fazer com os afrodescendentes. Olha meu cabelo, meus lábios, minha avó era africana.
Esse é outro lugar chave. E quais são os projetos políticos para mudar isso? Vamos abordar isso. No momento, você elabora projetos de tal forma que você espera que eles sejam o prelúdio da transformação, não só pelo fornecimento, mas de uma outra maneira de conceber e receber o outro também.
Nos anos 70, as ditaduras militares patrocinadas pelos EUA eram sangrentas, punham tanques nas ruas, prendiam, censuravam. Agora nesta década nós tivemos aqui na América do Sul três presidentes da República eleitos pelo povo que foram tirados sem um tiro, sem uma prisão. O presidente do Paraguai, o bispo Fernando Lugo, de Honduras, Zelaya, e a presidenta Dilma Rousseff. Os três foram derrubados aparentemente “legalmente”. Você acha que o império está mudando de métodos? Está trocando a luva de boxe por uma luva de pelica?
Sempre houve uma mudança. Com Franklin Roosevelt, nos anos 30, ele usava outra política com a América Latina, porque ele estava lidando com as guerras na Europa, Alemanha e tudo isso. A América Latina estava livre de interferência, de certa forma. O entendimento deles da relação histórica entre as Américas sempre esteve lá.
E aí você tem o que acontece ao redor do mundo, depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo mudou. Os impérios coloniais, que dominaram particularmente desde a divisão da África em 1885, mas ao redor do mundo todo. Tudo isso estava desmoronando. A vitória da Revolução Chinesa, em 1949, a Revolução Cubana, em 1959, dez anos depois, as vitórias que aconteciam, não somente por meio de processos eleitorais, e processos políticos, mas as vitórias por meio das armas.
A Guerra do Vietnã, a derrota dos franceses, mudou a complexidade do mundo. Não sou historiador, mas a vitória da Revolução Cubana, nessa região, não em outro lugar do mundo, mas a 90 milhas da costa dos EUA, foi enorme em termos de mudar o direcionamento disso.
Toda ditadura militar, todo país, a eleição de Allende em 1973, e a eventual derrubada dele, foi aquela mudança depois das ditaduras militares e depois só a vontade do povo. O povo determinando no Brasil, na Argentina, na Venezuela, no Uruguai, começou a lutar e usar o processo da base para promover mudanças.
Houve esse momento aqui mas veio depois de toda uma geração jovem ser morta, torturada, artistas, quem fosse de oposição, mandados para o exílio. Tudo aconteceu naquele período. Agora tem um momento que emerge dos bairros, das favelas, do campo, do povo exigindo outra coisa.
O Instituto Carter diz que a melhor eleição já registrada foi a venezuelana, com participação em massa e validação em massa de não haver fraudes. É cômico! Veja o que aconteceu em Honduras recentemente. Pararam a eleição, mudaram a dinâmica, é cômico quando fala da ideia de democracia.
Pessoas usam o processo eleitoral como forma de mudança e foi efetivo porque trouxe várias políticas que começaram a transformar quem somos e o que significamos um para o outro como comunidade e nação. Isso é o que acontece agora diante das nossas caras.
O processo de silenciamento é criminalizar isso. Eu vi isso no meu país. Como vão criminalizar um grupo de mulheres dizendo que estão cansadas de verem negros e negras, comunidade LGBT sendo vítima de violência policial? Nunca olhando para o verdadeiro fundo, para a questão em si.
A história é agora. No século 21. Para falar de raça, algodão e escravidão estão falando como nunca falaram, mas a pesquisa sempre esteve lá. W.E.B. Du Bois fez um incrível trabalho de 1936 a 1941, de reconstrução negra, recusou todas as mentiras que foram contadas nos últimos 70 anos antes da sua publicação, após a Guerra Civil, e o que trouxe para a consciência das pessoas.
Como ex-escravos manipularam as políticas que usaram e abusaram deles para realizar mudanças. A história sempre esteve lá. Esse país e esse continente está em meio a um processo. Está sendo dito toda vez que estamos aqui, pessoas se unindo, os afrodescendentes, trabalhadores, camponeses. A história está sendo feita aqui é nela que precisamos contar para a nossa própria transformação.
O candidato que tem a ampla maioria do apoio da população, que é o Lula, está sendo impedido de ser candidato por crimes que ele não cometeu. Que palavras você teria para os brasileiros, seus amigos, seus admiradores, para um ocasião tão cinzenta, tão turva?
É uma mensagem que Lula deixou comigo quando eu o encontrei. São as primeiras palavras que eu aprendi em português: A luta continua!
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