domingo, 11 de março de 2018

Slavoj Žižek e a ascensão do stalinismo no Brasil, por Fábio de Oliveira Ribeiro


Slavoj Žižek e a ascensão do stalinismo no Brasil

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Cinco notícias chamaram muito minha atenção esta semana. A primeira foi a perseguição policial do professor Carlos Zacarias, da UFBA, porque ele organizou um curso sobre o golpe de estado de 2016. A segunda foi a fala da ex-corregedora do CNJ afirmando que os juízes acham inconstitucional ser investigados. A terceira foi a estranha reunião entre a presidente do STF e o presidente da república após a quebra do sigilo bancário dele. A quarta foi o episódio protagonizado pelo Delegado que exigiu ser chamado de excelência por uma advogada. A quinta é o retorno da censura a propósito da coibição das fake news.

Slavoj Žižek diz num dos seus livros que “...a política ocorre apenas quando a possibilidade de reconfiguração torna-se manifesta.” (Mitologia, Loucura e Riso - A subjetividade no idealismo alemão, Markus Gabriel e Slavoj Žižek, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p. 136).

Quais são as condições de possibilidade que permitem a reconfiguração política da sociedade numa democracia? A primeira e mais óbvia é a realização de eleições periódicas, mas isso não basta. É preciso que todas as forças políticas possam disputar os cargos eletivos, que o resultado das eleições não sejam fraudadas e, principalmente, que o resultado seja respeitado.

A liberdade de consciência, de expressão, de investigação científica e de imprensa são elementos estruturantes do regime democrático. O respeito à livre formação, investigação, transmissão e circulação das opiniões é que permite a pacífica dissolução de consensos políticos que se tornaram ultrapassados e sua substituição por novas configurações sócio-políticas. Mas tudo não seria possível se a censura fosse juridicamente permitida.

E isso nos remete para outra condição de possibilidade da política: o princípio da igualdade. Numa sociedade democrática todos devem estar sujeitos à Lei. A hierarquia entre os cidadãos em razão das funções que eles exercem ou da situação econômica que eles desfrutam não deve possibilitar que uns se tornem irresponsáveis pelos seus atos e que outros sejam forçados a acreditar numa única versão da realidade.

“A dimensão do político só é disponível tendo o logos como condição, como sabemos a partir de Aristóteles. O logos, i.e., a linguagem no sentido de um discurso suscetível de verdade, instaura uma esfera de contingência. Ele define um domínio de possibilidade, pois gera uma distinção entre o verdadeiro e falso: toda afirmação dotada de sentido é verdadeira ou falsa (ou tem qualquer outro valor-de-verdade, dependendo do sistema lógico preferido. O ponto crucial é que a política ocorre apenas quando a possibilidade de reconfiguração torna-se manifesta. E essa manifestação ocorre no discurso. O discurso gera uma variedade de universos de discurso, uma pluralidade de domínios de objetos, como bem sabia Aristóteles. Por esse motivo sua metafísica influencia sua filosofia política: o ser enquanto ser se manifesta apenas na possibilidade e na atualidade da discordância, que é a própria manifestação do logos.” (Mitologia, Loucura e Riso - A subjetividade no idealismo alemão, Markus Gabriel e Slavoj Žižek, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p. 135/136)

O logos político e jurídico brasileiro é ou deveria ser a Constituição Federal de 1988. É ela que garante a igualdade perante a Lei, a pluralidade política, a liberdade de consciência, de expressão e de investigação científica e a realização de eleições e o respeito ao resultado das urnas. Também é ela que proíbe expressamente a censura. Mas esse logos tem sido deliberadamente fragilizado após o Congresso derrubar Dilma Rousseff através de uma fraude jurídica.

Desde o golpe de 2016 a política deixou de ser uma realidade no Brasil. Aqueles que chegaram ao poder não desejam uma reconfiguração da sociedade. Eles querem interditar o debate para garantir sua permanência no poder. Michel Temer não quer ser investigado, os juízes também não. O usurpador não deseja qualquer investigação científica ou debate sobre o que realmente ocorreu durante o Impedimento de Dilma Rousseff e usa a polícia para cercear a liberdade de cátedra. No regime imposto ao país compete aos policiais investigar o que pode ou não ser dito e o que deve ou não ser discutido na universidade. Fortalecidos de maneira inconstitucional, os policiais passaram a acreditar que devem ser chamados de excelência como se fossem os verdadeiros árbitros da realidade jurídica e política do país.

Na obra citada Žižek também disse que a paranóia é “... quem é obcecado por complôs é o líder moderno. É por isso que a fórmula perfeita do stalinismo, sistema da hermenêutica paranóica permanente, é ‘governar é interpretar’ ”. (Mitologia, Loucura e Riso - A subjetividade no idealismo alemão, Markus Gabriel e Slavoj Žižek, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2012, p. 19).

Rubens Casara, Pedro Estevam Serrano e outros estudiosos falam em Estado Pós-Democrático e em Estado de Exceção, mas me parece evidente que vivemos num regime de interpretação permanente. Tudo que consta na constituição é interpretado pelo usurpador, pelos seus deputados e senadores, pela imprensa e pelos juízes (não necessariamente nessa ordem) de maneira a permitir a continuação do novo regime e/ou a impedir a reconfiguração eleitoral da política.

Produto de um processo de Impedimento esquizofrênico (Dilma Rousseff foi deposta pelo Congresso Nacional por causa de algumas pedaladas fiscais para que logo depois o usurpador fosse formalmente autorizado pelos parlamentares a dar pedaladas fiscais maiores e mais frequentes), o regime imposto ao país pelo golpe “com o STF com tudo” se afirma cotidianamente como uma negação paranóica do logos constitucional. Isso pode ser visto nas cinco notícias que foram mencionadas no início. A Pós-Democracia e o Estado de Exceção, portanto, podem ser considerados como se fossem as dimensões políticas e institucionais de um delírio sistematizado. Obcecados pela idéia de hierarquizar a sociedade brasileira, os protagonistas do golpe de 2016 tudo fazem para afastar o povo da arena política de maneira a manter apenas os ladrões no controle do poder. Até quando iremos tolerar esse stalinismo político-jurídico?

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