sábado, 5 de maio de 2018

Todos os medos voltam à Argentina

      Pessoas em frente a uma casa de câmbio em Buenos Aires. MARCOS BRINDICCI REUTERS)

Há muitas décadas, cada movimento exótico do dólar atrai imediatamente a atenção de todos os atores sociais


Ser argentino, entre outras coisas, é ter medo de que algo terrível aconteça em qualquer dia, ao virar a esquina. Todos os argentinos maiores de 50 anos foram contemporâneos e sobreviventes de cinco crises econômicas dramáticas que transformaram suas vidas e deixaram uma marca indelével de alerta e temor. E os que são mais novos receberam, quase por transmissão genética, a memória emotiva desses traumas.

Por isso, nessa semana, quando o peso argentino voltou a afundar, quando sua desvalorização foi a mais alta do continente, quando o Banco Central precisou vender 6 bilhões de dólares (21 bilhões de reais) de reservas sem conseguir conter o aumento do dólar, quando a revista Forbes colocava na manchete: “É hora de fugir rapidamente da Argentina”, todos os medos voltaram a se instalar no coração dos habitantes do país. E o medo, sabemos, não é um componente que ajuda muito a superar uma situação como essa.

O desencadeador da tempestade foi a decisão do Banco Central dos EUA de subir a taxa de bônus do Tesouro norte-americano. Isso causou uma fuga de fundos do mundo inteiro em direção a Wall Street. Os principais investidores se livraram de suas posses em moeda estrangeira e muitas delas desvalorizaram. Mas nenhuma como a moeda da Argentina: o peso caiu aproximadamente 14% em poucos dias.

O castigo extra ocorre por duas razões. Uma delas é conjuntural: no mesmo momento em que a taxa dos bônus norte-americanos subia, a Argentina aplicava um imposto aos investimentos estrangeiros. Os jovens de Wall Street não gostam disso, como pudemos ver. A segunda causa do castigo extra é estrutural. A Argentina tem enormes déficits fiscais e comerciais e os financia com dívida. Sua vulnerabilidade, portanto, é maior do que a dos outros países da região. A saída de capitais foi, então, torrencial. E o peso desvalorizou violentamente.

O medo, essa típica reação argentina, causa muitas vezes uma profecia autocumprida. Há muitas décadas, cada movimento exótico do dólar atrai imediatamente a atenção de todos os atores sociais. Quando o dólar sobe, todos sabem que todos comprarão dólares para precaverem-se de novos aumentos, e então todos compram dólares e provocam esse aumento: isso se chama comportamento em manada. O que poderia ser um problema menor chega então a níveis irracionais.

Mas além disso, os formadores de preço reagem e impulsionam a inflação além do esperado porque especulam em meio à desordem e porque é a maneira histórica que encontraram para se precaver em meio à tempestade. Todos perdem nesse jogo, mas o que fica de fora acredita que perde mais e então também entra. Por isso, as consequências de uma desvalorização são piores na Argentina do que nos outros países da terra. Nessa semana o Brasil, o Chile e o Uruguai tiveram desvalorizações. Ninguém teme que nesses lugares os preços sejam reajustados. Na Argentina, por outro lado, é um fato.

Saída de capitais, respingo inflacionário, aumento de juros para conter os danos, efeitos recessivos de alguma magnitude como consequência dos juros astronômicos e medo porque tudo isso ocorre ao mesmo tempo, e porque o medo chama medo. Com as coisas nesse ponto, a inquietação mais frequente em Buenos Aires, nesses dias, se traduz em uma pergunta que surpreenderia qualquer habitante de outro país: “Cara, qual é o valor do dólar?”.

O Governo afirma que é uma tempestade passageira. (Que outra coisa um Governo poderia dizer?) e argumenta que o estado da economia real, a relação entre a dívida e o que se produz no país, a quantidade de reservas que se mantêm no Banco Central, tudo isso finalmente irá se impor sobre movimentos disruptivos de curto prazo e sobre esse medo tão tipicamente argentino.

Talvez seja assim.

De fato, na sexta-feira o aumento diminuiu levemente.

Mas nesse meio tempo, a Argentina perdeu 7 bilhões de dólares (24 bilhões de reais), a inflação, que foi de 25% em 2017, voltará a subir, e o crescimento da economia será prejudicado. O presidente Mauricio Macri vem aplicando um programa econômico que pretende combinar gradualmente um crescimento leve com uma diminuição progressiva da inflação com um aumento de preços bem radical. Essa rota sinuosa sofreu um duro golpe com o aumento dessa semana. Tudo será, agora, mais complicado. E a maioria dos argentinos, como acontece após cada desvalorização brusca, será um pouco mais pobre. Isso acontece em um momento em que, após a surpreendente vitória eleitoral de outubro, o Governo não para de perder apoio. Macri ainda conserva um respaldo significativo, mas é o mais baixo de todo o seu mandato. A última coisa que ele desejaria era ler essa manchete da Forbes: “É hora de fugir rapidamente da Argentina”.

Os capitais podem voar. Os funcionários podem se demitir. Mas os moradores de um país não têm plano B e, por experiência de duas gerações, quando o dólar se movimenta de maneira brusca, o coração dá um salto, e os medos voltam a se instalar. Como se fosse um povo que vive ao lado de um rio ou em uma região sísmica: sabe reconhecer os indícios de uma nova desgraça, conhece seus efeitos devastadores, mas não tem como evitá-la. Resta a ele, talvez, se for religioso, rezar. Por isso, quando o dólar cai, mesmo que seja pouco, como aconteceu na quinta-feira, a calma volta. Mas depois do acontecido nessa semana, será preciso muito tempo para que o medo vá embora.

Viver assim não é viver, pode-se dizer. De fato, se alguém quer entender por que, nas últimas décadas, a Argentina ficou para trás em relação a muitos países da região, tem nessa dinâmica uma boa explicação.

Macri assumiu com a promessa de que colocaria ponto final nesses intermináveis altos e baixos.

Está longe de conseguir.

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