A naturalização da mentira e as eleições ilegítimas
por Aldo Fornazieri
As eleições presidenciais de 2018 vêm sendo marcadas por uma sucessão de episódios que as tornam cada vez mais ilegítimas. Todo esse processo tem origem no impeachment sem crime de responsabilidade, o que caracterizou o golpe parlamentar-judicial, fato que abriu a porteira para uma sucessão de ilegalidades de juízes de primeira instância, do TRF4, do STJ, do TSE e, principalmente, do Supremo Tribunal Federal. Tudo termina - depois de uma série de relações causais, de cumplicidades criminosas de vários tribunais e juízes, de violações de leis e da Constituição - na imensa manipulação de eleitores, através de mentiras e falsas acusações, patrocinada pela campanha de Bolsonaro.
As ações manipuladoras do Sérgio Moro, numa sucessão de atos políticos para derrubar a presidente Dilma e prender Lula, estão em linha com a escandalosa farsa via redes sociais e Whatsapp, patrocinada pela campanha e pelos agentes bolsonaristas. Também estão em linha com esta campanha as ações do TRF4, cujo presidente, Carlos Eduardo Thompson Flores, é amigo íntimo do general Hamilton Mourão a ponto de participar de uma palestra do mesmo durante a campanha. Ilegítima foi a condenação de Lula sem provas, ilegítima foi a ratificação da condenação de Lula pelos três desembargadores do TRF4, ilegítima foi sua prisão, ilegítima foi a ação de Moro de impedir sua soltura determinada pelo desembargador Favreto, ilegítima foi a ação de Thompson Flores ao validar a ilegitimidade de Moro ao invés de remeter o caso para o colegiado do tribunal, ilegítima foi a decisão dos tribunais superiores ao não concederem habeas corpus a Lula, ilegítima foi a procrastinação de Carmen Lúcia ao não colocar em julgamento a questão da prisão após condenação em segunda instância e ilegítimas foram as pressões de generais sobre os tribunais superiores nas vésperas de julgamentos envolvendo Lula.
Na tutela judicial-militar que vem se estabelecendo sobre as instituições políticas, sobre o Estado de Direito e sobre as liberdades e direitos individuais, os tribunais superiores vêm marcando sua conduta nesses episódios todos por ações definidas por dois tipos de caráter: covardia e cumplicidade. Por um lado, cedem às pressões dos generais e, por outro, são cúmplices adiantando-se até mesmo às pressões e sendo mais proativos no estabelecimento da exceção do que os próprios generais.
Não é um acaso histórico que as eleições presidenciais de 2018 estejam sendo marcadas e manchadas por uma imensa máquina de mentiras, de calúnias e de difamações contra os adversários do bolsonarismo. Esta farsa e sua cultura vieram sendo preparadas pelas ilegitimidades e pelas ilegalidades, pois estas são os punhais terríveis que, primeiro, assassinam a verdade, o respeito, a decência e a moralidade. Destruídas a verdade e a moralidade das leis e da Constituição, naturalizadas as ilegalidades e as ilegitimidades, depois, qualquer mentira prospera, pois o discernimento e a razão justos são igualmente destruídos pela racionalização da perversidade e da maldade. É da afirmação da validez do mal do que se está falando. Repita-se o que dissemos no último artigo: Nada de digno, nada de edificante, nada de justo surgirá sobre a montanha de mentiras, da falta de escrúpulos, da falta de moralidade erguida pela campanha de Bolsonaro.
Com a naturalização das mentiras perdeu-se o metro e o critério do justo e do verdadeiro. Com isto naturaliza-se também a incitação à violência, ao estupro, ao preconceito, à discriminação, ao racismo, à misoginia, ao machismo, à homofobia e ao golpe. Não existem mais as barreiras sociais e morais para que estas manifestações do mal se explicitem. Senhores e senhoras "do bem", das elites, perderam qualquer escrúpulo em manifestar essas vocações perversas e pervertidas da conduta humana. Todos os demônios que estavam acorrentados nas almas de cada um por uma barreira moral e social se soltaram e a sociedade brasileira revela a sua verdadeira face: perversa, cruel, imoral, tirânica, violenta, assassina e desumana.
A banalidade da mentira precede e acompanha a banalidade do mal. O aparecimento da banalidade da mentira é o sintoma, o prelúdio, o anúncio do surgimento efetivo do fascismo. A banalidade da mentira é o primeiro ato do nascimento de um movimento fascista organizado que usará a violência sistemática para conquistar e/ou manter-se no poder.
Está mais do que documentado que os movimentos fascistas e nazistas que ascenderam ao poder, mesmo por eleições, usaram a mentira sistemática em sua propaganda para manipular e convencer as pessoas. A extrema-direita de hoje usa o mesmo expediente dos movimentos fascistas e nazistas originários. O que mudou são apenas os meios de propaganda. Também está documentado que o sucedâneo da mentira é o uso da violência sistemática e organizada. O que se vê hoje é a violência ainda dispersa, praticada pelos devotos do candidato e líder. Se tudo isto não for contido a tempo, amanhã, possivelmente com o domínio do poder, será fácil transformar o PSL num movimento fascista ou fazer surgir esse movimento à margem mesmo dos partidos.
Também está solidamente documentado o fato de que as instituições judiciais e policiais foram omissas ou criminosamente cúmplices dos movimentos totalitários onde estes chegaram ao poder. Atos dessa omissão e dessa cumplicidades nós estamos assistindo nos últimos anos no Brasil. Agora mesmo se verá se o TSE será omisso ou criminosamente cúmplice desta montanha de mentiras, desta farsa em que a campanha de Bolsonaro transformou essas eleições via Whatsapp.
Com a naturalização da mentira e com a perda do metro e do critério do que é justo e verdadeiro as mentiras são mentiras e são transformadas em verdades. Quando o filho de Bolsonaro afirma que basta um soldado e um cabo para fechar o STF quer-se que isto não seja levado a sério, mas ao mesmo tempo é uma ameaça. Quanto Bolsonaro incentiva a violência, o estupro e o racismo é a mesma coisa: é brincadeira, mas é sério. É brincadeira para evitar a reprovação e a tipificação de crimes, mas é sério porque as palavras têm consequências, as palavras intimidam, matam, estupram, discriminam.
E o povo? Por que o povo se deixa enganar e adere a propostas autoritárias? Existem várias explicações históricas, algumas de caráter geral, outras relacionadas a circunstâncias e conjunturas específicas de cada país, que evidenciam as razões para essa conduta dos povos. Não se trata aqui de analisá-las. Mas no caso específico da candidatura de Bolsonaro, apenas uma minoria age e adere a ela de forma consciente, sabendo que ele expressa uma perspectiva autoritária. Mas os eleitores em geral, como mostram as pesquisas, acreditam que Bolsonaro defende mais a democracia do que Haddad.
Em relação a esses eleitores, que de um ponto de vista progressista, são ingênuos, manipulados e enganados, existem explicações mais prosaicas acerca de sua adesão ao bolsonarismo. Parte deles aderem por quererem mudanças. Vêem em Bolsonaro uma encarnação mais efetiva de mudança do que em Haddad. Vêem no candidato do PSL alguém que está contra tudo o que está aí, um candidato anti-sistema. Identificam no sistema a causa das mazelas do Brasil e de sofrimento do povo.
A Filosofia Política também pode oferecer algumas explicações para a conduta desses eleitores manipulados. Tome-se as explicações de Maquiavel e de Shakespeare, que são coincidentes. Eles indicam que nos momentos de transição, de declínio de velhas lideranças e de ascensão de novas, o povo se fixa mais no presente e no que é novo do que no passado ou em algo que o represente. Os povos apreciam as frivolidades recém-nascidas ou recém-chegadas. As pessoas vêem ouro onde há apenas um pó dourado e não conseguem ver o ouro verdadeiro sob o pó.
Ou tome-se Hegel: na opinião pública está a verdade e o erro infinito. Ela sabe o que é o verdadeiro bem, mas quando julga costuma aplicar golpes lamentáveis. Isto acontece porque o povo se engana e porque é enganado. Mas se existe um líder autêntico e que conta com a confiança do povo, basta que lhes diga onde está o critério da verdade e o povo o perceberá. Lamentavelmente, neste momento, o único líder que pode fazer isto está preso e não pode falar.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
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