domingo, 21 de outubro de 2018

Carta de Ricardo Kotscho aos netos: eu decidi ficar aqui. Quem me acompanha?

Carta de Ricardo Kotscho aos netos


“Não podemos desistir do Brasil!” (as últimas cinco palavras ditas pelo meu amigo Eduardo Campos, ao final da entrevista no Jornal Nacional, na véspera da sua morte num acidente de avião, quando era candidato a presidente da República, em agosto de 2014).

Meus queridos netos, Laura, João, Isabel, André e Olguinha,
tenho me lembrado muito nos últimos dias desta frase de Eduardo Campos, que entrevistei várias vezes, jovem político pernambucano que era apaixonado pelo Brasil e seu povo, e sempre falava com muito entusiasmo das nossas potencialidades como nação.

Tão apaixonado pelo Brasil como ele eram meus pais, que não se cansavam de me dizer quando eu era pequeno: “Este aqui é o melhor país do mundo. Você deu muita sorte de ter nascido aqui”.
Foi mesmo uma sorte, porque nasci poucas semanas depois de meus pais chegarem ao porto de Santos, num navio de refugiados de guerra que sobreviveram à grande tragédia do nazifascismo que tinha varrido a Europa dos nossos antepassados.
Grávida de sete meses, vovó Bete passou muito mal durante a viagem e por pouco não nasci no navio, que era de bandeira francesa.
Assim começou a vida da nossa família aqui, naqueles tempos difíceis do pós-guerra, quando a fome e o medo ainda grassavam em muitos países europeus.
Isso foi há exatos 70 anos, a minha idade.

Por que estou me lembrando de tudo isso agora, nestes dias que antecedem mais uma eleição direta para presidente da República, um direito duramente reconquistado pela minha geração, depois dos longos anos de ditadura?

É para pedir a vocês que não desanimem diante das enormes dificuldades que nosso país está enfrentando neste momento, com nossa democracia correndo mais uma vez sério risco de sobrevivência.
A vida dos países, assim com as nossas, é uma montanha-russa de altos e baixos, que vai alternando sentimentos de tristeza e de alegria, mas nunca devemos perder as esperanças em nós mesmos para tomar o destino nas nossas mãos.
Sei que no colégio de vocês, onde eu e seus pais também estudaram, muitos colegas estão falando em ir embora do Brasil, com medo do que pode acontecer depois da eleição.
Na nossa pequena família mesmo, temos exemplos: os 3 filhos e os 10 netos do tio Ronaldo, meu único irmão, já foram embora, vivem hoje nos Estados Unidos e na Inglaterra, e nem pensam em voltar.
Semana passada, ele e a tia Eliza também cuidaram de tirar os documentos de cidadania italiana, a que têm direito.
Ontem, o consulado de Portugal em São Paulo suspendeu a concessão de vistos tamanha era a procura de brasileiros querendo ir embora.

Não, o Brasil não vai acabar, mas pode ficar muito ruim de se viver aqui, eu sei, e agora estou começando a sentir receio de ficar sozinho porque não tenho mais idade nem saúde para ir embora.

Para falar bem a verdade, ainda que pudesse, eu não teria vontade de deixar o Brasil.
Já vivi esta experiência de passar dois anos fora, trabalhando na Alemanha, e morria de saudades da minha terra e dos meus amigos.
Meus pais tinham razão: apesar de todos os problemas e ameaças, injustiças e atrocidades, ainda não inventaram um país melhor para se viver.
Só aqui me sinto cidadão pleno, faço parte da paisagem e da história, não quero mais viver como estrangeiro em outro lugar, por mais belo e tranquilo que seja.
Como jornalista, vocês sabem, tive a oportunidade de viajar por todos os continentes, conheci tudo do bom e do melhor, e também do pior, e sempre queria voltar logo porque aqui é o meu lugar, lembrando aquela velha canção.
Nas próximas eleições, Laura e João já poderão votar para presidente e, quem sabe, a geração de vocês possa ajudar a construir um país mais solidário e fraterno, com menos desigualdades e intolerância como está acontecendo agora.
Basta pensar que, apenas quatro anos atrás, o Brasil estava próximo do pleno emprego, as pessoas faziam planos para melhorar de vida, ninguém se matava por causa de política e a gente só pensava em viajar para o exterior a passeio.
As coisas podem mudar para melhor outra vez. Só não sei quando, nem se terei tempo de ver, mas vocês certamente ainda poderão sentir novamente orgulho de ser brasileiros, ainda que seja com a idade que tenho hoje.
Pode demorar, vai depender do que vocês forem capazes de fazer e construir.
Só fico frustrado e triste por não poder deixar para vocês um país melhor do que aquele que meus pais me deixaram.
Sou obrigado a reconhecer o fracasso da minha geração, que passou a vida lutando por democracia e venceu muitas batalhas, mas agora deixa de herança o sofrimento de milhões de famílias sem trabalho, voltando ao mapa da pobreza, me fazendo lembrar das histórias dramáticas que meus pais contavam dos países destruídos pela guerra.
Aqui não tivemos guerra, mas fantasmas que pareciam definitivamente enterrados voltam a nos assombrar à luz desses dias sombrios, de volta a um passado tenebroso.
Se cada um, no entanto, fizer a sua parte e não entregar os pontos, boto fé que a geração de vocês poderá fazer o Brasil voltar a ser o que já foi, a terra prometida dos primeiros Kotscho que para cá vieram.
Eu já decidi: vou ficar.
Quem me acompanha?
E vida que segue.

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