domingo, 21 de outubro de 2018

Charles Baudelaire: Os olhos dos pobres


Nascido em Paris em 9 de abril de 1821, Baudelaire foi um dos maiores poetas franceses de todos os tempos. Alguns o consideram um antecessor do parnasianismo, ou um romântico exacerbado. Pioneiro da linguagem moderna, impôs à realidade uma submissão lírica. Embora muito criticado, tinha entre seus admiradores homens como Victor Hugo, Gustave Flaubert, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.

Tanto As Flores do Mal como Pequenos Poemas em Prosa (póstumos, 1869), do qual extraímos o fragmento desta edição, introduziram elementos novos na linguagem poética, fundindo opostos existenciais como o sublime e o grotesco.

Baudelaire foi também um exímio tradutor da obra do poeta e contista norte-americano Edgard Allan Poe

Em sua buliçosa vida, registra-se também a participação na Revolução de 1848, na França. À época, ocorreram revoluções democráticas e populares em toda a Europa Central e Oriental. A Primavera dos Povos, como ficou conhecido esse período revolucionário, decorreu da existência de regimes autocráticos, de crises econômicas, de falta de representação política das classes médias e da dominação imperial. 

Foram revoluções de caráter liberal, democrático e nacionalista, iniciadas por membros da burguesia e da nobreza que exigiam governos constitucionais. Contaram com a participação em massa do nascente proletariado e dos camponeses, que faziam seu batismo de fogo nas trincheiras da luta de classes. A Primavera dos Povos foi um importante elo no processo de acumulação de forças que resultaria anos depois na Comuna de Paris (1871).

Charles Baudelaire influenciou direta e indiretamente as gerações posteriores de poetas, formadas no início do século 20 e marcou profundamente toda a moderna poesia ocidental.

Os Pequenos Poemas em Prosa, também conhecidos como Spleen de Paris, são 51 poemas escritos em prosa poética. Foram criados entre 1855 e 1864. Quarenta deles foram publicados em diferentes Diários de seu tempo; os demais tiveram publicação póstuma, entre 1867 e 1869.

O título Pequenos Poemas em Prosa com freqüência vai seguido do subtítulo Spleen de Paris (que se assemelha a títulos de duas partes de As Flores do Mal: Spleen e Ideal e Quadros parisinos. Efetivamente, em vida, Baudelaire mencionou esta expressão para designar sua recopilação que completava à medida que se inspirava e com esta podia realizar publicações. O jornal Le Figaro publicou quatro partes pertencentes aos Pequenos Poemas em Prosa sob o título Spleen de Paris. Isto explica a estreita associação dos dois títulos. 

Os olhos dos pobres é ilustrativo de como Baudelaire lidava com os contrastes, abordando com perfeição o recorrente tema do amor e da compreensão entre os seres humanos.


Os olhos dos pobres 

De Le Spleen de Paris (Os Pequenos Poemas em Prosa) 

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será mais fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. 

Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. 

De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança. 

Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. 

Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda. 
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?" 

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!

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LES YEUX DES PAUVRES 
XXVI 

Ah ! vous voulez savoir pourquoi je vous hais aujourd’hui. Il vous sera sans doute moins facile de le comprendre qu’à moi de vous l’expliquer ; car vous êtes, je crois, le plus bel exemple d’imperméabilité féminine qui se puisse rencontrer. Nous avions passé ensemble une longue journée qui m’avait paru courte. Nous nous étions bien promis que toutes nos pensées nous seraient communes à l’un et à l’autre, et que nos deux âmes désormais n’en feraient plus qu’une ; — un rêve qui n’a rien d’original, après tout, si ce n’est que, rêvé par tous les hommes, il n’a été réalisé par aucun. Le soir, un peu fatiguée, vous voulûtes vous asseoir devant un café neuf qui formait le coin d’un boulevard neuf, encore tout plein de gravois et montrant déjà glorieusement ses splendeurs inachevées. Le café étincelait. Le gaz luimême y déployait toute l’ardeur d’un début, et éclairait de toutes ses forces les murs aveuglants de blancheur, les nappes éblouissantes des miroirs, les ors des baguettes et des corniches, les pages aux joues rebondies traînés par les chiens en laisse, les dames riant au faucon perché sur leur poing, les nymphes et les déesses portant sur leur tête des fruits, des pâtés et du gibier, les Hébés et les Ganymèdes présentant à bras tendu la petite amphore à bavaroises ou l’obélisque bicolore des glaces panachées ; toute l’histoire et toute la mythologie mises au service de la goinfrerie. Droit devant nous, sur la chaussée, était planté un brave homme d’une quarantaine d’années, au visage fatigué, à la barbe grisonnante, tenant d’une main un petit garçon et portant sur l’autre bras un petit être trop faible pour marcher. Il remplissait l’office de bonne et faisait prendre à ses enfants l’air du soir. Tous en guenilles. Ces trois visages étaient extraordinairement sérieux, et ces six yeux contemplaient fixement le café nouveau avec une admiration égale, mais nuancée diversement par l’âge. Les yeux du père disaient : « Que c’est beau ! que c’est beau ! on dirait que tout l’or du pauvre monde est venu se porter sur ces murs. » — Les yeux du petit garçon : « Que c’est beau ! que c’est beau ! mais c’est une maison où peuvent seuls entrer les gens qui ne sont pas comme nous. » — Quant aux yeux du plus petit, ils étaient trop fascinés pour exprimer autre chose qu’une joie stupide et profonde. Les chansonniers disent que le plaisir rend l’âme bonne et amollit le cœur. La chanson avait raison ce soir-là, relativement à moi. Non-seulement j’étais attendri par cette famille d’yeux, mais je me sentais un peu honteux de nos verres et de nos carafes, plus grands que notre soif. Je tournais mes regards vers les vôtres, cher amour, pour y lire ma pensée ; je plongeais dans vos yeux si beaux et si bizarrement doux, dans vos yeux verts, habités par le Caprice et inspirés par la Lune, quand vous me dites : « Ces gens-là me sont insupportables avec leurs yeux ouverts comme des portes cochères ! Ne pourriez-vous pas prier le maître du café de les éloigner d’ici ? » Tant il est difficile de s’entendre, mon cher ange, et tant la pensée est incommunicable, même entre gens qui s’aiment! 

[Œuvres complètes de Charles Baudelaire, Michel Lévy frères, 1869, IV. Petits Poèmes en prose, Les Paradis artificiels (pp. 75-77)]

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