por Nirlando Beirão
A História é pontilhada de cavalos de Troia que nações incautas e incultas acolhem. O Brasil mereceria um capítulo à parte nas pesquisas de Barbara Tuchman
Mauro Pimental/AFP

O curto-circuito que apaga a sensatez usa a massa de manobra dos idiotas, de Troia ao Brasil 16/18. Mas quem promove a estultice são os donos do poder e dos privilégios.
A historiadora americana Barbara Tuchman cunhou a expressão “marcha da insensatez” (o original folly é mais contundente) para designar situações em que nações inteiras se deixam cegar por um trágico surto de estupidez coletiva, agindo alegremente contra seus próprios interesses.
Tanto Fernando Henrique quanto a revista Veja andaram exumando recentemente a expressão, eles que são, eles próprios, o ex-presidente e a revista, promotores encarniçados da insensatez em marcha no Brasil.
Açularam a histeria antiesquerda; com a ajuda dos meios de comunicação canalhas e de um Judiciário que se veste de corvo e age como pavão, recorreram a um golpe antidemocrático contra a escolha soberana do povo; empossaram uma claque bandida; e engordaram, na frustração popular, um fenômeno perigosamente caricato chamado Jair Bolsonaro, do qual pretendem agora se eximir, em requintes de farisaísmo.
Barbara Tuchman, em seu A Marcha da Insensatez, pergunta-se, de cara, o que teria levado os combativos troianos – senão uma repentina estupidez – a acreditarem que, após dez anos de batalhas épicas, aquele gigantesco cavalo de madeira seria de fato um tributo à sua valentia oferecido por inimigos gregos em retirada?
A história da humanidade é pontilhada de cavalos de Troia que nações incautas e incultas tolamente acolhem. O Brasil mereceria um capítulo à parte nas pesquisas de Barbara Tuchman, que, infelizmente, já se foi. Estamos o tempo todo renovando o nosso estoque de idiotices.
A cilada do impeachment, em 2016, de cujo bojo saíram os Michel Temer, as Dodges, os Geddeis e Jucás, os estancieiros latifundiários, os fundamentalistas de toga e as brigadas pentecostais do atraso, não chega sequer a merecer as honras de uma epopeia homérica.
Com o impoluto Eduardo Cunha fazendo-se de protagonista. não passou de uma opereta de arrabalde, um folhetim de quinta, uma chanchada botocuda, ainda que de efeitos devastadores para quem está alijado do banquete do poder e para a minoria que, mesmo golpeada, consegue ser lúcida e consciente.
Os casos clássicos de estupidez suicida dissecados por Barbara Tuchman, além do disparate troiano, foram: a rendição de Montezuma às mambembes ainda que cruéis tropas de Cortés em 1520; o comportamento autista do establishment do Vaticano em face da crise da Igreja e a reforma protestante; a perda das colônias americanas pelo doidivanas rei inglês George III; o ataque japonês a Pearl Harbour em 1942, compelindo os Estados Unidos a entrarem numa guerra da qual queriam distância; os repetidos erros na dantesca aventura americana no Vietnã nas décadas de 60 e 70. Assim, o Brasil parvo e palerma de 2016/18 está, de acordo com a historiadora, em ilustre companhia.
Ms. Tuchman escreveu um punhado de livros que nem Olavo de Carvalho haveria de classificar como literatura marxista. Eles de certa forma se completam. Publicado em 1984, A Marcha da Insensatez expande-se e se ilumina ao lado de A Torre do Orgulho, que é anterior, de 1966.
O foco é a Europa entre 1890 e 1914, a Europa pré Primeira Guerra, a Europa da assim chamada belle époque – que ecoa na imaginação histórica como a era dourada na qual uma elite trepidante desfrutou a vida num cenário de bailes, cabarés, cancan, champanhe, sobrecasaca, cartola e polainas, vestidos vaporosos de melindrosas e de uma irresponsabilidade ultrajante. As telas de Toulouse-Lautrec exprimem o momento.
Uma época nem um pouco belle, afirma Ms. Tuchman. Germinavam, no substrato da dissipação insensata dos bien nés, de “uma meia dúzia de privilegiados da alta-roda”, os impasses tóxicos que iriam conduzir à carnificina do conflito mundial, desencadeada por insatisfações regionais que as monarquias abstraídas e as potências coloniais teimavam em ignorar.
A guerra resultou em 10 milhões de mortos, 20 milhões de feridos, 3 milhões de viúvas, 6 milhões de órfãos, 10 milhões de refugiados. “Um fenômeno tão maligno como a Grande Guerra não podia surgir de uma época de ouro”, observa ela.
A enganação patriótica falou mais alto do que o sentimento internacionalista e a solidariedade de classe, no qual acreditaram em vão os socialistas, e, assim, cabeças coroadas, políticos de gabinete, a nobiliarquia ociosa e comandantes militares convenceram a fina flor da juventude a ir doar sua vida em prol dos sanguessugas da nação. Desertores de consciência eram sumariamente fuzilados. A marcha da insensatez da Primeira Guerra cobrou sangue, dor e luto.
Os blecautes coletivos da razão e do bom senso suscitam para a historiadora americana perguntas que valem mais do que respostas.
Por que sucessivos ministérios de Jorge III, rei da Inglaterra, preferiram coagir em vez de conciliar as colônias da América, apesar de advertidos inúmeras vezes de que os danos advindos de tal política seriam provavelmente maiores do que eventuais vantagens a serem assim obtidas?
Por que Carlos XII da Suécia, depois Napoleão, depois Hitler invadiram a Rússia sem considerar os desastres sofridos pelos respectivos predecessores?
Por que Montezuma, líder de um exército feroz e disposto à luta, numa cidade de 300 mil habitantes, sucumbiu passivamente a um bando de poucas centenas de invasores alienígenas, mesmo depois de os intrusos se terem revelado criaturas obviamente humanas, e não deuses?
Por que os militares extremistas japoneses e os politiqueiros inflamados foram provocar os Estados Unidos em Pearl Harbour, chamando-o para uma briga que o Japão sabia não ter condições de vencer?
Por que os americanos prolongaram a sua intervenção desastrosa no Vietnã quando os governantes cínicos e os comandantes militares estavam convencidos da derrota, mas ainda assim continuavam pagando pela farsa com o sangue da juventude do país?
Por que os capitalistas insistem – perguntou-se a historiadora dos palermas – na tônica do “crescimento” quando tal coisa, provadamente, vem causando o esgotamento de três elementos básicos da vida no planeta: terra, água, ar puro?
Cabe atualizar o questionário: por que haveria uma nação de eleger pelo voto um celerado cuja primeira providência será a de cassar o voto de quem quer que seja, a começar pelos seus próprios eleitores? A idiotice é de fato contagiosa.
Dúvidas não cabem no quadro da irracionalidade galopante; certezas costumam ser o atalho para a catástrofe. 7 a 1 para os cretinos tão seguros de si. O paradoxo de Barbara Tuchman inclui, agora, os sorridentes bruzundangas das ruas tingidas do canarinho-CBF, hoje no desfrute festivo do triunfo de sua própria insensatez.
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