sábado, 3 de novembro de 2018

As massas se deixam levar, mas a burrice coletiva começa na elite


A História é pontilhada de cavalos de Troia que nações incautas e incultas acolhem. O Brasil mereceria um capítulo à parte nas pesquisas de Barbara Tuchman

            Mauro Pimental/AFP

O curto-circuito que apaga a sensatez usa a massa de manobra dos idiotas, de Troia ao Brasil 16/18. Mas quem promove a estultice são os donos do poder e dos privilégios.

A historiadora americana Barbara Tuchman cunhou a expressão “marcha da insensatez” (o original folly é mais contundente) para designar situações em que nações inteiras se deixam cegar por um trágico surto de estupidez coletiva, agindo alegremente contra seus próprios interesses.

Tanto Fernando Henrique quanto a revista Veja andaram exumando recentemente a expressão, eles que são, eles próprios, o ex-presidente e a revista, promotores encarniçados da insensatez em marcha no Brasil.

Açularam a histeria antiesquerda; com a ajuda dos meios de comunicação canalhas e de um Judiciário que se veste de corvo e age como pavão, recorreram a um golpe antidemocrático contra a escolha soberana do povo; empossaram uma claque bandida; e engordaram, na frustração popular, um fenômeno perigosamente caricato chamado Jair Bolsonaro, do qual pretendem agora se eximir, em requintes de farisaísmo.

Barbara Tuchman, em seu A Marcha da Insensatez, pergunta-se, de cara, o que teria levado os combativos troianos – senão uma repentina estupidez – a acreditarem que, após dez anos de batalhas épicas, aquele gigantesco cavalo de madeira seria de fato um tributo à sua valentia oferecido por inimigos gregos em retirada?

A história da humanidade é pontilhada de cavalos de Troia que nações incautas e incultas tolamente acolhem. O Brasil mereceria um capítulo à parte nas pesquisas de Barbara Tuchman, que, infelizmente, já se foi. Estamos o tempo todo renovando o nosso estoque de idiotices.

A cilada do impeachment, em 2016, de cujo bojo saíram os Michel Temer, as Dodges, os Geddeis e Jucás, os estancieiros latifundiários, os fundamentalistas de toga e as brigadas pentecostais do atraso, não chega sequer a merecer as honras de uma epopeia homérica.

Com o impoluto Eduardo Cunha fazendo-se de protagonista. não passou de uma opereta de arrabalde, um folhetim de quinta, uma chanchada botocuda, ainda que de efeitos devastadores para quem está alijado do banquete do poder e para a minoria que, mesmo golpeada, consegue ser lúcida e consciente.

Os casos clássicos de estupidez suicida dissecados por Barbara Tuchman, além do disparate troiano, foram: a rendição de Montezuma às mambembes ainda que cruéis tropas de Cortés em 1520; o comportamento autista do establishment do Vaticano em face da crise da Igreja e a reforma protestante; a perda das colônias americanas pelo doidivanas rei inglês George III; o ataque japonês a Pearl Harbour em 1942, compelindo os Estados Unidos a entrarem numa guerra da qual queriam distância; os repetidos erros na dantesca aventura americana no Vietnã nas décadas de 60 e 70. Assim, o Brasil parvo e palerma de 2016/18 está, de acordo com a historiadora, em ilustre companhia.

Ms. Tuchman escreveu um punhado de livros que nem Olavo de Carvalho haveria de classificar como literatura marxista. Eles de certa forma se completam. Publicado em 1984, A Marcha da Insensatez expande-se e se ilumina ao lado de A Torre do Orgulho, que é anterior, de 1966.

O foco é a Europa entre 1890 e 1914, a Europa pré Primeira Guerra, a Europa da assim chamada belle époque – que ecoa na imaginação histórica como a era dourada na qual uma elite trepidante desfrutou a vida num cenário de bailes, cabarés, cancan, champanhe, sobrecasaca, cartola e polainas, vestidos vaporosos de melindrosas e de uma irresponsabilidade ultrajante. As telas de Toulouse-Lautrec exprimem o momento.

Uma época nem um pouco belle, afirma Ms. Tuchman. Germinavam, no substrato da dissipação insensata dos bien nés, de “uma meia dúzia de privilegiados da alta-roda”, os impasses tóxicos que iriam conduzir à carnificina do conflito mundial, desencadeada por insatisfações regionais que as monarquias abstraídas e as potências coloniais teimavam em ignorar.

A guerra resultou em 10 milhões de mortos, 20 milhões de feridos, 3 milhões de viúvas, 6 milhões de órfãos, 10 milhões de refugiados. “Um fenômeno tão maligno como a Grande Guerra não podia surgir de uma época de ouro”, observa ela.

A enganação patriótica falou mais alto do que o sentimento internacionalista e a solidariedade de classe, no qual acreditaram em vão os socialistas, e, assim, cabeças coroadas, políticos de gabinete, a nobiliarquia ociosa e comandantes militares convenceram a fina flor da juventude a ir doar sua vida em prol dos sanguessugas da nação. Desertores de consciência eram sumariamente fuzilados. A marcha da insensatez da Primeira Guerra cobrou sangue, dor e luto.

Os blecautes coletivos da razão e do bom senso suscitam para a historiadora americana perguntas que valem mais do que respostas.

Por que sucessivos ministérios de Jorge III, rei da Inglaterra, preferiram coagir em vez de conciliar as colônias da Amé­rica, apesar de advertidos inúmeras vezes de que os danos advindos de tal política seriam provavelmente maiores do que eventuais vantagens a serem assim obtidas?

Por que Carlos XII da Suécia, depois Napoleão, depois Hitler invadiram a Rússia sem considerar os desastres sofridos pelos respectivos predecessores?

Por que Montezuma, líder de um exército feroz e disposto à luta, numa cidade de 300 mil habitantes, sucumbiu passivamente a um bando de poucas cente­nas de invasores alienígenas, mesmo depois de os intrusos se terem reve­lado criaturas obviamente humanas, e não deuses?

Por que os militares extremistas japoneses e os politiqueiros inflamados foram provocar os Estados Unidos em Pearl Harbour, chamando-o para uma briga que o Japão sabia não ter condições de vencer?

Por que os americanos prolongaram a sua intervenção desastrosa no Vietnã quando os governantes cínicos e os comandantes militares estavam convencidos da derrota, mas ainda assim continuavam pagando pela farsa com o sangue da juventude do país?

Por que os capitalistas in­sistem – perguntou-se a historiadora dos palermas – na tônica do “crescimento” quando tal coisa, provadamente, vem causando o esgotamento de três elementos básicos da vida no pla­neta: terra, água, ar puro?

Cabe atualizar o questionário: por que haveria uma nação de eleger pelo voto um celerado cuja primeira providência será a de cassar o voto de quem quer que seja, a começar pelos seus próprios eleitores? A idiotice é de fato contagiosa.

Dúvidas não cabem no quadro da irracionalidade galopante; certezas costumam ser o atalho para a catástrofe. 7 a 1 para os cretinos tão seguros de si. O paradoxo de Barbara Tuchman inclui, agora, os sorridentes bruzundangas das ruas tingidas do canarinho-CBF, hoje no desfrute festivo do triunfo de sua própria insensatez.

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