quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

O Ilusionista, por Fernando Horta


O Ilusionista, por Fernando Horta

A arte do ilusionismo tem como centro a ideia de que se pode fazer ver tudo o que é desimportante para o objetivo final. Tudo, menos o essencial. Naquela fração de segundo, no momento de desatenção ou deslumbramento, o ilusionista realiza o ato que é central. Deixa-se tudo à mostra. Mostra-se qualquer coisa que impressione, que faça os olhos brilharem, enquanto o que realmente é importante passa batido. Mas ainda que não a vejamos, a ação está lá. Encoberta pela ilusão, pela roupa do mágico, pelas luzes, a pouca roupa da assistente de palco, pelos sons ou quaisquer outros meios usados para iludir, mas ela – a ação – está lá.

O fascista é um excelente ilusionista social, mas não o é por intenção própria. Há um segundo ente trabalhando por trás da cena. Este segundo agente, tenta fazer do show, da pirotecnia e da ilusão algo lucrativo. Esta segunda força não pode ser confundida com a primeira e os dois – o ilusionista e o indivíduo por trás da cena – têm interesses e objetivos diferentes.

Há uma comoção na sociedade brasileira após a “possession” de Jair Bolsonaro. Não falo aqui do desespero dos jornalistas, que vão aprendendo diariamente que os interesses dos seus patrões diferem dos seus. Jornalista defende liberdade de expressão, autonomia e democracia. Empresa de jornalismo defende o lucro. Também não falo das representações estrangeiras minguadas e que abandonaram a parada militar que Bolsonaro fez. Nosso ministro das relações exteriores é bastante incompetente para desandar esta parte do governo sozinho. Falo de Michele Bolsonaro e os “planos diabólicos” dos fascistas para dominar o mundo.

Da extrema direita alfáfica, à esquerda namastê, há uma comoção com o discurso em “libras” da esposa do fascista. Li que “vamos ter problemas” porque ela é “perita” em dissimular e chamar atenções, “retirando” as luzes da ignorância e despreparo do fascista. Li também que tudo isto é “muito bem pensado” para dar ao fascista “uma válvula de escape” caso o governo naufrague antes do previsto.

Aprendi, com duas pessoas muito inteligentes, que política se faz com o alinhamento de gestos, ações e resultados. E, em caso de este alinhamento não existir, tudo não passará de um enorme erro. Como historiador aprendi também que é quem conta a história que dá a ela uma racionalidade. Muitas vezes – senão todas – externa ao que os agentes, no momento das ações, tinham.

Acho que todos estamos superdimensionando o problema e superlativando as coisas.

Li que a extrema direita “organizada, veio para ficar” e que o movimento do neofascismo brasileiro seria duradouro. Há um júbilo na extrema direita e um temor na esquerda de que estejamos enfrentando algo aparentemente impossível de ser contraposto. E, torno a dizer, estamos todos errados.

O fascismo não é organizado, a extrema direita não tem planejamento. Jair Bolsonaro é um tosco descompensado e Michele é apenas um pavão que quer aproveitar ao máximo seus minutos de fama. Mais importante ainda, o fascismo não é inteligente e não é capaz. Não consegue alinhar gestos, ações e resultados numa política coerente. Nunca foi, desde Mussolini e Hitler até Bolsonaro.

Num primeiro momento, muitos devem estar me pensando louco. Afinal, o nazifascismo quase dominou o mundo e Bolsonaro foi eleito presidente. “É preciso reconhecer as coisas aí” dirão muitos. E este é um claro exemplo de racionalidade “emprestada”. Estamos emprestando a Michele Bolsonaro uma racionalidade que ela simplesmente não tem, assim como, por muitos anos, “emprestaram” a Hitler a noção de “gênio” alemão a “cooptar” e enganar todo um país.

A historiografia de explicação do nazi-fascismo já deu voltas e esta noção se mostrou equivocada. Se Hitler fosse “gênio” teria aproveitado as inúmeras chances que o ocidente lhe deu de não ir à guerra, teria crescido e desenvolvido suas forças produtivas sob o manto dos pactos de não-agressão por muito mais tempo. Se Hitler fosse “gênio” não teria ordenado resistência “casa a casa” ao seu exército espalhado por toda a Europa. Michele Bolsonaro teria feito um discurso em Libras (gestos), acompanhado de leis protegendo a inclusão social, econômica e educacional das pessoas portadoras de necessidades especiais (ações) e, assim, se poderiam esperar resultados políticos concretos.

O que aconteceu foi um puro show de ilusionismo em que os atores principais não sabem direito o que estão fazendo lá. Nenhum dos Bolsonaros entendeu ainda o que é ser presidente. Pensam que é a possibilidade de serem os “valentões” do pedaço. Podendo agredir e ameaçar quem quer que seja, dentro ou fora do país. É um caso estranho de que o ilusionista não sabe efetivamente como o truque funciona. E isto sinaliza problemas.

Quem organiza o fascismo, o nazismo e a extrema direita toda, dando a ela sentido, planejamento e objetivo é o capitalismo. O capitalismo não tem nenhum pudor em se associar com o autoritarismo, com as torturas, violências e a ignorância em geral se isto gerar lucro. Não é o fascismo ou o nazismo que têm “inteligência”, que “bolam planos” e que “usam” o carisma de Bolsonaro para “manterem-se no poder”. É o bom e velho capitalismo, que sabemos bem como funciona. Desde sempre ele usa o narcisismo alheio para lucrar. Ou convencendo que alguém é um “milionário” em potencial, ou que um mentecapto boçal pode “transformar o país, talkei?”. O objetivo é fazer trabalhar, apropriar renda, transformar em capital e reproduzir-se.

A verdade é que existe uma contradição interna aos regimes de extrema-direita e que a esquerda tem que saber aproveitar. O capitalismo precisa dos ignorantes organizados, falando em “Deus”, em “Pátria”, em “família” e na “luta contra o comunismo”. Mas isto não gera riqueza. Quanto mais organizado e forte for o fascismo, mais independente ele se torna e, eventualmente, se volta contra seus mestres. Organizar a sociedade para a disputa ideológica não aumenta o PIB. Criar e gestar valores de disputa interna e fragmentação social, sob a ideia de que “nossa bandeira não será vermelha” é um desperdício de força social produtiva. Para o capitalismo a bandeira pode ser vermelha, amarela, branca, azul com bolinhas cor-de-rosa ou qualquer coisa aí no meio ... pouco importa. Desde que o fluxo de riqueza numa sociedade continue aceleradamente saindo de baixo e indo para cima.

Comprar tanques, aumentar o salário de juízes, de soldados e generais, tudo isto só tem sentido se houver extração de mais valia e crescimento econômico. E o capitalismo se põe em marcha para prover aos fascistas aquilo que eles não têm: inteligência e capacidade de planejar. Só quem alinha gestos, ações e resultados consegue se manter no poder. E a máxima contradição interna dos regimes de extrema direita é entre a racionalidade capitalista produtiva e irracionalidade fascista autoritária e messiânica. Há uma janela de cooperação entre as duas que é tanto mais curta quanto mais ignorante a liderança. Guedes terá, no máximo, dois semestres para agir. A partir daí a irracionalidade malafaica ou verde oliva tomará conta, e os gritos de ódio e pânico serão maiores do que a exigência de trabalho para geração de riqueza.

Bolsonaro nunca trabalhou na vida. Nunca produziu um prego ou plantou uma cenoura. Moro também sempre viveu da apropriação de riqueza, sem nunca ter produzido nada. Guedes, Mourão, Heleno e etc. são todos parasitas para o capital. Parasitas úteis, neste momento, mas ainda assim parasitas cuja vida nunca se pautou por ter capital ou vender sua força de trabalho.

Até aqui, este texto usou as técnicas do ilusionismo. Falou de tudo o que parece importante, sem falar do essencial: não há nenhuma medida do governo Bolsonaro para gerar renda, aumentar o PIB, promover bem-estar ou inclusão social para uma sociedade de mais de 200 milhões de habitantes. Ao contrário, Bolsonaro já desatendeu a população mais pobre na questão dos médicos, manteve intocado o salário mínimo e aumentou os combustíveis. Prejudicou exportações, acabou com o ministério da cultura e – sem compreender os efeitos – ataca todas as formas de redistribuição de renda via artes, educação e trabalho social (como o Sistema S). Faz isto e deixa claro que não acredita nas flores vencendo o canhão.

A História mostra que ele está errado.

É preciso que a esquerda brasileira foque as críticas no essencial.

Não importa se a ilusão é feita em libras, braile ou aos gritos de “marcha soldado”, os homens ainda são fruto de sua realidade material, a despeito do que gritam os “homens bons” ou os “homens de Deus”.

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