segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Zizek: Amor e Sexo sob o gelo dos contratos

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Obcecada em transformar a experiência erótica em algo previsível e controlado, onda moralista ameaça afogar o desejo e sufocar a liberdade sexual das mulheres

Por Slavoj Žižek | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel | Imagens: René Magritte, Os Amantes (1928) e João Rabello (charge)

Ao menos no Ocidente, as pessoas tornaram-se bastante conscientes sobre o alcance da coerção e da exploração nas relações sexuais.

No entanto, devemos ter em mente também o fato (não menos significativo) de que diariamente milhões de pessoas flertam e praticam o jogo da sedução, com o objetivo claro de encontrar um parceiro para o amor e o sexo. Na cultura ocidental moderna consagrou-se a regra de que ambos os sexos estão habilitados para desempenhar papel ativo neste jogo.

Quando as mulheres se vestem de forma provocadora para atrair os olhares masculinos ou quando se “objetificam” para seduzi-los, não o fazem se oferecendo como objetos passivos. Em vez disso, elas são os agentes ativos de sua própria “objetificação”, manipulando homens e jogando jogos ambíguos, incluindo a reserva total do direito de sair do jogo a qualquer momento, mesmo que, para o olhar masculino, isso pareça em contradição com os “sinais” prévios.

Esta liberdade que as mulheres desfrutam incomoda todos os tipos de fundamentalistas, dos muçulmanos que recentemente proibiram as mulheres de tocar e manusear bananas – ou quaisquer outras frutas que se assemelhem ao pênis – aos nossos machos toscos que explodem em violência contra uma mulher que primeiro os “provoca” e depois rejeita os seus avanços.

A libertação sexual feminina não é apenas uma recusa puritana a ser “objetificada” (como um objeto sexual para os homens), mas o direito de brincar ativamente com a auto-objetificação, oferecendo-se e retirando-se à vontade do jogo. Mas será ainda possível proclamar esses fatos simples? ou a pressão politicamente correta nos obrigaria agora a enquadrar todos esses jogos sob alguma forma de proclamação formal/legal (de consensualidade, etc.)?

Novas formas de pensar

Uma ideia recente e politicamente correta é o chamado “Consent Conscious Kit” (“kit de consentimento consciente”), atualmente à venda nos EUA: uma pequena bolsa com um preservativo, uma caneta, algumas balas de menta refrescante e um contrato simples, que estabelece que ambos os participantes estão livremente de acordo com o ato sexual. A sugestão é a de que um casal, pronto para ter relações sexuais, tire uma foto segurando nas mãos o contrato, ou que ambos o datem e assinem.

No entanto, embora o “kit de consentimento consciente” pretenda dar conta de um problema bastante real, ele faz isso de uma maneira que não é apenas boba, mas diretamente contraproducente. E por que isso?

A ideia subjacente é a de que o ato sexual, para ser purificado de qualquer suspeição de coerção, precisa ser declarado, antecipadamente, como uma decisão consciente de ambos os participantes. Falando em termos lacanianos, ele teria que ser registrado pelo Grande Outro, inscrito na ordem simbólica.

Assim, o “kit de consentimento consciente” é apenas uma expressão extrema de uma atitude que cresce em toda parte, nos EUA. Por exemplo, o Estado da Califórnia aprovou uma lei que exige que todas as faculdades que recebem financiamento do Estado adotem políticas que obriguem seus alunos a fazer uso do consentimento afirmativo, que é definido como “concordância afirmativa, consciente e voluntária para se envolver em atividade sexual” que esteja “em andamento”, em situação em que não se esteja muito bêbado, antes de se engajar propriamente nas atividades sexuais, e quando não haja risco de punição por meio de agressão sexual.

Um quadro mais amplo

“Acordo afirmativo, consciente e voluntário”. Mas por parte de quem? A primeira coisa a se fazer aqui pode ser simplesmente mobilizar a tríade freudiana de Ego, Superego e Id (em uma versão simplificada: minha autoconsciência; a agência de responsabilidade moral que me faz cumprir as normas; e minhas mais profundas paixões, um tanto reprimidas).

E se houver um conflito entre os três? Se, sob a pressão do Superego, meu Ego diz NÃO, mas meu Id resiste e se apega ao desejo negado? Ou (um caso muito mais interessante) o oposto: eu digo SIM ao convite sexual, entregando-me à minha paixão Id, mas no meio da realização do ato, meu Superego desencadeia um sentimento de culpa insuportável?


Assim, para reduzir as coisas ao absurdo, o acordo deve ser assinado por Ego, Superego e Id de cada parte contratante, de modo que seja válido somente se todos os três, de cada lado, dizem SIM. Mais: e se o parceiro do sexo masculino também usar seu direito contratual de recuar e cancelar o acordo a qualquer momento da atividade? Imaginem que, depois de obter o consentimento da mulher, quando os futuros amantes se encontram nus na cama, alguns minúsculos detalhes corporais (um som desagradável, como um arroto vulgar) dissipem o encantamento erótico e façam o homem se retirar? Isso não seria também extremamente humilhante para a mulher?…

A ideologia que sustenta essa promoção do “respeito sexual” merece um olhar mais atento. A fórmula básica é: “Sim significa que sim!”. Ou seja, tem que ser um “sim” explícito, não apenas a ausência de um não. A ausência de “não” não corresponde automaticamente a um “sim”, porque se uma mulher que está sendo seduzida não resiste ativamente, isso ainda deixaria margem para supor diferentes formas de coerção.

Cortando o tesão

Aqui, no entanto, os problemas se multiplicam: e se uma mulher deseja apaixonadamente um sujeito, mas se sente por demais envergonhada para declarar isso de forma aberta? E se, para ambos os parceiros, a “coerção”, a pegada mais forte, ironicamente, fizer parte do jogo erótico? E um “sim” seria um “sim” para o quê, precisamente? Para que gestos sexuais ele seria um sim declarado? O formulário do contrato precisaria, então, ser, logo em seguida, mais detalhado, de modo que o consentimento principal seja especificado: um “sim” para um coito vaginal, mas não anal; um “sim” para sexo oral, mas não para engolir o esperma; “sim” para uma palmadinha, mas não para um tapão; etc, etc.

Pode-se facilmente imaginar tanto uma longa negociação burocrática, que pode matar todos os desejos do ato, quanto a inflação libidinosa do ato, instigada pela própria negociação. Esses problemas estão longe de serem secundários, eles dizem respeito ao núcleo da interação erótica, do qual não é possível se abstrair para declarar a disposição (ou a indisposição) para seguir adiante com ela: cada ato conta na interação, seja para deserotizá-la seja para erotizá-la ainda mais.

A regra sexual do “sim significa sim” é um caso exemplar da intersubjetividade narcisista dos nossos dias. Uma experiência é fundamentalmente vivida como algo a que se é vulnerável, algo do qual se deve ser protegido, por meio de um conjunto complexo de regras, que prescreve a informação prévia de todas as intrusões eventuais que possam molestar alguém.

Lembremos que, quando do seu lançamento, E.T. foi proibido na Suécia, Noruega e Dinamarca [N. do T.: Há um pequeno equívoco aqui: o filme de Steven Spielberg foi proibido para crianças de menos de 12 anos na Suécia, Noruega e Finlândia]: porque a representação que faz dos adultos como seres hostis (para as crianças) foi considerada perigosa para as relações entre as crianças e seus pais. (Um detalhe engenhoso confirma esta acusação: nos primeiros 10 minutos do filme, todos os adultos são vistos apenas da cintura para baixo, como os adultos ameaçadores dos desenhos animados de Tom & Jerry…).

Vista com os olhos de hoje, essa proibição pode ser reconhecida como um sinal precoce da obsessão politicamente correta de proteger os indivíduos de qualquer experiência que possa machucá-los de algum modo. E a lista pode continuar indefinidamente – recorde-se, por exemplo, a proposta de excluir digitalmente o cigarro dos clássicos de Hollywood…

Sim, o sexo é atravessado por jogos de poder, obscenidades violentas etc, mas o difícil de admitir é que isso é inerente a ele. Alguns observadores perspicazes já notaram que a única forma de relação sexual que responde de forma plena aos critérios politicamente corretos seria um contrato estabelecido entre parceiros sadomasoquistas.

Assim, o aumento da correção política e o incremento da violência são dois lados da mesma moeda, uma vez que a premissa básica da correção política é a redução da sexualidade ao consentimento mútuo contratual. O linguista francês Jean-Claude Milner estava certo ao notar como o movimento antiassédio atinge inevitavelmente seu clímax nos contratos que estipulam formas extremas de sexo sadomasoquista (tratando uma pessoa como um cachorro numa coleira, como comércio de escravos, tortura e até assassinato consentido).

Em tais formas de escravidão consensual, a liberdade de mercado estabelecida por meio do contrato nega a si mesma: o comércio de escravos torna-se a afirmação final da liberdade. É como se o motivo “Kant com Sade”, de Jacques Lacan – o brutal hedonismo do marquês de Sade assumido como verdade na rigorosa ética kantiana –, se tornasse, inusitadamente, realidade. No entanto, antes de descartar esse motivo como apenas um paradoxo provocador, deveríamos refletir sobre como tal paradoxo tem estado em funcionamento na própria realidade social.

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