quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Juiz Damasceno: “Pacote do Moro é coisa de amador, se fosse meu aluno mandaria refazer o trabalho”; ouça

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Programa Faixa Livre e Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Se Moro fosse meu aluno, mandaria refazer trabalho” avisa Damasceno
As propostas anticrime do ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro foram apresentadas ontem (19) ao Congresso Nacional, em Brasília, onde devem ser analisadas pelos parlamentares da Câmara e do Senado.
O teor do texto entregue nas Casas legislativas estarreceu o juiz da Associação de Juízes para a Democracia João Batista Damasceno, que também é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Aliás, o titular do Ministério deve agradecer por não frequentar mais as salas de aula.

“Esse projeto é uma calamidade, o conjunto é algo catastrófico. A sorte dele é que não é meu aluno e não está apresentando um trabalho, mandaria refazê-lo. Analisando pelo ponto de vista da tecnicidade, é algo que faz corar qualquer aluno de graduação”, criticou.
Os problemas apontados pelo magistrado vão além da criticada ‘permissão para matar’, onde o agente de segurança pode se ver livre de punição após cometer um assassinato alegando ‘medo, surpresa ou violenta emoção’.
“Começa com o nome do pacote, que é uma lei anticrime, como se existisse alguma lei a favor do crime. Além disso, confunde conceitos elementares de execução penal como a permissão de saída do preso com saída temporária, trata como se fosse sinônimo. Em outro momento define organização criminosa a partir de nomes, como PCC, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando puro, ADA. Quando se faz uma lei, se faz abstratamente para viger em ocorrências futuras, para ser aplicada em casos concretos, uma lei não pode trazer no seu texto destinatários específicos. E se surgir outra facção? Será excluída da lei porque é nova? Ou seja, esse projeto é coisa de amador”, disse Damasceno.
Ao contrário do que indicava quando do anúncio da proposta, o ministro dividiu o projeto em três para atender demanda dos parlamentares, que pediam a separação do plano que criminaliza o caixa 2. Antes crítico feroz do financiamento ilegal de campanhas eleitorais, o ex-juiz mudou o discurso e disse que “caixa 2 não é corrupção”.
A Associação de Juízes para a Democracia divulgou uma nota criticando os documentos que vão tramitar no Congresso. O professor fez questão de condenar também o trecho que trata da relação entre defensores e clientes.
“Esse pacote é de uma mente perversa. O Ministério Público pode tudo para acusar, inclusive tomar ciência da técnica de defesa que será usada porque a gravação da conversa do réu com o advogado passa a ser autorizada, sem contar a história das gravações ambientais, vão legalizar a arapongagem. O projeto não foi debatido com a sociedade, ninguém da comunidade jurídica foi ouvido”, destacou.
Leia a nota da Associação de Juízes para a Democracia:
“A Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental, de âmbito nacional, sem fins corporativos, vem a público oferecer suas fundadas críticas ao Pacote de Medidas apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública:
1) É inaceitável que um projeto que se autodenomina “anti-crime” tenha como um de seus principais pilares o aumento das hipóteses de excludente de ilicitude, especialmente para os casos de homicídios por agentes de segurança.
A proposta não só ignora o já avantajado índice de violência policial no país como desvela a premissa que sustenta uma política pública homicida: a ideia de que a morte possa ser estimulada como mecanismo de combate à criminalidade, ao arrepio das mais comezinhas normas internacionais de proteção aos direitos humanos.
2) É incompreensível a negligência absoluta sobre políticas públicas destinadas a fortalecer a investigação, a partir da modernização e instrumentalização da inteligência policial.
O país sofre de um gritante índice de homicídios não solucionados. E a tendência é de crescimento: a combinação da ampliação das hipóteses de posse de arma e legítima defesa ilustra o estímulo contínuo à violência, inclusive nas relações privadas.
3) O projeto aposta suas fichas em mais encarceramento, sem qualquer prévio estudo de sua viabilidade e de seu impacto social e financeiro, cujo ônus recairá aos estados, reconhecidamente tomados pela austeridade fiscal, com limitações constitucionais para emprego de recursos.
O sistema carcerário já está colapsado, num calamitoso quadro de superlotação e precariedade, sendo justamente esse caos nos presídios que mais tem causado desassossego a todos.
Beiram a irresponsabilidade projetos que visam assim o aumento da população prisional em caminho oposto à tranquilidade ou segurança da sociedade.
4) Além de não contar com uma técnica apurada, havendo embaralhamento de conceitos e acúmulo de equívocos de redação, o que é inusitado para projetos oriundos de um ministério cujas estruturas somente foram enrijecidas, o Pacote vem desacompanhado das tradicionais justificativas.
Essas foram formalmente substituídas por rodadas controladas de entrevistas, evitando, de forma confessa, o diálogo aberto com a comunidade científica, com os profissionais das áreas afetadas e até mesmo com parlamentares responsáveis por sua discussão.
5) A previsão de incorporar acriticamente institutos estadunidenses como sinal provinciano de ode à modernidade ignora a circunstância de que a justiça penal negocial tem sido uma das principais contribuições ao incomparável volume prisional daquele país.
O projeto prevê a supervalorização do Ministério Público como epicentro do sistema de justiça criminal, sem se proteger do excesso de discricionariedade e da falta de controle judicial, característicos destes institutos.
6) O pacote despreza a própria experiência que o país amealhou com a edição da Lei dos Crimes Hediondos, aprovada em 1990, com igual propósito de “endurecer as penas”.
Ignora solenemente o fato de que não houve redução da violência e oculta a circunstância de que a legislação foi alavanca para a criação e o fortalecimento das facções criminosas – que, de uma forma até pueril são denominadas, reconhecidas e eternizadas no texto da lei.
Imaginar que a repetição do erro produzirá resultados diversos e melhores é, para dizer o menos, uma grotesca imperícia.
7) Na área da execução penal, o desconhecimento técnico, que entre outras inconsistências chega a confundir saída temporária com permissão de saída, soma-se ao propósito inescondível de burlar decisões consolidadas do Supremo Tribunal Federal.
O projeto se direciona inclusive a ressuscitar a proibição de progressão de regime, desastre legislativo da década de 1990, em bom tempo afastado pelo STF.
8) Em meio ainda às vinte medidas do projeto, graves agressões ao direito de defesa se distribuem, como a supressão dos embargos infringentes nas situações em que o recurso é justamente o mais empregado (ou seja, na discussão sobre penas); o controle e gravação do contato réu e advogado (como forma de criminalizar a defesa); a inconcebível extensão da prisão “em segundo grau” para sentenças condenatórias de crimes contra a vida (aproveitando-se equivocadamente da denominação de “Tribunal do Júri”). Enfim, estraçalha a presunção de inocência, antes mesmo que o STF possa julgar sua amplitude, definitivamente, no começo de abril.
Um projeto que se centra em experiências malsucedidas, aqui ou no exterior, e que evita, por incompetência ou falta de vontade, enfrentar os principais desafios para a superação da violência e do crime, não está à altura dos desafios que o momento exige.
O povo brasileiro não merece ser ludibriado por soluções simbólicas, aparentemente mágicas, que, ao final, tendem a agravar os próprios problemas que prometeu resolver.
A Associação Juízes para a Democracia, desvelando as contradições e incoerências do texto, não se furtará ao debate e indicará, em seu devido tempo, uma a uma, as inconstitucionalidades, inconsistências e inconveniências de um conjunto de leis que procura oferecer tão-somente uma resposta demagógica e certamente ineficaz a problemas reais.
Nesta quadra, a AJD rejeita veementemente o pacote, tal como lançado, pela ausência de exposição de seus pressupostos, pela falta de estudos técnicos que suportem as ideias fragilmente expostas e pela incapacidade de enfrentar os temas de acordo com os princípios que norteiam a preservação da dignidade humana no contexto do Estado Democrático de Direito, ainda estampado na Constituição da República e pelo qual todos temos a obrigação de zelar.
São Paulo, 19 de fevereiro de 2019”
Ouça a íntegra da entrevista de João Batista Damasceno:


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