Por Helena Martins
Ampliação de coleta de dados e criação de arquivo com informações biométricas de presos é o começo para o aprofundamento do controle
França, 1872. Como parte da política repressora que se seguiu à Comuna de Paris, de 1871, uma circular da administração penitenciária daquele país decretou que todos os presos civis e, especialmente, os indivíduos condenados por fatos insurrecionais deveriam ser fotografados. Sob a alegada pretensão de se ampliar a proteção e segurança de toda a sociedade em um momento de crise, iniciou-se a prática de captura de informações de milhares de pessoas, bem como a codificação delas. Poucos anos depois, o criador do primeiro laboratório de identificação criminal baseada nas medidas do corpo humano, Alphonse Bertillon, revelou que “a fotografia é de pouca ajuda e não é mais que um meio de controle”.
Nestes tempos em que o presente parece assemelhar-se cada vez mais ao passado, o exemplo serve para alertar sobre os objetivos de determinadas políticas que, justificadas pela demanda de segurança e envoltas pelo argumento da neutralidade técnica e suas promessas de progresso, em verdade afiançam a ampliação da vigilância estatal sobre a população, a começar pelos setores mais estigmatizados. É dentro desse esquadro que vemos algumas das propostas do chamado Projeto de Lei Anticrime, apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP) do governo Bolsonaro, Sérgio Moro, particularmente no que tange à coleta de dados e à criação de arquivo com informações biométricas de pessoas presas.
São apontadas, no projeto, como medidas para aprimorar a investigação de crimes: a submissão de presos à identificação do perfil genético, mediante coleta de DNA, e a criação do Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais, que, de acordo com o texto, “tem como objetivo armazenar dados de registros biométricos, de impressões digitais e, quando possível, de íris, face e voz, para subsidiar investigações criminais federais, estaduais ou distrital”.
Desde 2012, sentenciados por crimes com violência de natureza grave contra pessoa ou hediondos passaram a ter que ceder DNA para banco de dados. A prática é alvo de questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF), por haver entendimento de que consiste em produção de prova contra si mesmo, o que contraria dispositivo constitucional. Ancorando-se em uma concepção policialesca de Estado, o ministro não apenas desconsiderou o debate em curso, como propôs que a medida seja aplicada a todos os condenados por crimes dolosos, inclusive aqueles cometidos sem violência, mesmo sem trânsito em julgado da sentença condenatória.
Isso significa que essas pessoas terão que conceder ao Estado dados pessoais extremamente sensíveis para viabilizar seu tratamento como potenciais suspeitas de quaisquer novos crimes que a polícia esteja investigando, inclusive quando sequer tenham sido efetivamente condenadas, o que também agride o direito à presunção de inocência. O texto de Moro determina que a exclusão só ocorra em caso de absolvição do acusado ou decorridos vinte anos após o cumprimento da pena. Não há informação sobre como esses dados serão, de fato, armazenados e tratados, sendo prevista apenas posterior regulamentação do Banco Nacional Multibiométrico por parte do Executivo. Na prática, uma pessoa acusada da cometer um furto, condenada por um juiz de primeira instância, terá seu DNA coletado e armazenado pelo Estado.
O texto, desprovido de mecanismos que garantam transparência dos procedimentos de tratamento e proteção dos dados sensíveis a serem coletados, dá muitas brechas para o uso indiscriminado e pouco seguro deles, pois fixa que qualquer autoridade policial e o Ministério Público poderão requerer ao juiz competente, no caso de inquérito ou ação penal instauradas, o acesso às informações. Aqui, dois possíveis problemas devem ser mencionados. Primeiro, conhecendo a seletividade do sistema, é de supor que alguns perfis populacionais, como pessoas negras, tenham seus dados mais facilmente solicitados que outras. Depois, são muitas as deficiências técnicas dessas instituições, sobretudo no trato com as novas tecnologias, o que poderá resultar em vazamentos e usos abusivos das informações.
Não se trata, é importante evidenciar, de uma informação qualquer. O DNA é uma informação única, que não pode ser alterada ao longo da vida. Com o avanço das pesquisas genéticas, outras informações têm sido produzidas a partir dele, a exemplo da identificação de possíveis doenças. Imagine um uso equivocado disso: as investigações podem levar à produção de pesquisas que busquem identificar padrões e perfis de pessoas potencialmente perigosas. Uma imagem que não destoa das antigas noções lambrosianas que imputavam à determinados sujeitos, identificados por suas características físicas ou de procedência geográfica, uma natureza criminosa.
Outro problema é o fato de o Brasil não ter, hoje, sequer uma política de guarda soberana dos dados de DNA coletados. Ao contrário, os perfis genéticos têm sido conservados no exterior, em um banco que usa o Sistema de Índice de DNA Combinado (Codis, na sigla em inglês), criado pelo FBI, a polícia federal norte-americana. O mesmo FBI que é alvo de seguidas denúncias de obtenção e uso de dados de forma ilegal, inclusive por meio de parcerias com empresas como Google e Facebook, que viabilizam o acesso às informações de milhões de usuários de seus serviços, sem que eles estejam esclarecidos sobre isso.
Apesar das fragilidades da política, o governo federal está propondo que a submissão das informações seja obrigatória. Caso o condenado se negue a fazer o procedimento de identificação do perfil genético, terá, pelo texto do projeto, cometido “falta grave”, o que pode acarretar a regressão do regime prisional e alterar a data-base para a concessão de novos benefícios. Não há, portanto, escolha. Aos presos, não é pedido consentimento para que sejam formados perfis, para que haja o envio e o armazenamento dessas informações no exterior ou para viabilizar seu uso por qualquer policial.
Essas medidas contrariam fundamentos basilares da recém-aprovada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, como o respeito à privacidade, a autodeterminação informativa, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem e o exercício da cidadania. Também colocam em risco princípios da lei, como a finalidade do tratamento dos dados para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular; a necessidade, que consiste na limitação do tratamento ao mínimo necessário; o livre acesso, que é a garantia de consulta facilitada e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem como sobre a integralidade de seus dados pessoais; e a segurança, definida como a utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão.
Nada disso está garantido na proposta apresentada por Sérgio Moro. Ademais, ao longo dos anos de debate sobre essa norma, amadureceu-se como central a necessidade de consentimento da pessoa detentora do dado para o tratamento dele, o que significa que o titular deverá manifestar de forma livre, informada e inequívoca que concorda com o tratamento de seus dados pessoais – e apenas para uma finalidade determinada.
A regra dispõe que o cidadão tem o direito a obter, a qualquer momento, informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador dos dados, como uma plataforma de rede social, realizou uso compartilhado de dados. Motivada pela preocupação com a segurança deles, detalha ainda, em um capítulo específico, regras para a transferência internacional de informações pessoais, ação que é limitada a poucas situações e cuja concretização só pode ocorrer para países ou organismos internacionais que proporcionem grau de proteção de dados pessoais, medida que deverá ser avaliada pela autoridade nacional de proteção de dados.
Contra esses argumentos, o governo federal, em sua sanha vigilantista típica dos regimes autoritários, poderá sustentar que a lei não se aplica ao tratamento de dados para fins de segurança pública. De fato, uma derrota sofrida por aqueles e aquelas que defendemos uma visão garantista dos direitos foi a inclusão dessa exceção, que diz muito sobre o estágio do autoritarismo que vinga no Brasil. Ocorre que, como consta no artigo 4º, § 1º, mesmo em se tratando de segurança, a lei prevê que o tratamento deva ser “regido por legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei”.
Outros mecanismos podem ampliar a proteção dos dados, ainda que nessa situação. A lei aprovada em agosto previa que a autoridade nacional deveria emitir opiniões técnicas ou recomendações referentes às exceções e que solicitaria aos responsáveis relatórios de impacto à proteção de dados pessoais. No entanto, no apagar das luzes de seu governo, Michel Temer editou a Medida Provisória (MP) 869 que, entre outros problemas, suprimiu essa recomendação, o que pode ser revertido pelo Congresso Nacional. Se essa situação for mantida, perderemos garantias mínimas de direitos justamente no problemático setor da segurança pública. Na prática, será dada carta branca para que órgãos públicos ou mesmo empresas privadas que atuam na segurança possam nos vigiar indiscriminadamente, sem que tenhamos sequer a possibilidade de buscar informações que viabilizem o exercício dos nossos direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, que é o objetivo fundamental da Lei Geral de Dados.
Voltando à ilustração do caso francês, não é à toa que o debate apareça agora, com uma medida de vigilância voltada, em primeiro lugar, às pessoas presas. Em um país que passou a tratar as pessoas privadas de liberdade como inimigas desumanizadas e, assim, desprovidas de qualquer direito, é fácil imaginar que as propostas serão não apenas acatadas, mas até aplaudidas. Do mesmo modo, a brutalização que estamos vivendo pode nos impedir de ver que ações desse tipo ampliam o preconceito e a segregação. Mais uma vez, a história ensina. O discurso da “defesa social” permitiu que na França, entre 1913 e 1969, apenas estrangeiros e emigrantes estivessem sujeitos à determinação de catalogação de fotos e impressões digitais. Política discriminatória que foi utilizada também na África do Sul, especialmente durante o regime do apartheid, conforme registrado no livro “Um mundo vigiado”, de Armand Mattelart, teórico que é uma referência nos estudos da comunicação. O inimigo, o terrorista, o violento. Esses que sempre foram usados como argumentos para a naturalização de práticas de exceção.
Se tais fatos sensibilizam pouco os que não se sentem atingidos por tais medidas, é possível acrescentar um argumento a mais. No regime atual, que Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School, definiu como capitalismo da vigilância, o sistema se alimenta da monetização de dados que nós produzimos o tempo todo, os quais são capturados de forma ilegítima por estados e corporações, sobretudo as da chamada economia digital, para fins de predição de comportamentos, alteração deles e controle. Embora tentem nos fazer acreditar que os outros – aqueles com os quais não nos reconhecemos, sobretudo – serão os observados, a verdade é que vivemos já uma vigilância difusa, massiva, funcional à manutenção de um regime que combina opressão, disciplinamento e controle. Somos todos alvos da vigilância estatal. O desafio que temos é o de reagirmos antes que novamente grades e porões nos impeçam de reivindicar mudanças e direitos.
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