Caixa dois é parente de gnomos, unicórnios e do saci-pererê. Um conceito que pertence ao campo da fantasia.
Não há nada de errado com folclore. Saci-pererê é uma lenda bonita. Meu problema é com quem leva a sério a existência dos boitatás e curupiras. Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal fez exatamente isso ao decidir que crimes relacionados com o mítico caixa dois de campanha possam ser julgados pela sempre leniente Justiça Eleitoral. Na prática, o STF reconheceu formalmente a existência de lobisomens. Digo, de caixa dois.
No Brasil da Lava Jato, muito se falou em caixa dois, e o termo ganhou contorno concretos na boca de repórteres, procuradores e juízes. Parece real. O conceito, para quem acredita em gnomos, descreve doações para políticos em campanha que, em vez de serem registradas na Justiça Eleitoral como manda a lei (isto é, no “caixa um”), entram para o bolso do candidato sem papelada nenhuma no “caixa dois”. Ops. Um mero deslize burocrático.
O problema da lenda consiste em aceitar a narrativa de que o dinheiro foi pago para fins eleitorais e que o caixa um e o caixa dois compartilham algum DNA. Essa relação ocorreria pelo contexto: o dinheiro foi recebido durante a campanha, por exemplo. Logo, alguma relação com eleição deve haver, certo? Errado. Mera suposição.
Esse erro lógico penetrou na cultura e na imprensa. Na quinta-feira, a Folha de S.Paulo escreveu ao explicar a decisão do STF: “Assim, um político que recebeu propina desviada de obras públicas e usou parte do dinheiro na campanha será processado na Justiça Eleitoral.”
Como saber se parte do dinheiro foi usado na campanha se ele será gasto sem recibo ou transferência bancária?
Caixa dois não existe. Existe político recebendo dinheiro ilegal, e o nome disso é corrupção. Se o dinheiro foi descoberto antes de ser gasto, nunca saberemos se o candidato tinha planos de usá-lo para pagar contas de campanha. Não há como provar com fatos concretos que esse dinheiro ilegal tem relação com eleição. Só por meio de crença.
Uma investigação, em teoria, até pode descobrir a existência de dinheiro não declarado de fato gasto em campanha. Uma difícil tarefa, uma vez que políticos raramente pedirão recibos de serviços pagos com doação ilegal – uma tese provavelmente construída apenas na base de testemunhos. E aqui surge o segundo erro lógico do mito do caixa dois: de que não há, necessariamente, má intenção no pagamento oculto. Há sim: é um dinheiro recebido de forma ilegal e que fere o princípio de transparência da vida pública. E usado em benefício próprio para subverter uma das mais sagradas instituições democráticas – o voto.
Em ambos os casos, há algo mais grave do que um deslize eleitoral. A crença no folclórico caixa dois é tão forte no Brasil que até o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, procurador Deltan Dallagnol, que criticou a decisão do STF e, como bom justiceiro, teria todos os motivos para apoiar uma abordagem ainda mais dura, escorrega na tentação de abraçar o boitatá. “Corrupção diz respeito à origem do dinheiro ou razão do pagamento. Caixa dois eleitoral diz respeito ao destino ou como o dinheiro é usado. São duas condutas distintas, mas na prática política muito relacionadas”, escreveu no Twitter, em fevereiro.
E os incontáveis casos onde esse dinheiro será gasto sem deixar rastros, procurador? Como delimitar exatamente quantos reais dos milhõesencontrados na casa de Geddel Vieira Lima, por exemplo, foram gastos em campanha e quantos foram usados para pagar garrafas de vinho em jantares em Brasília? É exercício tecnocrático ingênuo: toda a pilha de dinheiro é imoral e está contaminada desde a origem.
No julgamento do STF, o ministro Luís Roberto Barroso, um dos cinco que votaram contra a fantasia do caixa dois, teve um momento de lucidez e criticou o folclore nacional. “Faz pouca diferença distinguir se o dinheiro vai para o bolso ou para a campanha. O problema não é para onde o dinheiro vai, é de onde o dinheiro vem. E o dinheiro vem da cultura de achaque e corrupção.”
Caixa dois é apenas um eufemismo para a boa e velha propina. Precisamos encerrar esse conto de fadas. É um dinheiro não contabilizado de propósitopara comprar favores políticos e esconder da sociedade quem está financiando a política. Mais tarde, quando projetos forem aprovados e empresas forem beneficiadas, a doação oculta impede o eleitor de entender quem está recebendo o investimento financeiro de volta, com juros.
No mundo político, a fantasia do caixa dois favorece os corruptos porque permite à defesa construir a falsa narrativa de que o dinheiro sofre de um mero problema de identidade. Ele deveria ser registrado e, por essas coisas da vida, não foi – a manobra Onix.
Quando um padeiro faz o seu caixa dois, a Receita parte do pressuposto que ele deixou de pagar impostos de propósito, com má intenção. E responde pelo crime de sonegação fiscal previsto na lei 4729 – ainda que ele estivesse passando por problemas financeiros e não tivesse dinheiro para quitar os impostos. Mas políticos foram bem sucedidos em popularizar no Brasil a noção de que essa lógica não se aplica à classe.
Corruptos desejam afastar de juízes e da opinião pública uma imagem muito mais criminosa e concreta: o dinheiro não declarado tenta esconder o pagamento de um voto, lobby ou projeto de lei, futuro ou passado, e será usado para pagar iates e mansões ou, pior ainda, para comprar votos de parlamentares, como muito ocorreu no Brasil.
Os procuradores da Lava Jato, que sofreram uma derrota na votação do STF, têm feito lobby para criar uma nova lei criminalizando o caixa dois. É um caminho menos pior do que a decisão do Supremo porque tira o poder da Justiça Eleitoral sobre esses casos. Mas ainda é uma saída ruim porque continua reconhecendo a existência do saci.
A verdadeira solução não está na decisão do STF e nem na lei proposta pela Lava Jato. Procuradores e ministros estão participando de uma ginástica oratória típica do mundo jurídico que não interessa à sociedade. Um enorme blablablá retórico criado para evitar a saída simples: enterrar o mito do caixa dois e aceitar que qualquer dinheiro entregue em segredo para políticos configura corrupção. E o artigo 317 do Código Penal, que define corrupção passiva, já contempla esse cenário: “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
O político que não quiser correr o risco de responder pelo artigo 317 tem um jeito fácil de resolver esse embaraço: declarar todas as doações. Ou não aceitar propina.
Problema resolvido, sem fadas e gnomos.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12