quarta-feira, 8 de abril de 2020

Redução de salários, em qualquer percentual, agrava a crise, por Rubens Sawaya

      Por Jornal GGN
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Redução de salários, em qualquer percentual, agrava a crise

Nota da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – São Paulo

por Rubens Sawaya

A política de redução de jornada de trabalho com redução de salários entre 25% e 70%, acompanhada de complementação insuficiente por parte do governo, bem como a redução da remuneração dos servidores públicos, pode ser um desastre para a economia brasileira já estagnada há anos. Neste momento, com a crise do coronavírus, é necessário garantir a renda e emprego. Tais propostas desconhecem a lógica elementar do funcionamento dinâmico da economia e por isso são recessivas. Não são suficientes nem para salvar as empresas, seu objetivo principal, nem os trabalhadores.

A dinâmica da economia está fundada em um fluxo no qual o gasto de um indivíduo é a renda (o ganho) de outro. Se ninguém gasta, ninguém ganha. Há gastos que dependem da existência de renda prévia, como grande parte do consumo, que depende dos salários dos trabalhadores e dos ordenados dos dirigentes das empresas. A criação de renda depende da atividade econômica, da decisão das empresas de empregar trabalhadores (e dirigentes) a fim de produzir bens e serviços.

O PIB é um resultado da decisão de produzir. Agrega todo o valor que a economia produziu em bens e serviços. A renda também é o resultado da decisão de produzir e se materializa em salários, lucros (juros e aluguéis são transferências derivadas da propriedade). Por isso, essa decisão cria produtos (bens de consumo, bens de investimento e serviços) em valor igual à renda, em um processo circular. As grandes empresas, os bancos e o Estado detém a chave do comando sobre a dinâmica do fluxo.

As grandes empresas são importantes pela criação do fluxo de gastos porque estão no centro de comando das cadeias de valor, das cadeias de produção. Comandam não apenas a cadeia de fornecedores, mas também a comercialização, por milhares de empresas conectadas ao fluxo que a cadeia gera. Dessa forma, são centrais na movimentação da economia, pela geração de renda e emprego diretamente nos setores em que comandam os nódulos das cadeias de valor, ou indiretamente pelo efeito multiplicador que criam. Assim criam renda que se espalha pela economia alimentando inclusive serviços direta ou indiretamente ligados à cadeia de renda.

Os grandes bancos também comandam o fluxo porque controlam o crédito. Comandam os sistemas de pagamentos e garantem liquidez dos instrumentos de crédito que movimentam as relações de compras e vendas entre as empresas. Via crédito, aquisição de ativos financeiros (dívidas) das empresas, os bancos garantem não apenas o investimento como a produção. No Brasil, os bancos públicos, BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil têm papel extremamente relevante na irrigação da economia no que se refere ao crédito para produção, para a movimentação das cadeias de valor. Os bancos privados têm um papel subsidiário centrado em crédito para capital de giro e consumo, importante, mas complementar em termos da atividade real das empresas.

O Estado detém o comando de parte importante do fluxo econômico por sua capacidade de executar gastos de maneira sistemática. Os gastos públicos geram receitas às empresas privadas por suas compras, às pessoas pelo pagamento de salários e contratação de serviços e obras públicas. Como emissor de moeda pública também alimenta o fluxo de crédito colocando liquidez no sistema. Como emissor de dívida pública, se por um lado retira recursos financeiros da sociedade, por outro fornece um colchão de liquidez que alavanca o crédito privado (e, também, a especulação financeira, mas esse é outro assunto).

A crise econômica é o rompimento desse fluxo dinâmico, do fluxo de gastos e, portanto, de receitas. O rompimento ocorre quando as empresas, principalmente aquelas que estão no comando das cadeias, param ou diminuem o ritmo de suas atividades. Caem suas compras e suas vendas, rompendo-se o fluxo.

A perspectiva de parada das empresas ou o anúncio da crise leva o sistema bancário privado a retrair-se diante da elevação do risco das operações de crédito. Os ativos financeiros, recebíveis futuros atrelados até certo ponto à atividade econômica ou derivados especulativos, desvalorizam-se. Por esses motivos, os bancos privados cortam o fluxo de crédito, o que agrava a situação das empresas que não conseguem mais financiamento para suas operações.

A crise também pode ser resultado do corte de gastos públicos que rompe parte importante do fluxo de renda da economia. Atinge as empresas pelo corte de compras e investimentos do Estado, bem como, pela redução de gastos sociais e salários dos servidores, retira poder de compra da economia. A crise da economia brasileira, que hora se agrava com o coronavirus, está em curso desde 2015 como resultado da retirada do Estado do fluxo dinâmico pela PEC do teto de gastos, pelo corte das políticas sociais e outros diversos gastos pelas reformas. A política de encolher os bancos públicos também contribui para isso.

A crise poderia também ocorrer pela diminuição do consumo – gerada por incertezas quanto à manutenção do emprego e da renda futura –, mas essa queda depende muito mais da diminuição da renda. O consumo é função da renda gerada pela própria atividade econômica, pela decisão dos empresários de produzir e empregar. Portanto, a queda no consumo é normalmente um reflexo da parada na produção e no crédito.

Assim, para evitar rompimentos no fluxo dinâmico, a crise, é necessário manter os empresários produzindo, o fluxo de crédito bancário (público ou privado) e o gasto público. São esses elementos que garantem o fluxo de renda para a sociedade. A crise clássica é um rompimento do fluxo dinâmico pela decisão dos empresários em não produzir e pela decisão dos bancos em não emprestar. O resultado é a queda da renda, do emprego e, portanto, do consumo. Quanto menor a renda e o emprego, menor o consumo, e sem consumo, não há razão para os empresários produzirem. Se o Estado ainda corta gastos, a situação piora. Dessa forma instaura-se a crise como um fluxo descendente de gastos.

A solução para a crise, tanto para evitá-la, como para sair dela, é garantir um fluxo de gastos na economia. Se a crise é a ausência de gastos dos empresários que resulta da decisão deles de não produzir, alguém, o Estado e seus bancos públicos, que não segue a lógica privada, deve gastar de modo a alimentar o fluxo, garantindo que os empresários vendam e continuem a produzir, mantenham os empregos.

O Estado cumpre a função de colocar ou manter o fluxo dinâmico em movimento. Quando as coisas vão bem, os neoliberais fazem questão de esquecer disso e apelam para as “forças do mercado” na regulação do fluxo; mas, quando advém a crise, só os incautos não percebem a necessidade de ação do Estado para garantir o funcionamento da economia, justamente porque não atua com base na lógica privada, principalmente em tempos de crise (empresários só gastam quando suas vendas crescem; bancos privados só emprestam quando o risco é baixo).

A crítica às políticas contracionistas aplicadas pelo governo desde 2015 funda-se no fato de que o corte de gastos do governo prejudica parte importante do fluxo que mantém a dinâmica da economia. Contribui para diminuir as vendas dos próprios empresários. Portanto, ao invés de os gastos públicos serem substituídos por gastos privados – como imaginam as cabeças fundadas no automatismo das forças de mercado dos neoliberais como Guedes – os efeitos dos cortes são depressivos. Quando o governo gasta menos do que arrecada – isto é, gera superávit -, a renda disponível na economia se reduz, os empresários vendem menos, diminuem a produção e o emprego, portanto, o consumo, numa sequência em cadeia depressiva. É o que temos observado nos últimos anos e chamamos de política “austericida” – a austeridade que mata a atividade econômica. Foi exatamente assim que a recessão de 2015 e 2016 e a estagnação nos anos subsequentes foram geradas.

O país está há anos estagnado, com taxa de desemprego da ordem de 11,5%, e com as empresas em geral produzindo muito abaixo da capacidade. Esse é o resultado da diminuição dos gastos do Governo que enfraqueceu o fluxo dinâmico. Se o objetivo era diminuir a relação dívida/PIB que estava em 2014 em 55%, ocorreu o contrário, a dívida hoje representa 80% do PIB, exatamente por conta da queda na atividade econômica que leva à queda de impostos arrecadados justamente sobre o fluxo da renda gerado pela própria atividade econômica. Por isso nunca deu e nem nunca daria certo.

Se a situação dinâmica da economia já era crítica antes do coronavírus, agora só poderia se agravar. O vírus para a atividade econômica por alguns meses, a produção de bens e serviços que geram renda. A parada provoca rompimento abrupto no fluxo dinâmico, atuando como fator externo que atinge a produção, emprego e renda. A eficiência em combater o surto (um problema médico) determina o número de meses em que a economia ficará parada.

Em termos microeconômicos, por conta do vírus, cada empresa vê suas vendas diminuírem e, como seria natural, corta a produção. Sem vendas e produção, a solução lógica individual é demitir os trabalhadores. Isso não é maldade, mas o resultado natural da lógica de proteção ao próprio negócio, seguindo a lógica do modo atual de produção capitalista. Assim, se deixado à livre escolha das empresas, este procedimento provocaria o rompimento radical do fluxo dinâmico, o que geraria uma espiral descendente de produção, renda, emprego, salários e lucros, criando um problema sistêmico no qual todos seriam prejudicados. O PIB poderia cair muito e o desemprego elevar-se de forma significativa; milhares de empresas poderiam quebrar. Isso significa que o problema da crise é sistêmico e a saída individual microeconômica não pode prevalecer, pois destruiria a economia do país.

Portanto, a crise é um problema sistêmico de rompimento no fluxo de gastos e receitas da economia como um todo, portanto macroeconômico. Por isso, a pergunta central que nós economistas devemos responder é como manter o fluxo de gastos – o fluxo dinâmico – a fim de impedir a morte econômica de empresários e trabalhadores durante a parada da economia no tempo necessário para o combate médico à pandemia (o que depende da eficiência do combate). Manter o fluxo dinâmico garante que, quando esse tempo passar, a economia terá sua estrutura menos destruída, o que garantirá uma retomada menos demorada.

Esta talvez seja uma oportunidade de ouro para que o Brasil se livre da ortodoxia dos “economistas” no poder, que defendem cortes de gastos e investimentos mesmo em momentos de queda na atividade econômica. Talvez nos livremos até daqueles que mesmo fora do poder, por hora oportuna, tornaram-se heterodoxos e advogam a intervenção do governo para substituir, mesmo que parcialmente, o gasto que desapareceu pelo estancamento das atividades que assistimos, mas que certamente voltarão a defender o austericídio, como antes, para “ajustar as contas públicas”. Agora, a solução deve ser radical para não permitir a queda ainda maior na atividade da economia.
Medidas para reduzir os efeitos do rompimento no fluxo dinâmico têm sido adotadas no mundo inteiro. Essas sociedades têm como princípio essa lógica dinâmica sistêmica, e têm o Estado atuante como seu agente central, o único que não segue a lógica microeconômica. Por isso foi está sendo muito mais fácil para a China se livrar do problema, dado o grau de controle social que possui sobre seu sistema econômico, sobre o fluxo dinâmico, com suas empresas estatais nos nódulos estratégicos da atividade econômica e com os seus bancos públicos garantido o fluxo de crédito. Isso lhe garante eficiência para atuar diante de problemas sistêmicos como este disparado pela pandemia. Nem os EUA ou a Europa estão tendo esse sucesso.

O problema das medidas adotadas no Brasil é sua falta de visão sistêmica. As medidas permitem uma diminuição de salários que não bloqueará a crise. Neste momento, manter o fluxo de renda durante os meses de parada é essencial. Ao focar no benefício às empresas e, nesta hora, minimizar os impactos no gasto público, mostra que o governo não entendeu a lógica do fluxo dinâmico. As políticas adotadas provocam uma queda no fluxo de pagamentos e no emprego, o que não impede o agravamento da crise neste momento, e dificulta a retomada posterior.

O problema da crise é que as empresas, correta e naturalmente, cortam gastos e demitem trabalhadores. Na ausência de uma outra instância, o Estado – que não segue essa lógica, não é uma família porque tem poderes para tributar as grandes fortunas ou outros com capacidade de pagamento, podem tomar recursos aumentando seu endividamento e podem, mesmo, aumentar o dinheiro em circulação – é a única entidade capaz de substituir o gasto privado e garantir a própria sobrevivência das empresas e a renda dos trabalhadores ao preservar o fluxo dinâmico. Sem essa ação radical a crise se agravará e não será bloqueada.

Por isso, são medidas fundamentais, durante esse momento de parada das atividades econômicas, proibir as demissões (como na Argentina e alguns países europeus), conceder recursos com taxa de juros zero providas por bancos públicos para as empresas necessitadas de liquidez. Os bancos públicos têm estrutura para analisar cada caso e identificar setores que precisam ser ajudados, mesmo com maior risco de não conseguirem cumprir suas obrigações. Os bancos privados não são eficientes neste momento porque fundam sua ação no risco e cobram taxas de juros pelos “serviços”. A garantia de preservação da renda para todos os níveis de salário, tanto para o setor privado como público é fundamental, mesmo que pagas pelo Estado. Mantido o fluxo de renda e emprego, a própria arrecadação fiscal não cairá tanto, compensando, no futuro, o gasto público realizado hoje.

No mais, é fundamental seguir as recomendações médicas e internacionais para tornar este momento de parada o mais breve possível e com o menor impacto em vidas humanas. Se, de fato, for abandonada algum dia a lógica do austericídio, o crescimento da economia brasileira precisará tanto dos empresários, como de todos os trabalhadores, inclusive os 11 milhões que já estavam desempregados antes da crise do coronavírus.

Rubens Sawaya é Professor e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Economia Política da PUC-SP e Membro da coordenação da ABED – São Paulo

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