No
movimento conjunto do sistema interestatal a expansão dos Estados-economias
nacionais líderes gera uma espécie de “rastro econômico” que se alarga a partir
de sua dinâmica interna.
Por Jornal GGN
do A Terra É Redonda
Estado e
desenvolvimento
por José Luís Fiori*
“O capitalismo só triunfa quando se
identifica com o Estado, quando é o Estado.” (F. Braudel, A dinâmica do
capitalismo).
Introdução
O debate sobre Estado e desenvolvimento econômico teve grande importância política e intelectual na América Latina, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial. Mas foi mais pragmático do que teórico, respondeu a problemas e desafios imediatos mais do que a uma estratégia de pesquisa sistemática e de longo prazo. Mesmo a pesquisa acadêmica desta época foi policy-oriented, quase toda voltada para o estudo comparativo dos padrões de intervenção do Estado ou para a discussão normativa do planejamento e das políticas públicas, em particular da política econômica.
Neste período, é possível identificar duas grandes
“agendas hegemônicas”, que se consolidam nos anos 1940-1950 e 1980-1990,
respectivamente, orientando a discussão, a pesquisa e as políticas concretas
nas duas décadas sucessivas.
Logo depois da Segunda Guerra Mundial o mundo
enfrentou o desafio da reconstrução dos países envolvidos no conflito e o da
descolonização afro-asiática. A América Latina se propôs uma agenda centrada no
problema do “atraso” e no desafio do desenvolvimento e da “modernização” de
suas sociedades e economias nacionais. A reflexão política sobre a natureza e o
papel do Estado seguiu esta mesma trilha, independente da orientação teórica
dos seus pensadores da época: fosse ela estruturalista, marxista, weberiana
etc. Foi a época da hegemonia das ideias desenvolvimentistas.
Algumas décadas mais tarde, na sequência da crise
internacional dos anos 1970 e, em particular, depois da crise da “dívida externa”
dos anos 1980, se impôs na América Latina uma nova “agenda” que priorizou o
“ajuste” das economias latino-americanas à nova ordem financeira global. Neste
período, predominou a crítica ao intervencionismo estatal e a defesa
intransigente das privatizações e da “despolitização dos mercados”. Foi a época
da hegemonia neoliberal em quase todo o mundo e da desmontagem das políticas e
do Estado desenvolvimentista na América Latina. Mas no início do século XXI, o
fracasso das políticas neoliberais, a crise econômica de 2008 e as grandes
mudanças geopolíticas mundiais, que estão em pleno curso, criaram um novo
desafio e produziram uma nova inflexão política e ideológica na América Latina,
trazendo de volta ao debate político alguns temas da antiga agenda desenvolvimentista.
Este texto contém três partes. A primeira faz um
balanço sintético e crítico deste “debate líbero-desenvolvimentista” do século
XX e do início do século XXI; a segunda propõe as premissas e hipóteses de um
novo “programa de pesquisa” sobre o Estado e o desenvolvimento capitalista; e a
terceira apresenta três especulações sobre o futuro do sistema mundial e da
América Latina.
A controvérsia do desenvolvimento
O “debate desenvolvimentista” latino-americano não
teria nenhuma especificidade se tivesse se reduzido a uma discussão
macroeconômica entre “ortodoxos” neoclássicos ou liberais e “heterodoxos”
keynesianos ou estruturalistas. Na verdade, ele não teria existido se não fosse
por causa do Estado e da discussão sobre a eficácia ou não da intervenção
estatal para acelerar o crescimento econômico por cima das “leis do mercado”.
Até porque, na América Latina como na Ásia, os governos desenvolvimentistas
sempre utilizaram políticas macroeconômicas ortodoxas, segundo a ocasião e as
circunstâncias. O inverso também se pode dizer de muitos governos europeus ou
norte-americanos conservadores ou ultraliberais que utilizam frequentemente
políticas de corte keynesiano.
Na verdade, o pivot de toda a
discussão e o grande pomo da discórdia foi sempre o Estado e a definição do seu
papel no processo do desenvolvimento econômico. Apesar disso, depois de mais de
meio século de discussão, o balanço teórico é decepcionante. Dos dois lados do
debate “líbero-desenvolvimentista”, utilizou-se – quase sempre – um conceito de
Estado igualmente impreciso, atemporal e a-histórico, como se o Estado fosse
uma espécie de “ente” lógico e funcional criado intelectualmente para resolver
os problemas do crescimento ou da regulação econômica, como se pode ver por
meio de uma rápida releitura das duas grandes “agendas” e das principais
matrizes teóricas que participaram da “controvérsia latino-americana”:
(1) A “agenda desenvolvimentista” deita raízes nos
anos 1930, consolida-se nos anos 1950 e passa por uma autocrítica e uma
transformação conceitual nos anos 1960, para perder o vigor intelectual na
década de 1980. Nesse percurso, é possível identificar quatro grandes “matrizes
teóricas” que analisaram a “questão do Estado” e contribuíram para a construção
e a legitimação da ideologia nacional-desenvolvimentista, que teve um papel
central nos grandes conflitos políticos e ideológicos latino-americanos da
segunda metade do século XX:
(a) A matriz weberiana e as suas várias versões da
“teoria da modernização”, que foram contemporâneas da “economia do
desenvolvimento” anglo-saxônica e apareceram quase sempre associadas à teoria
das “etapas do desenvolvimento econômico”, de Walt Whitman Rostow (Rostow
1952, 1960). Dedicaram-se à pesquisa dos processos de formação histórica
dos Estados nacionais europeus comparados com o “desenvolvimento político” das
sociedades “atrasadas”. Sua proposta e sua estratégia de modernização supunham
e apontavam, ao mesmo tempo, de forma circular, para uma idealização dos
Estados e dos sistemas políticos europeus e norte-americanos, definidos como
padrão ideal de modernidade, e como objetivo e ponto de chegada do
desenvolvimento e da transição das “sociedades tradicionais” (Eisenstadt
e Rokkan, 1973; Lapalombara
e Weiner, 1966).
(b) A matriz estruturalista e as suas várias
versões da teoria do “centro-periferia” e do “intercâmbio desigual”, cuja
referência fundamental foi os textos clássicos da CEPAL, dos anos 1950 e 1960,
com algumas contri
buições posteriores importantes, sobretudo, no
Brasil (Tavares,
1974; Cardoso
de Melo, 1982; Beluzzo e Coutinho, 1982). Só a CEPAL desenvolveu
instrumentos analíticos e operacionais específicos para o planejamento
econômico dos Estados latino-americanos. Mas devido à sua própria condição como
organismo internacional, a CEPAL sempre tratou os Estados da América Latina
como se fossem iguais e homogêneos sem considerar – na teoria e nas propostas
concretas – a existência de conflitos de interesse diferentes dentro de cada
país, e entre os países, dentro e fora da região. Por isso, as teses industrializantes
da CEPAL lembram muitas vezes as ideias protecionistas de Friedrich List e
Hamilton, mas, ao mesmo tempo, a CEPAL se diferencia dos dois por não conceder
importância teórica e prática aos conceitos de nação, poder e guerra, que
ocupavam um lugar central na visão do Estado e do desenvolvimento econômico,
sobretudo, no caso do “sistema nacional de economia política” de Friedrich List
(ver Bielschowsky,
2000, 1988).
(c) A matriz marxista e suas várias versões da
teoria da “revolução democrático-burguesa”, sustentadas nos textos clássicos de
Marx sobre as etapas do desenvolvimento capitalista e nos textos de Lênin e da
Terceira Internacional sobre a estratégia da luta anticolonialista na Ásia e no
Egito. Sua tradução para a realidade latino-americana foi feita de forma
mecânica e pouco sofisticada, do ponto de vista teórico, sem considerar as
especificidades e heterogeneidades regionais. Por isso, apesar de falar de
classes, luta de classes e imperialismo, propunha o mesmo modelo e a mesma
estratégia para todos os países do continente, independentemente da sua
estrutura interna e da sua posição dentro da hierarquia de poder regional e
internacional. Nos anos 1960, a teoria marxista da dependência criticou essa
estratégia reformista da “esquerda tradicional” e a própria possibilidade da
“revolução democrático-burguesa” na América Latina sem, contudo, aprofundar sua
nova visão crítica do Estado latino-americano (Baran,
1957; Davis,
1967; Mori,
1978).
(d) Por fim, é necessário incluir a matriz
geopolítica da teoria da “segurança nacional”, formulada pela Escola Superior
de Guerra do Brasil (ver Golbery,
1955; Mattos,
1975; Castro,
1979, 1982), fundada no início da década de 1950. Suas ideias também
remontam aos anos 1930, à defesa da industrialização nacional (por parte dos
militares que participaram da Revolução de 1930) e ao Estado Novo. Na década de
1950, entretanto, esse primeiro desenvolvimentismo pragmático dos militares
brasileiros se transformou em um projeto de defesa e expansão do poder
nacional, condicionado por sua visão da “segurança nacional”, dentro de um
mundo dividido pela Guerra Fria. Essa matriz teve um desenvolvimento teórico
menor do que o das outras três, mas acabou tendo uma importância histórica
muito maior, devido ao lugar central ocupado pelos militares na construção e no
controle do Estado desenvolvimentista brasileiro, durante a maior parte dos
seus cerca de 50 anos de existência.
O seu projeto geopolítico e econômico era
expansionista e tinha uma visão competitiva do sistema mundial, mas nunca foi
muito além de algumas ideias elementares sobre o próprio poder e a defesa,
porque girava em torno de uma obsessão com um inimigo externo e interno que
nunca ameaçou nem desafiou efetivamente o país, importado ou imposto pela
geopolítica anglo-saxônica da Guerra Fria. Mesmo assim essa foi a única teoria
e estratégica dentro do universo desenvolvimentista que associou,
explicitamente, a necessidade da industrialização e do crescimento econômico
acelerado com o problema da defesa nacional, mas sua visão simplista e maniqueísta
do mundo explica o seu caráter antipopular e autoritário e a facilidade com que
foi derrotado e desconstruído nos anos 1980 e 1990 (ver Fiori,
1995, 1984).
Se existiu algum denominador comum entre todas
essas teorias e estratégias desenvolvimentistas, foi sua crença inabalável na
existência de um Estado racional, homogêneo e funcional, capaz de formular
políticas de crescimento econômico, por cima de divisões, conflitos e
contradições que pudessem atravessar e paralisar o próprio Estado. Além disso,
todos consideravam que o desenvolvimento era um objetivo consensual – por si
mesmo – capaz de constituir e unificar a nação, bem como de mobilizar a sua
população por cima de suas divisões internas, de classe, etnia e regiões.
Talvez por isso, apesar da sua hegemonia ideológica depois da Segunda Guerra
Mundial as políticas desenvolvimentistas só foram aplicadas na América Latina –
de forma pontual, irregular e inconsistente -, e só se possa falar
efetivamente, nesse período, da existência em todo continente de dois “Estados
desenvolvimentistas”: um, com certeza, no Brasil; e o outro, com muitas
reservas, no México.
(2) Do outro lado da controvérsia latino-americana,
a origem da “agenda neoliberal” remonta à década de 1940, mas ela permaneceu em
estado latente (ou defensivo) durante a “era desenvolvimentista”, somente
conquistando o poder e a hegemonia ideológica nas últimas décadas do século XX.
Nos anos 1980, as teses neoliberais apareceram e se difundiram na América
Latina como resposta à “crise da dívida externa” e à inflação galopante dos
anos 1980 e trouxeram junto uma proposta de reformas institucionais voltadas
para a privatização e a desregulação dos mercados, bem como para a austeridade
fiscal e monetária (Dornbusch
e Edwards, 1991). É possível identificar, pelo menos, duas grandes teorias
que participaram da crítica intelectual e da legitimação ideológica da
desmontagem das políticas e das instituições desenvolvimentistas: a teoria dos
“buscadores de renda” e a teoria neoinstitucionalista (Krueger,
1974; North,
1981), que exerceram grande influência dentro dos organismos internacionais
de Washington e, em particular, dentro do Banco Mundial.
Para a teoria dos “buscadores de renda”, o Estado é
apenas mais um mercado de trocas entre burocratas movidos por interesses
egoístas e empresários em busca de privilégios e de rendas monopólicas
garantidas por meio do controle e/ou da influência dentro da máquina estatal.
Dessa perspectiva, qualquer aumento do setor público ampliaria,
automaticamente, as oportunidades de obtenção de rendas extraordinárias à custa
do cidadão e do consumidor comum, que acabaria tendo que pagar preços mais
altos do que os definidos “normalmente” pelos mercados competitivos e
desregulados.
A teoria neoinstitucionalista também defende a
“retirada do Estado”, mas, ao contrário da teoria anterior, sustenta a sua
importância para a construção e a preservação do ambiente institucional
associado à garantia do direito de propriedade privada e da liberdade
individual das pessoas, considerados pelos neoinstitucionalistas como condições
indispensáveis de todo e qualquer processo de desenvolvimento econômico. No
final do século XX, a agenda neoliberal reforçou um viés da discussão que já
vinha crescendo desde o período desenvolvimentista: o deslocamento do debate
para o campo da macroeconomia.
Como volta a acontecer com o chamado “novo
desenvolvimentismo”, que se propõe inovar e construir uma terceira via “entre o
populismo e a ortodoxia”. Como se tratasse de uma gangorra que ora aponta para
o fortalecimento do mercado, ora para o fortalecimento do Estado. Na prática, o
“novo desenvolvimentismo” acaba se reduzindo a um programa de medidas
macroeconômicas ecléticas, que se propõem fortalecer, simultaneamente, o Estado
e o mercado; a centralização e a descentralização; a concorrência e os grandes
“campeões nacionais”; o público e o privado; a política industrial e a
abertura; e uma política fiscal e monetária que seja ao mesmo tempo ativa e
austera. E, finalmente, com relação ao papel do Estado, o “novo
desenvolvimentismo” propõe que ele seja recuperado e fortalecido, mas não
esclarece em nome de quem, para quem e para quê, deixando de lado a questão
central do poder – e dos interesses contraditórios das classes e das nações –
como já acontecera com o “velho desenvolvimentismo” do século XX.
Apesar de suas grandes divergências ideológicas e
políticas, desenvolvimentistas e liberais sempre compartilharam uma mesma visão
do Estado como criador ou destruidor da boa ordem econômica, mas sempre visto
como se fosse um deus ex-machina, atuando desde fora da atividade
econômica propriamente dita. Ambos criticam os processos de monopolização e
idealizam os mercados competitivos, vendo com maus olhos toda forma de
associação ou envolvimento entre o Estado e os capitais privados. Ambos consideram
que o poder, as lutas pelo poder e o processo de acumulação de poder a escala
nacional e internacional não têm a ver diretamente com o processo simultâneo de
desenvolvimento econômico e acumulação do capital.
Além disso, todos consideram os Estados
latino-americanos como se fossem iguais e não fizessem parte de um sistema
regional e internacional único, desigual, hierarquizado, competitivo e em
permanente processo de transformação. E mesmo quando os desenvolvimentistas
falaram de Estados centrais e periféricos e de Estados dependentes, falavam de
um sistema econômico mundial que tinha um formato bipolar relativamente
estático, no qual as lutas de poder entre os Estados e as nações ocupavam um
lugar secundário (Frank,
1969; Cardoso
e Faletto, 1970).
Por fim, a convergência entre desenvolvimentistas e
liberais latino-americanos permite extrair duas conclusões críticas do conjunto
destes debates. A primeira é que o desenvolvimentismo latino-americano sempre
teve um parentesco muito maior com o keynesianismo e com “economia do desenvolvimento”
anglo-saxônica, do que com o nacionalismo econômico e o anti-imperialismo, que
foram até hoje a mola mestra e propulsora de todos os desenvolvimentos tardios,
em particular, dos desenvolvimentos asiáticos.
A segunda é a certeza de que desenvolvimentistas e
liberais latino-americanos compartilham a mesma concepção econômica do Estado,
comum ao paradigma da economia política clássica, marxista e neoclássica. Esta
coincidência de paradigmas explica a facilidade com que muitos passam, teoricamente,
de um lado para o outro da “gangorra líbero-desenvolvimentista”, sem precisar
sair do mesmo lugar.
Doze notas para um novo “programa de pesquisa”
É muito pouco provável que o velho paradigma
“líbero-desenvolvimentista” consiga se renovar. Seu núcleo duro perdeu
vitalidade e não consegue gerar novas perguntas, tampouco consegue dar conta
dos novos problemas latino-americanos, e muito menos do desenvolvimento
asiático e do desafio chinês. Nesses momentos, é preciso ter a coragem
intelectual de romper com velhas ideias e propor novos caminhos teóricos e
metodológicos. Com este objetivo iremos expor, em seguida, algumas premissas e
hipóteses de um novo “programa de pesquisa”, que parte dos conceitos de “poder
global”, “Estados-economias nacionais” e “sistema interestatal capitalista”
para repensar a relação entre os Estados nacionais e o desenvolvimento desigual
das economias capitalistas que se formaram na Europa e fora da Europa, a partir
da expansão mundial global do “poder europeu” (ver Fiori, 2004, 2007; Fiori,
Medeiros e Serrano, 2008).
(1) No final século XX, falou-se com insistência do
fim das fronteiras e da soberania dos Estados nacionais, que estariam sendo
atropeladas pelo avanço incontrolável da globalização econômica. Ao mesmo
tempo, falou-se do poder imperial e unipolar dos EUA, depois do fim da Guerra
Fria. Mas, foi exatamente nesse período que se deu a universalização do sistema
interestatal, que foi “inventado” pelos europeus e que contabilizava cerca 60
estados independentes depois do fim da Segunda Guerra Mundial e hoje inclui
cerca de 200 Estados nacionais, a maioria deles com assento nas Nações Unidas.
É óbvio que se trata de Estados muito diferentes entre si do ponto de vista das
suas dimensões e população, mas, sobretudo, do ponto de vista do seu poder e da
sua riqueza, bem como de sua capacidade de defender a sua soberania.
A maior parte destes novos Estados havia sido
colônia europeia, e depois de sua independência permaneceram sob a camisa de
força da Guerra Fria. Eles só adquiriram maior grau de autonomia depois de
1991, a despeito de seguirem sendo países muito pobres e impotentes, em muitos
casos. É importante perceber que essa multiplicação do número dos Estados
nacionais que agora são membros do sistema político mundial ocorreu simultaneamente
aos processos de acumulação do poder global dos EUA e de globalização produtiva
e financeira que se aceleraram depois das décadas 1950 e 1980, respectivamente.
Essa coincidência poderia representar um paradoxo se não fosse um produto
contraditório e necessário do próprio “sistema interestatal capitalista”, que
nasceu na Europa (e só na Europa) e se universalizou a partir da expansão do
poder imperial europeu.
(2) A origem histórica desse sistema remonta às
“guerras de conquista” e à “revolução comercial”, que se somaram na Europa dos
séculos XII e XIII, para criar a energia que moveu dois processos que foram
decisivos nos séculos seguintes: o da centralização do poder e o da monetização
dos tributos e das trocas. Como se sabe, depois do fim do Império de Carlos
Magno, houve na Europa uma fragmentação do poder territorial e um
desaparecimento quase completo da moeda e da economia de mercado. Nos dois
séculos seguintes – entre 1150 e 1350 – houve, no entanto, uma revolução que
mudou a história da Europa e do mundo: naquele período, forjou-se no continente
europeu uma associação expansiva entre a “necessidade da conquista” e a
“necessidade de excedentes” econômicos cada vez maiores. Essa mesma associação
se repetiu pela Europa em várias de suas unidades territoriais de poder, que
foram obrigadas a criar tributos e sistemas de tributação, além das moedas
soberanas, para financiar suas guerras de defesa e de conquista, assim como a
administração dos novos territórios conquistados por meio dessas guerras.
(3) As guerras, os tributos, as moedas e o comércio
sempre existiram. A grande novidade europeia residiu na forma em que se
combinaram, somaram e multiplicaram em conjunto, dentro de pequenos territórios
altamente competitivos, e em estado de permanente guerra ou preparação para a
guerra. Essas guerras permanentes se transformaram em um grande multiplicador
de tributos e de dívidas e, por derivação, em um multiplicador do excedente do
comércio e do mercado de moedas e de títulos da dívida, criando um circuito
acumulativo absolutamente original entre os processos de acumulação do poder e
da riqueza. Além disso, essas guerras soldaram uma aliança indissolúvel entre
príncipes e banqueiros e deram origem às primeiras formas de acumulação do
“dinheiro pelo dinheiro” através da “senhoriagem” das moedas soberanas e da
negociação das dívidas públicas pelos “financistas”, primeiro nas “feiras” e
depois nas bolsas de valor.
No longo prazo, essa centralização do poder e
monetização dos tributos e das trocas permitiu a formação, nos séculos XVI e
XVII, dos primeiros “Estados-economias nacionais” europeus, que se
transformaram em verdadeiras máquinas de acumulação de poder e de riqueza
durante os séculos seguintes, com seus sistemas de bancos e de crédito, com
seus exércitos e burocracias, e com seu sentimento coletivo de identidade e de
“interesse nacional”.
(4) Os “Estados-economias nacionais” não surgiram
de forma isolada: já nasceram dentro de um sistema que se move continuamente,
competindo e acumulando poder e riqueza, em conjunto e dentro de cada uma de
suas unidades territoriais. Foi dentro dessas unidades territoriais expansivas
e desse sistema competitivo de poder que se forjou o “regime capitalista”.
Desde o início, o movimento de internacionalização de seus mercados e capitais
se deu junto à expansão e à consolidação dos grandes impérios marítimos e
territoriais dos primeiros Estados europeus. Desde então foram sempre esses
estados expansivos e vencedores que lideraram a acumulação do capital em escala
mundial.
Esses primeiros Estados nasceram e se expandiram
para fora de si mesmos de forma quase simultânea. Enquanto lutavam para impor
seu poder e sua soberania interna, se expandiam e conquistavam novos
territórios construindo seus impérios coloniais. Por isso, pode-se dizer que o
“imperialismo” foi uma força e uma dimensão constitutiva e permanente de todos
os Estados e do próprio sistema interestatal europeu. Essa luta contínua,
dentro e fora da Europa, promoveu uma rápida hierarquização do sistema, com a
constituição de um pequeno “núcleo central” de “Estados/impérios” que se
impuseram aos demais, dentro e fora da Europa.
Assim nasceram as chamadas “grandes potências”, que
seguiram mantendo entre si relações a um só tempo complementares e
competitivas. A composição interna desse núcleo foi sempre muito estável,
devido ao próprio processo contínuo de concentração do poder, mas também devido
às “barreiras à entrada” de novos “sócios” que foram sendo criadas e recriadas
pelas potências ganhadoras ao longo dos séculos. De qualquer forma, o ponto
importante é que o sistema mundial em que vivemos até hoje não foi o produto de
uma somatória simples e progressiva de territórios, países e regiões, e muito
menos foi o produto da simples expansão dos mercados ou do capital; foi uma
criação do poder expansivo de alguns Estados e economias nacionais europeias
que conquistaram e colonizaram o mundo, durante os cinco séculos em que lutaram
entre si pela monopolização das hegemonias regionais e do “poder global”.
(5) Sempre existiram projetos e utopias
cosmopolitas propondo algum tipo de “governança global” para o conjunto do
sistema interestatal capitalista. Contudo, todas as formas conhecidas e
experimentadas de “governo supranacional” foram até hoje uma expressão do poder
e da ética das potências que compõem o núcleo central do sistema e, em
particular, da potência que lidera esse núcleo central. Muitos autores falam em
“hegemonia” para se referir à função estabilizadora do líder do sistema, mas
esses autores não percebem – em geral – que a existência dessa liderança ou
hegemonia não interrompe o expansionismo dos demais Estados, muito menos o
expansionismo do próprio líder ou hegemon.
Dentro deste sistema mundial, o aparecimento e a
ascensão de uma nova “potência emergente” serão sempre um fator de
desestabilização do seu núcleo central. Todavia, o maior desestabilizador de
qualquer situação hegemônica será sempre o seu próprio líder (ou hegemon)
porque ele não pode cessar seu ímpeto de conquistar para poder manter sua
posição relativa na luta pelo poder global. Por isso, é logicamente impossível
que algum país “hegemônico” possa estabilizar o sistema mundial.
Nesse “universo em expansão” que nasceu na Europa,
durante o “longo século XIII”, nunca houve nem haverá “paz perpétua”, nem
sistemas políticos internacionais estáveis. Trata-se de um “universo” que se
estabiliza e se ordena por meio da sua própria expansão e, portanto, também das
crises e das guerras provocadas pela contradição entre sua tendência permanente
à internacionalização e ao poder global, de um lado, e sua contratendência ao
fortalecimento contínuo dos poderes, das moedas e dos capitais nacionais, de
outro.
(6) A expansão competitiva dos “Estados-economias
nacionais” europeus criou impérios coloniais e internacionalizou a economia
capitalista, mas nem os impérios, nem o capital internacional eliminaram os
Estados e as economias nacionais. Isto se deve ao fato de o capital sempre
apontar, contraditoriamente, na direção de sua internacionalização e, ao mesmo
tempo, na direção do fortalecimento de sua economia nacional de origem, como
percebeu corretamente Nikolai Bukharin. O que Bukharin não disse ou não
percebeu é que essa contradição entre os movimentos simultâneos de
internacionalização e nacionalização do capital se deve ao fato de que os
capitais só podem se internacionalizar na medida em que mantêm sua relação
originária com a moeda nacional em que se realizam como riqueza, seja sua
própria ou a de um Estado nacional mais poderoso. Por isso, sua
internacionalização contínua não é uma tendência apenas do “capital em geral”,
é uma obra simultânea do capital e dos Estados emissores das moedas e das
dívidas de referência internacionais que souberam conquistar e preservar, mais
que todos os outros, situações e condições monopólicas.
(7) As “moedas internacionais” sempre foram
cunhadas pelos Estados vitoriosos que conseguiram projetar seu poder para fora
de suas fronteiras até o limite do próprio sistema. Desde o “longo século XVI”
e a consolidação do “sistema interestatal capitalista”, só existiram duas
moedas internacionais: a libra e o dólar. E só se pode falar da existência de
três sistemas monetários globais: o “padrão libra-ouro”, que ruiu na década de
1930; o “padrão dólar-ouro”, que terminou em 1971; e o “padrão dólar-flexível”,
que nasceu na década de 1970 e que ainda segue vigente neste início do século
XXI. Em todos os casos, e desde a origem do sistema interestatal capitalista:
(7a) Nenhuma moeda nacional foi jamais apenas um
“bem público” e muito menos ainda as moedas nacionais que se transformaram em
referência internacional. Todas elas envolvem relações sociais e de poder entre
seus emissores e os seus detentores, entre credores e devedores, entre
poupadores e investidores e assim por diante. Por trás de toda moeda e de todo
sistema monetário esconde-se e se reflete sempre uma correlação de poder,
nacional ou internacional.
(7b) Por sua vez, as moedas de referência regional
ou internacional não são apenas uma escolha dos mercados. Elas são o resultado
de lutas pela conquista e dominação de novos territórios econômicos
supranacionais, e ao mesmo tempo, e depois das conquistas, seguem sendo um
instrumento de poder dos seus Estados emissores e dos seus capitais
financeiros.
(7c) Por isso, o uso dentro do sistema interestatal
capitalista de uma moeda nacional que seja, ao mesmo tempo, uma moeda de
referência supranacional é uma contradição coconstitutiva e inseparável do
próprio sistema. E, nesse sentido, a moeda poderá até mudar nas próximas
décadas (o que é muito pouco provável), mas a regra seguirá sendo a mesma, com
o yuan, o yen, o euro, ou o real.
(7d) Por fim, é parte do poder do emissor da “moeda
internacional” transferir os custos de seus ajustes internos para o resto da
economia mundial, em particular para sua periferia monetário-financeira.
(8) A “dívida pública” dos Estados vitoriosos
sempre teve maior credibilidade do que a dívida dos derrotados ou dos
subordinados. Por isso, também os títulos da dívida pública das grandes
potências têm maior “credibilidade” do que os títulos dos Estados situados nos
degraus inferiores da hierarquia do poder e da riqueza internacional. Marx
percebeu a importância decisiva da “dívida pública” para a acumulação privada
do capital, e vários historiadores têm chamado a atenção para a importância do
endividamento dos Estados que foram os “grandes predadores” do sistema mundial.
Para financiar suas guerras e a projeção
internacional do seu poder, e para sustentar seus sistemas nacionais e internacionais
de bancos e de crédito, a “dívida pública” da Inglaterra, por exemplo, passou
de 17 milhões de libras esterlinas, em 1690, para 700 milhões de libras, em
1800. E contribuiu decisivamente para o financiamento da expansão do poder
britânico, dentro e fora da Europa, a despeito do desequilíbrio fiscal de curto
prazo das contas públicas inglesas, o que jamais afetou a “credibilidade” de
sua dívida ao redor do mundo.
Aconteceu da mesma forma com os Estados Unidos,
onde a capacidade de tributação e de endividamento do Estado também cresceu de
mãos dadas com a expansão do poder americano, dentro e fora da América. Ainda
na entrada do século XXI, são os títulos da dívida pública americana que
lastreiam seu crédito internacional e sustentam o atual sistema monetário
internacional. Quando se olha desse ponto de vista, entende-se melhor a
natureza da crise financeira de 2008, por exemplo, e se percebe que ela não foi
produzida por nenhum tipo de “déficit de atenção” do Estado americano. Pelo
contrário, também nesse caso o que ocorreu foi que o Estado e o capital
financeiro norte-americano se fortaleceram juntos durante as décadas de
1980-1990 e agora estão se defendendo juntos, a cada novo passo e a cada nova
arbitragem que imponha o seu enfraquecimento dentro e fora dos EUA.
Mas, apesar da crise, uma coisa é certa: os títulos
da dívida pública norte-americana seguirão ocupando um lugar central dentro do
sistema interestatal capitalista enquanto o poder americano seguir sendo um
poder expansivo, com ou sem a parceria da China. Também nesse caso, os
ganhadores não podem parar nem deixar de aumentar o seu poder, por maior que
ele já seja. Agora bem: esta “mágica” estará ao alcance de todos os Estados e
todas as economias capitalistas? Sim e não, a um só tempo, porque nesse jogo,
se todos ganhassem, ninguém ganharia, e os que já ganharam estreitam o caminho
dos demais, reproduzindo dialeticamente as condições da desigualdade.
(9) A conquista e preservação de “situações
monopólicas” é talvez o lugar ou a conexão onde a relação entre a acumulação do
poder e a acumulação do capital é mais visível. É disso que está falando
Braudel quando afirma que “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o
Estado, quando é o Estado” (Braudel,
1987, p. 43), porque seu objetivo são os lucros extraordinários que se
conquistam por intermédio de posições monopólicas, e essas posições monopólicas
se conquistam por meio do poder, elas são poder, como fica claro – desde a
primeira hora do sistema, no longo século XIII – na forma em que Veneza e
Gênova disputaram e conquistaram suas posições hegemônicas, dentro da
“economia-mundo mediterrânea”. Para Braudel, “o capitalismo é o antimercado”,
exatamente porque o mercado é o lugar das trocas e dos “ganhos normais”,
enquanto o capitalismo é o lugar dos “grandes predadores” e dos “ganhos
anormais”.
A acumulação do poder cria situações monopólicas, e
a acumulação do capital “financia” a luta por novas fatias de poder. Nesse
processo conjunto, os Estados estimularam e financiaram desde o início o
desenvolvimento e o controle monopólico de “tecnologias de ponta”, responsáveis
pelo aumento do excedente econômico e da capacidade de defesa e ataque desses
Estados. Como dizia Braudel ainda uma vez, “só há crescimento significativo da
empresa quando há associação com o Estado – o Estado, a mais colossal das
empresas modernas que, crescendo sozinho, tem o privilégio de fazer crescer as
outras” (Braudel, 1996, p. 391). Assim mesmo, com o passar dos séculos, o mundo
do capital adquiriu uma autonomia relativa crescente em relação ao mundo do
poder, mas manteve a sua relação de dependência essencial, sem a qual não
existiria o próprio sistema “interestatal capitalista”.
É nesse sentido que Braudel também conclui que, se
o capitalismo é o antimercado, ele não pode sobreviver sem o mercado. Ou seja,
ao contrário do que pensam os institucionalistas, o desenvolvimento econômico e
a acumulação do capital não passam apenas pelo respeito às regras e às
instituições. Pelo contrário, quase sempre passam pelo desrespeito às regras e
pela negação frequente dos regimes e das instituições construídas em nome do
mercado e da competição perfeita. Regimes e instituições que servem muitas
vezes para bloquear o acesso às inovações e aos monopólios, por parte dos
concorrentes mais débeis que são obrigados a se submeterem às regras. Quem
liderou a expansão vitoriosa do capitalismo foram sempre os “grandes
predadores” e as economias nacionais que souberam navegar com sucesso na
contramão das “leis do mercado”.
(10) Até o fim do século XVIII, o “sistema
interestatal capitalista” se restringia aos Estados europeus e aos territórios
incluídos dentro de seu espaço de dominação colonial. Esse sistema só se
expandiu e mudou sua organização interna depois da independência dos Estados
Unidos e dos demais Estados latino-americanos. No momento da independência, os
Estados latino-americanos não dispunham de centros de poder eficientes, nem contavam
com “economias nacionais” integradas e coerentes.
Foi apenas no cone sul do continente que se formou
um subsistema estatal e econômico regional, com características competitivas e
expansivas, sobretudo, na região da Bacia do Prata, pelo menos até o século XX.
Esse mesmo cenário se repetiu depois de 1945, com a maioria dos novos Estados
criados na África, na Ásia Central e no Oriente Médio: não possuíam estruturas
centralizadas e eficientes de poder, nem dispunham de economias expansivas.
Só no sul e no sudeste da Ásia é que se pode falar
da existência de um sistema de Estados e de economias nacionais integradas e
competitivas, que lembra o modelo original europeu. Apesar da sua enorme
heterogeneidade, é possível formular algumas generalizações a respeito do
desenvolvimento econômico e político destes países. Existem países ricos que
não são nem nunca serão potências expansivas, nem farão parte do jogo
competitivo das grandes potências. Existem Estados militarizados, na periferia
do sistema mundial, que nunca chegarão a ser potências econômicas. Mas não há
possibilidade de que algum desses Estados nacionais se transforme em uma nova
potência sem dispor de uma economia dinâmica e de um projeto político-econômico
expansivo. E é pouco provável que algum capital individual ou bloco de capitais
nacionais, públicos ou privados, consiga se internacionalizar com sucesso, se
não for junto a estados que tenham projetos de poder extraterritorial.
(11) Olhando para o movimento conjunto do sistema,
pode-se ver que a expansão dos “Estados-economias nacionais” líderes gera uma
espécie de “rastro econômico”, que se alarga a partir da sua própria economia
nacional, começando pelas economias do “núcleo central”, cujo crescimento
define as fronteiras externas do “rastro do sistema”. Cada um desses
“Estados-economias nacionais” expansivos produz seu próprio rastro e, dentro
dele, as demais economias nacionais se hierarquizam em três grandes grupos,
segundo suas estratégias político-econômicas internas.
Em um primeiro grupo, estão as economias nacionais
que se desenvolvem sob o efeito imediato do líder. Vários autores já falaram de
“desenvolvimento a convite” ou “associado” para referir-se ao crescimento
econômico de países que têm acesso privilegiado aos mercados e aos capitais da
potência dominante. Como aconteceu com os antigos domínios ingleses do Canadá,
Austrália e Nova Zelândia, depois de 1931, e também com a Alemanha, o Japão e a
Coreia, depois da Segunda Guerra Mundial, no momento em que foram transformados
em protetorados militares dos EUA, com acesso privilegiado aos mercados
norte-americanos.
Em um segundo grupo situa-se os países que adotam
estratégias de catch-up para alcançar as “economias líderes”.
Por razões ofensivas ou defensivas, aproveitam os períodos de bonança
internacional para mudar sua posição hierárquica e aumentar sua participação na
riqueza mundial, por meio de políticas agressivas de crescimento econômico.
Nesses casos, o fortalecimento econômico vai junto com o fortalecimento militar
e o aumento do poder internacional do país. São projetos que podem ser
bloqueados, como já aconteceu muitas vezes, mas também podem ter sucesso e dar
nascimento a um novo Estado e a uma nova economia líder, como aconteceu com os
Estados Unidos na segunda metade do século XIX e começo do XX, e está em vias
de acontecer com a China, na segunda década do século XXI.
Por fim, em um terceiro grupo muito mais amplo,
localizam-se quase todas as demais economias nacionais do sistema mundial, que
atuam como periferia econômica do sistema. São economias nacionais que podem
ter fortes ciclos de crescimento e alcançar altos níveis de renda per
capita, e podem se industrializar, sem deixarem de ser periféricos, do
ponto de vista de sua posição dentro do “rastro do cometa”, ou seja, dentro da
hierarquia regional e global de poder.
(12) Se existisse um denominador comum entre todos
os países de forte desenvolvimento econômico, com certeza seria a existência de
um grande desafio ou inimigo externo competitivo, responsável pela existência de
uma orientação estratégica defensiva e permanente, envolvendo quase sempre uma
dimensão político-militar e uma competição acirrada pelo controle das
“tecnologias sensíveis”. Esse foi o caso de todos os Estados e todas as
economias nacionais que fazem parte do núcleo central das grandes potências do
sistema. Nesses casos, a guerra real ou virtual teve um papel decisivo na
trajetória dos seus desenvolvimentos econômicos.
Mas, atenção, porque não se trata da importância
apenas das armas ou da indústria de armamentos, trata-se de um fenômeno mais
complexo que envolveu sempre uma grande mobilização nacional, uma grande
capacidade central de comando estratégico, além de uma economia dinâmica e
inovadora. As armas e as guerras, por si mesmas, podem não ter nenhum efeito
dinamizador sobre as economias nacionais, como no caso da Coreia do Norte, do
Paquistão e de tantos outros países que possuem grandes exércitos e estoques de
armamentos e baixíssima capacidade de mobilização nacional e crescimento
econômico. Neste sentido, tudo indica que Max Weber tenha razão quando afirma
que “em última instância, os processos de desenvolvimento econômico são lutas
de dominação”, ou seja, que não existe desenvolvimento econômico capitalista
que não envolva uma luta de poder e pelo poder (Weber,
1982, p. 18).
Três notas sobre o futuro
Quando se pesquisa o passado, se está sempre
tentando diminuir – de uma forma ou outra – a opacidade do futuro, ainda mais
em um tempo de grandes mutações e incertezas. Mas pensar o futuro não é uma
tarefa fácil e sempre envolve uma alta dose de especulação. Mesmo assim, o
pesquisador deve manter a mais absoluta fidelidade com relação às hipóteses utilizadas
na sua leitura do passado, e é isso que nos propomos fazer nestas três notas
finais deste trabalho, sobre o futuro do sistema interestatal capitalista e da
própria América Latina:
(I) Do nosso ponto de vista, quando se olha para o
sistema interestatal capitalista, de uma perspectiva macro-história e de longa
duração, pode-se identificar quatro momentos em que ocorreram grandes
“explosões expansivas”, dentro do próprio sistema. Nesses períodos, primeiro
ocorreu um aumento da “pressão competitiva”, e depois uma grande “explosão” ou
alargamento das suas fronteiras internas e externas. O aumento da “pressão
competitiva” foi provocado – quase sempre – pelo expansionismo de uma ou várias
“potências líderes” e envolveu também um aumento do número e da intensidade do
conflito entre as outras unidades políticas e econômicas do sistema. E a
“explosão expansiva” que se seguiu projetou o poder dessas unidades ou
“potências” mais competitivas para fora de si mesmas, ampliando as fronteiras
do próprio “universo”.
A primeira vez que isso ocorreu foi no “longo
século XIII”, entre 1150 e 1350. O aumento da “pressão competitiva”, dentro da
Europa foi provocado pelas invasões mongóis, pelo expansionismo das Cruzadas e
pela intensificação das guerras “internas” na península Ibérica, no norte da
França e na Itália. A segunda vez que isso ocorreu foi no “longo século XVI”,
entre 1450 e 1650. O aumento da “pressão competitiva” foi provocado pelo
expansionismo do Império Otomano e do Império Habsburgo e pelas guerras da Espanha
com a França, com os Países Baixos e com a Inglaterra. É o momento em que
nascem os primeiros Estados europeus com suas economias nacionais e com uma
capacidade bélica muito superior a das unidades soberanas do período anterior.
A terceira vez que isso ocorreu foi no “longo
século XIX”, entre 1790 e 1914. O aumento da “pressão competitiva” foi
provocado pelo expansionismo francês e inglês, dentro e fora da Europa, pelo
nascimento dos Estados americanos e pelo surgimento, depois de 1860, de três
potências políticas e econômicas – Estados Unidos, Alemanha e Japão -, que
cresceram muito rapidamente e revolucionaram a economia capitalista e o “núcleo
central” das grandes potências.
Por fim, do nosso ponto de vista, neste momento
está em pleno curso uma quarta grande “explosão expansiva” do sistema mundial,
que começou na década de 1970. Nossa hipótese é que o aumento da pressão dentro
do sistema foi provocado pela própria estratégia expansionista e imperial dos
Estados Unidos, que se aprofundou e radicalizou depois dos anos 1970; mas
também pelo grande alargamento das fronteiras do sistema, com a criação de
cerca de 130 novos Estados nacionais, após o fim da Segunda Guerra Mundial; e,
finalmente, pelo crescimento vertiginoso do poder e da riqueza dos Estados
asiáticos, em particular, da China (Fiori, 2008). Mesmo assim, do nosso ponto
de vista, este aumento da pressão sistêmica não aponta para o fim do poder
americano, e muito menos para o fim do sistema capitalista, ou do próprio sistema
interestatal.
(II) Pelo contrário, depois da derrota do Vietnã e
da reaproximação com a China, entre 1971 e 1973, o poder americano cresceu de
forma contínua, construindo uma extensa rede de alianças e uma infraestrutura
militar global, que lhe permite até hoje o controle, quase monopólico, naval,
aéreo e espacial de todo o mundo. Mas, ao mesmo tempo, essa expansão do poder
americano contribuiu para a “ressurreição” militar da Alemanha e do Japão e
para a autonomização e fortalecimento da China, da Índia, do Irã e da Turquia,
além do retorno da Rússia ao “grande jogo” da Ásia Central e do Oriente Médio.
Os revezes militares dos Estados Unidos na primeira
década do século desaceleraram o seu projeto imperial. Mas uma coisa é certa:
os EUA não abdicarão voluntariamente do poder global que já conquistaram e não
renunciarão à sua expansão contínua no futuro. Por outro lado, depois do fim do
Sistema de Bretton Woods, entre 1971 e 1973, a economia americana cresceu de
forma quase contínua até o início do século XXI. Ao associar-se com a economia
chinesa, a estratégia norte-americana diminuiu a importância relativa da
Alemanha e do Japão para sua “máquina de acumulação” global de capital. Ao
mesmo tempo, contribuiu para transformar a Ásia no principal centro de acumulação
capitalista do mundo, transformando a China em uma economia nacional com enorme
poder de gravitação sobre toda a economia mundial.
Essa nova geometria política e econômica do sistema
mundial se consolidou na primeira década do século XXI e deve se manter nos
próximos anos. Do nosso ponto de vista, os Estados Unidos manterão sua
centralidade dentro do sistema, como a única potência efetivamente capaz de
intervir em todos os tabuleiros geopolíticos do mundo, e mantendo-se, ao mesmo
tempo, o Estado que emite a moeda de referência internacional. Daqui para
frente, a União Europeia terá um papel cada vez mais secundário, como
coadjuvante dos Estados Unidos, sobretudo, se a Rússia e a Turquia aprofundarem
seus laços com os EUA dentro Oriente Médio. Nesse novo contexto internacional,
a Índia, o Brasil, a Turquia, o Irã, a África do Sul, e talvez a Indonésia,
deverão aumentar o seu poder regional e global, em escalas diferentes, mas
ainda não terão por muito tempo, capacidade de projetar seu poder militar além
das suas fronteiras regionais. De qualquer forma, duas coisas se podem dizer
com bastante certeza, neste início da segunda década do século XXI:
(a) Não existe nenhuma “lei” que defina a sucessão
obrigatória e a data do fim da supremacia americana. Mas é absolutamente certo
que a simples ultrapassagem econômica dos EUA não transformará,
automaticamente, a China em uma potência global, muito menos na líder do
sistema mundial.
(b) Terminou, definitivamente, o tempo dos
“pequenos países” conquistadores. O futuro do sistema mundial envolverá – daqui
para frente – um permanente “jogo de guerra de posições” entre grandes “países
continentais”, como é o caso pioneiro dos EUA, e agora é também o caso da
China, Rússia, Índia e do Brasil. Nessa disputa, os EUA já ocupam o epicentro
do sistema mundial; porém, mesmo antes que os outros quatro países adquiram a
capacidade militar e financeira indispensável à condição de potência global,
eles já controlam em conjunto cerca de um terço do território e quase metade da
população mundial.
(III) Por fim, com relação à América Latina, o
Brasil conquistou um razoável grau de autonomia neste início do século XXI, e
já entrou no grupo dos Estados e das economias nacionais que fazem parte do
“caleidoscópio central” do sistema, no qual todos competem com todos, e todas
as alianças são possíveis, em função dos objetivos estratégicos do país e da
sua proposta de mudança do próprio sistema internacional. Essa nova importância
política e econômica deverá crescer nos próximos anos de forma regular, na
América do Sul, no Atlântico Sul e no sul da África, mas o Brasil seguirá sendo
um país sem capacidade de projeção global do seu poder militar.
Deste ponto para frente, a América Latina será cada
vez mais hierarquizada, e o futuro da América do Sul, em particular, será cada
vez mais dependente das escolhas e decisões tomadas pelo Brasil. Em primeiro
lugar, se o Brasil tomar o “caminho do mercado” ele deve se transformar, com
toda certeza, numa economia exportadora de alta intensidade, de petróleo,
alimentos e commodities, uma espécie de “periferia de luxo” das
grandes potências compradoras do mundo, como foram no seu devido tempo a
Austrália e Argentina, ou o Canadá, mesmo depois de industrializado.
Neste caso, o resto da América do Sul deve seguir o
mesmo caminho e manter-se na sua condição originária de periferia
“primário-exportadora” da economia mundial. Mas o Brasil também pode seguir um
caminho novo dentro da América do Sul, combinando indústrias de alto valor
agregado, com a produção de alimentos e commodities de alta
produtividade, sendo, ao mesmo tempo, autossuficiente do ponto de vista
energético. Mas esta não será nunca uma escolha puramente técnica ou mesmo
econômica, porque ela supõe uma escolha prévia, de natureza política e
estratégica, sobre os objetivos do Estado e da inserção internacional do
Brasil.
E aqui de novo, existem pelo menos duas
alternativas para o Brasil: manter-se como sócio privilegiado dos Estados
Unidos, na administração da sua hegemonia continental; ou lutar para aumentar
sua capacidade de decisão estratégica autônoma, no campo da economia e da sua
própria segurança, por meio de uma política determinada de complementaridade e
competitividade crescente com os Estados Unidos, de forma solidária com a
América do Sul, formando alianças variáveis e circunstanciais com as demais
potências do sistema mundial.Tudo isto, entretanto, só poderá se transformar em
realidade se o Brasil for capaz de desenvolver seus próprios recursos e
instrumentos de ação e projeção de sua presença dentro do seu tabuleiro
regional, e no contexto do sistema internacional..
*José Luis Fiori é professor de
economia política internacional na UFRJ. Autor, entre outros livros de Sobre
a Guerra (Vozes, 2018).
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