sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A terceira década da América Latina e a necessidade de um projeto antineoliberal. Por Emir Sader

            Publicado por Joaquim de Carvalho
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Chile. Foto: Reprodução/Facebook/Carol Proner

O século XX foi anunciado como um século de revoluções e contra-revoluções, já na sua primeira década, com o massacre da Escola Santa Maria de Iquique, no Chile, e a Revolução Mexicana. A segunda década incluiu a Reforma Universitária de Córdoba e as mobilizações populares que levaram à fundação dos Partidos Comunista e Socialista. A terceira década foi aberta com levantes populares liderados por Sandino e Farabundo Marti, na Nicarágua e em Salvador. Tudo confirmava os presságios da virada do século.

O século XXI começou em um quadro de virada conservadora no mundo, com seus reflexos na América Latina, território de maior número de governos neoliberais, em suas formas mais radicais. A última década do século XX foi a da ascensão da hegemonia neoliberal no continente, que se impôs como um consenso, no marco internacional do Consenso de Washington e do pensamento único. O chanceler brasileiro que concordou em tirar os sapatos para entrar em um aeroporto dos Estados Unidos e o desejo de Carlos Menem de estabelecer “relações carnais” com os Estados Unidos – são símbolos da posição de total subordinação dos governos do continente a Washington naquela década.

Mas a primeira década do século 21 na América Latina surpreendeu, com uma onda de reação aos governos neoliberais, mudando radicalmente o cenário político no continente e tornando-se, mais uma vez, o epicentro das lutas no plano internacional. Ao triunfo eleitoral solitário de Hugo Chávez na Venezuela, ainda no final do século, somou-se a vitória de Lula no Brasil. Chávez apareceu na posse do novo presidente brasileiro, afirmando que, finalmente, deixaria de estar sozinho na luta.

O abraço de Lula a Nestor Kirchner, na posse deste, no primeiro ano do novo governo brasileiro, foi um marco que selaria a primeira década do século na América Latina. Os dois governos se tornariam o eixo dos processos de integração regional que nasceram naquela época. Quando os dois foram à posse de Tabaré Vázquez no Uruguai, já tinham claro que havia nascido um projeto com dimensões estratégicas para a América Latina. A Bolívia se juntou a isso com o triunfo extraordinário de Evo Morales e o do Equador, com o de Rafael Correa, que expressou que não se tratava mais de uma nova época de mudança, mas de uma mudança de época.

Esses seis governos protagonizaram, na primeira década do novo século, a luta contra o neoliberalismo e a construção de governos pós-neoliberais. Ao contrário do capitalismo em escala mundial, as desigualdades nesses países diminuíram, a presença do Estado se fortaleceu e eles desenvolveram processos de integração regional e intercâmbio Sul-Sul. Eles tiveram um sucesso extraordinário, tornando a década a mais importante da história desses países.

Na passagem para a segunda década do século XXI, já se observavam elementos de recomposição da iniciativa de direita e fragilidades desses governos, que fizeram com que a segunda década fosse marcada por uma contraofensiva de direita, que restaurou governos neoliberais em países como Argentina, Brasil, Equador, Bolívia e Uruguai, desmontando o eixo de governos antineoliberais que havia marcado a primeira década.

Ao longo da década, o neoliberalismo mostrou como suas políticas duraram pouco, a ponto de na Argentina, na primeira eleição presidencial a que foram submetidos, foram novamente destituídos do governo. Em outros países, como Equador e Brasil, está comprovado que a direita só tem o modelo neoliberal, duro e puro, que a leva ao fracasso. Que tendem a ser derrotados nas disputas eleitorais democráticas, diante das quais puseram em prática sua estratégia de judicializar a política, pondo em prática novas formas de golpe, como os casos do Brasil e da Bolívia, que mostram antes a fragilidade da direita e não sua força.

Quando chegamos ao final da segunda década, há uma disputa aberta sobre o caráter que a terceira década terá na América Latina. As eleições na Bolívia e no Equador, assim como o desfecho da crise brasileira, vão definir as características desta nova década. No caso de triunfo da esquerda, esses novos governos se somarão ao da Argentina, contando, em certa medida, também com o do México – limitado pelos acordos de livre comércio que mantém com os Estados Unidos -, bem como com o da Venezuela, para reconstruir o eixo dos governos anti-neoliberais. Como a direita mantém o neoliberalismo como bandeira, esses governos devem caracterizar-se, antes de tudo, pelo seu antineoliberalismo.

Quando surgiu a crise desses governos, há alguns anos, Rafael Correa convocou uma reunião em Guayaquil, uma reunião para avaliar as mudanças que estavam por vir. Pepe Mujica e representantes da Bolívia, Brasil, Argentina e Uruguai também participaram, entre outros. A decisão foi de publicar um livro com um balanço da situação e das perspectivas dos seis governos. Eu coordenei a publicação do livro que levou o título de As vias abertas da America Latina, publicado na Argentina, Brasil, Venezuela, Equador e Bolívia.

Nesse livro Álvaro Garcia Linera, Rene Ramirez, Ricardo Forster, Constanza Moreira, Alfredo Serrano, Manuel Canelas, Juan Guijaro e eu, apresentamos nossas visões de cada país, introduzidas por uma análise geral das tendências em todo o continente. Agora é a hora de assumir algo semelhante, com um ambicioso projeto de pesquisa que faça um balanço da primeira e da segunda décadas nesses países e projete a terceira década.

É hora de convocar os intelectuais do pensamento crítico latino-americano a aderir a este projeto, a analisar e apoiar as forças políticas antineoliberais na reconstrução do eixo de governos com essa orientação, bem como a fazer análises sobre as fragilidades que permitiram a recomposição da direita e os reveses da esquerda, para retomar o projeto antineoliberal com mais profundidade e ampliar suas plataformas para a transformação econômica, política, social e cultural da América Latina.

Um projeto que pode tomar o livro As vias abertas da América Latina como referência inicial, mas com análises mais extensas para trás e para frente. Que seja uma das linhas de pesquisa mais importantes da era pós-pandêmica, para além das iniciativas mais atuais, o que também nos permite recompor um eixo de pensamento crítico latino-americano, tão necessário hoje. Um projeto que pode levar a um seminário – virtual ou, talvez, o primeiro seminário presencial – e a um livro, publicado na América Latina e outras regiões, visto que temos as experiências mais importantes da luta antineoliberal. A terceira década latino-americana pode ser o título que define o marco desse projeto, condição essencial para voltarmos a avançar na América Latina.

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