segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Anarco Aurelio e Luiz Fux no palco iluminado do Supremo

Ora, é possível manipular as decisões nas duas mãos, usando os meios ou recorrendo aos fins. Basta deixar de lado a apreciação do caso, do que é justo ou não é justo, razoável e não razoável

        Por Luis Nassif

Logo após o Plano Cruzado, me envolvi em uma guerra terrível contra o então Consultor Geral da República, posteriormente Ministro da Justiça, Saulo Ramos. Este preparava decretos, portaria, projetos com favorecimentos indecentes a diversos setores, mas todos eles formalmente bem embalados pelo talento de seu principal assessor, Celso de Mello, futuro Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Eu tinha problemas imensos para rebater os argumentos supostamente técnicos. Por mais que me esforçasse, não conseguia captar o que Saulo chamava de lógica jurídica.

De fato, com o Plano Cruzado a correção monetária, que era corrigida pela inflação, ficou congelada por um ano. Saulo deu um parecer considerando que títulos emitidos na véspera do final do congelamento, também teriam direito a um ano de correção. Era uma evidente burla do congelamento. Mas Saulo se escudava na própria lei do Cruzado para endossar a tese. E quem sou eu para discutir com o doutor no seu campo de conhecimento?

Na época, consegui uma fonte inesperada, o Ministro Sidney Sanches, do STF. Falei com ele, indaguei minha enorme dificuldade em entender a lógica jurídica. E ele me passou o mapa do entendimento.

– Analise uma decisão em si. Se é justa ou não em relação ao caso analisado. Se não for justa, a decisão estará errada. Ponto.

Dou esse volta para analisar a ópera bufa deste final de semana, estrelada pelos Ministros Marco “Anarco” Aurélio de Mello e Luiz Fux.

Anarco Aurélio, é um perseguidor incessante da extravagância. Tem a qualidade indiscutível de se colocar, sempre, contra a corrente. E a bandeira louvável de ser um contraponto à liberdade excessiva com que Ministros passaram a atuar para redesenhar a Constituição a golpes de interpretação, com a marreta do “clamor popular”, sob a justificativa de que os fins justificam os meios. Anarco Aurélio levantou outra bandeira: os meios justificam os fins. Mas jamais conseguiu entender os limites entre a razoabilidade e a extravagância. Suas decisões não visam melhorar a jurisprudência, abrir brechas na hermenêutica jurídica, mas para ser meramente do contra.

Analise-se esse caso em pauta.

O legislador visou corrigir uma enorme distorção nas prisões preventivas transformadas em eternas, penalizando especialmente pequenos infratores que lotam os presídios atualmente. Exigiu, então, que, para manter a pessoa presa, a prisão preventiva deveria ser renovada de tempos em tempos, para evitar que o caso caísse na vala do esquecimento.

Aí cai nas mãos de Anarco Aurélio o caso de um traficante de alta periculosidade, um dos chefes do PCC, cuja prisão preventiva não foi renovada nem pelo procurador, nem pelo juiz. O que faria um Ministro com dose mínima de bom senso? Daria um puxão de orelhas em ambos e um prazo para renovar o pedido de prisão. Simples assim.

O que fez Anarco Aurélio? Manda libertar um réu que comanda uma organização criminosa internacional, tem à sua disposição recursos, aviões, esquemas internacionais e alega que a culpa é do promotor e ele não está ali para corrigir erros de terceiros. Fantástico!

Imediatamente colocou em risco os direitos de milhares e milhares de pequenos prisioneiros, sem o poder de influência do chefão do. PCC. Prestou um enorme desserviço aos mais vulneráveis, comprometeu as teses garantistes. Em nome de quê? Da extravagância.

Em março passado, Anarco Aurélio mandou soltar todos os presos com mais de 60 anos que fossem considerados de grupos de risco. Pior que a proposta de Marco Aurélio foi a contra-razão do vice-Procurador Geral da República Humberto Jacques. Segundo ele, não seria razoável que a população carcerária fosse posta em liberdade quando, em decorrência da pandemia, “todos estão sendo instados a reduzir a circulação”. Ganhou o Prêmio Luigi Ferrajoli de interpretação do conceito de isonomia.

Nos últimos anos, Marco Aurélio se colocou contra a compulsão de muitos de seus colegas, de adaptarem as leis às suas convicções, sob o argumento de que os fins justificam os meios. Seu grito de guerra passou a ser “os meios justificam os fins”.

Ora, é possível manipular as decisões nas duas mãos, usando os meios ou recorrendo aos fins. Basta deixar de lado a apreciação do caso, do que é justo ou não é justo, razoável e não razoável. Lá atrás, quando tentava enrolar a opinião pública, Saulo Ramos recorria à interpretação literal da lei – escrita por ele mesmo. Mas é justo a viúva pagar 12 meses de correção monetária por um título de um mês de vida? É evidente que não.

É justo soltar um criminoso perigosíssimo, com base em um cochilo do promotor e do juiz? A lei diz que sim, alega Anarco Aurélio. Um mínimo de bom senso faria com que o Ministro alertasse e desse um prazo para que promotor e juiz renovassem o pedido de prisão preventiva. Mas isto não é problema meu, alega Anarco, não vou corrigir erros de terceiros. E o interesse público que exploda. Isto em um tribunal que aboliu completamente o conceito de irrelevância na análise de HCs, que nega HCs para quem roubou pacotes de manteiga, ou comida para saciar a fome.

Para completar o ciclo do salve-se quem puder no STF, o presidente Luiz Fux – que sonha ser carregado nos ombros por multidões ululantes, sequiosas de sangue – atropela a colegialidade e cassa a liminar dada por um colega.

O Supremo tem salvação?

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