Eichmann achava-se um homem cumpridor dos seus deveres e, até a sua morte, nunca entendeu porque foi levado a um tribunal para julgamento por ter cumprido a lei. Em sua autoconcepção, Eichmann se via como o homem virtuoso e honrado, pois sequer se recusara a obedecer a razão do Estado cristalizada na legislação vigente. Em sua razão arrogante, Eichmann deixou explícito que se há ou não a justiça no texto legal, isso não era problema seu, mas do legislador que a fez.
Era assim que ele lavava as suas mãos ante o compromisso de ser indiferente ao mal ou ao bem, ante o dever que assimilou de não se achar no direito de fazer qualquer julgamento moral.
Um dos grandes desafios de Hannah Arendt foi mostrar Eichmann como julgador, e não meramente como o réu que um dia foi julgado em Jerusalém. Para além do nazismo, Eichmann sempre foi um julgador modelo inspirador para a burocracia. Ele julgava reiterando, e não julgava decidindo, quem iria ou não para os campos de concentração ou para as câmeras de gás. Nesse contexto, surge o desafio de se especular como Eichmann seria se retornasse aos tempos atuais.
Se Eichmann fosse o juiz de nossos tempos ele teria uma associação de juízes para esbravejar: “desculpe-me, eu cumpri a lei…” Ele chamaria a sua fidelidade de disciplina judiciária e a invocaria como escudo sempre que alguém lhe fizesse um apelo de misericórdia;
Se Eichmann fosse o juiz ele diria, da sua cabine ou gaiola de vidro, que era um homem incorruptível e que a história não deveria julgar os julgadores porque eles eram apenas os operadores do direito, eram os engenheiros ou as parteiras que davam vida aos efeitos decorrentes da aplicação dos textos legais.
Se Eichmann fosse o juiz dos tempos neoliberais, ele se autoqualificaria como um “homem de bem” e diria que suas decisões observam estritamente o aspecto jurídico, sem qualquer valoração moral.
Os “homens de bem” vestidos de toga, segundo a lógica do juiz Eichmann, podem ser identificados pela personalidade obtusa aos sentidos e letárgica em relação ao senso histórico.
Muitos juízes, a exemplo do Eichmann, continuam a ser selecionados para assumir a função de julgar segundo uma racionalidade que desconsidera os afetos, as condicionalidades históricas e as fraquezas humanas. Hannah Arendt diria que eles não são pervertidos, nem sádicos, mas são terrível e assustadoramente normais.
Do ponto de vista das instituições e dos atuais padrões morais de julgamento, essa normalidade continua a ser a mais apavorante de todas as atrocidades juntas, pois implica no dizer de Hannah Arendt “(…) um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir quem está agindo de modo errado“.[5]
Para Hannah Arendt conhecer a personalidade normal desafia conhecer a regra, isto é, o normativo. O apavorante, segundo a citada escritora judia, não é conhecer o anormal, mas a normalidade do perfil do burocrata que o Estado consegue construir a partir da superficialidade. O mal de Eichmann, segundo Arendt, não advém necessariamente da ideologia, dos instintos e sequer tem relação com a essência ou com alguma crença sobrenatural; para ela, o mal é algo banal e sem precedentes.
Hannah Arendt ao reduzir a sua explicação à banalidade do mal, recusou-se a enxergar a relação de causa e efeito na formação da naturalização da perversão. Ela achou que a banalidade do mal era algo que surgia sem inspiração e sem historicidade, no acaso da perversão humana. Arendt não percebeu que o nazismo, sob a influência da luta colonialista entre os países centrais, era uma disfuncionalidade da incontrolabilidade capitalista. Ela se negou a perceber, por exemplo, que o nazismo, Eichmann e o conflito de classe consubstanciavam a competição pela relação da exploração do trabalho.
Para que o equívoco de Arendt não se repita, a interpretação sobre o Juiz Eichmann nos dias atuais imprescinde da consideração sobre o modo como o Estado-Juiz e a forma jurídica atuam na processualidade histórica que existe para mascarar a relação de exploração capitalista.
Enfim, a cegueira produzida pela práxis conservadora e anti-histórica de parte da magistratura mantém os “juízes Eichmann” como armadilhas de classe, sujeitos da burocracia que naturalizam a perversão da exploração e da desigualdade social, partejadas pelo modo de produção vigente, e que abdicam de refletir sobre a relação sociohistórica entre as suas práticas e a reprodução da barbárie.
Zéu Palmeira Sobrinho – Juiz do Trabalho e Professor da UFRN
Notas:
[1] PACHUKANIS, Evguiéni B. Fascismo. São Paulo: Boitempo, 2020.
[2] OST, François. Júpiter, Hércules e Hermes: os tres modelos de juez. Academia: revista sobre enseñanza del derecho de Buenos Aires, ISSN 1667-4154, Año 4, Número 8, 2006, págs. 101-130.
[3] MACHADO, Antonio Alberto. Ensino jurídico e mudança social. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 226.
[4] ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
[5] Op. Cit., p. 299.
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