Bolsonaro chegou ao meio do mandato mais forte do que começara.
Os dois primeiros anos de governo Bolsonaro, é preciso reconhecer, não decepcionaram. O presidente mostrou ser, no cargo, exatamente o que revelara ao longo da campanha eleitoral e de toda sua vida pública pregressa.
Se houve alguma surpresa, foi que Bolsonaro, a despeito de toda sua incapacidade administrativa e aparente dificuldade cognitiva, soube navegar em meio ao arco de apoios que viabilizou sua eleição e chegou ao meio do mandato mais forte do que começara. Desvencilhou-se de um de seus “superministros”, Sérgio Moro, com desgaste político mínimo. Quanto ao outro, Paulo Guedes, fez com que engolisse a empáfia e se submetesse docilmente às ordens do chefe.
Bolsonaro ampliou o comprometimento das Forças Armadas com seu governo, sem aceitar a tutela que os generais queriam impor a ele. Enquadrou os olavistas e transformou o “guru” de candidato a eminência parda a um apoiador como qualquer outro. Acertou o passo nas negociações com o Centrão e passou a dispor de uma base alargada no Congresso, ainda que instável, como toda base parlamentar venal. Ampliou sua influência sobre as polícias, avançando na direção de uma meta estratégica, que é garantir a lealdade pessoal de corpos armados.
Colocou em cargos sensíveis do Ministério Público gente disposta a protegê-lo. Entre concessões e ameaças, chegou a um modus vivendi com o Supremo. Com isso, alcançou um de seus objetivos centrais: os vários esqueletos que o assombravam (das rachadinhas ao assassinato de Marielle) estão há muito já fora dos armários, mas perderam a capacidade de atingi-lo.
A pandemia do novo coronavírus levou, de forma talvez inesperada, a uma aceleração do distanciamento entre Bolsonaro e seus aliados de ocasião na direita mais tradicional, como João Doria e Rodrigo Maia. Em aposta que parecia arriscada, ele jogou tudo no negacionismo e na irracionalidade, sacrificando as políticas de saúde em favor do fortalecimento de sua persona política. Mostrou que entende seu país: um país que despreza a vida, seja por interesse ou por desespero, e que cada vez mais se espelha na violência. Graças a isso e ao auxílio emergencial aprovado contra sua vontade, mas que ele soube capitalizar a seu favor, foi capaz de manter altos índices de aprovação popular mesmo em meio ao colapso do atendimento hospitalar e de mortes contadas diariamente na casa das centenas ou do milhar.
É impossível calcular com exatidão quantas vidas o boicote de Bolsonaro às medidas de combate à pandemia já custou e ainda vai custar – da campanha contra o isolamento social e da promoção da cloroquina até a sabotagem da vacinação. Certamente são muitos milhares. Raras vezes na história do mundo terá havido um governo tão evidentemente lesivo ao interesse nacional, de qualquer forma que ele seja entendido.
Mesmo diante de um governo assim, as famosas instituições não são capazes de atingir um consenso em favor de retirá-lo do cargo. Bolsonaro sabota as medidas de saúde pública, mal esconde suas ligações com o crime organizado, aparelha o Estado para proteger a si mesmo e seus familiares, difunde mentiras com o objetivo de tumultuar o jogo político, namora à luz do dia com a ideia de um novo golpe, transformou o país num pária da comunidade internacional, fez do servilismo diante dos Estados Unidos o norte da política externa, promove a ampliação do desemprego, da miséria e da fome. Mas o que se vê são as lideranças do PSDB e do DEM preocupadas em evitar a “instabilidade” que um processo de impeachment ocasionaria e ministros do STF indo periodicamente a público afiançar que o presidente da República não constitui nenhuma ameaça à democracia brasileira, muito pelo contrário.
Uma democracia, diga-se de passagem, que mal merece o nome. A presidência de Bolsonaro, mais do que causa, é sintoma de sua decadência. É uma presidência viabilizada (a) pelo golpe de 2016, que fraturou a ordem determinada pela Constituição de 1988; (b) pela Operação Lava Jato, que instrumentalizou o Poder Judiciário para a perseguição de grupos políticos; e (c) pela prisão arbitrária do ex-presidente Lula, para a qual não faltaram pressões explicitas da cúpula militar. Ela é uma demonstração de que a classe dominante brasileira julga que, neste momento, a democracia política não convém a seus interesses.
O Brasil é um caso particularmente extremo daquilo que há tempos vem sendo chamado de desdemocratização. A palavra não indica apenas – como nas obras sobre a crise da democracia que o mainstream da Ciência Política produz desde a vitória eleitoral de Donald Trump, em 2016 – o sucesso de líderes autoritários que se esforçam por destruir, a partir de dentro, o arcabouço institucional próprio das democracias liberais. Ela indica que o espaço das decisões a serem tomadas de forma democrática, exigindo respaldo popular, é cada vez mais limitado, isto é, que o poder de veto das grandes corporações, do capital financeiro, dos credores das dívidas públicas é cada vez maior. O avanço do chamado “populismo de direita”, que acionou o sinal de alarme em tantos cientistas políticos, é antes um efeito dos sentimentos de alienação e de desilusão com os mecanismos de expressão política disponíveis nos regimes concorrenciais, que a desdemocratização agravou.
No caso do Brasil, o centro da narrativa é ocupado pela insatisfação crescente da classe dominante e dos setores de classe média que ela atrai para sua órbita com o (modesto) avanço civilizatório obtido nos governos do PT. O golpe de 2016 e o governo Temer apontavam na direção de uma redução do espectro do politicamente possível, com a imposição de retrocessos importantes sem que o campo popular fosse aceito sequer como interlocutor no debate. O apoio a Bolsonaro no segundo turno, recusando qualquer possibilidade de diálogo com a moderada candidatura de Fernando Haddad, já indicou a radicalidade com que esse caminho era abraçado – e, mais ainda, a prolongada leniência diante de um governo tão insensato e destrutivo.
Como revelaram nitidamente as fracassadas movimentações em favor de uma frente ampla contra Bolsonaro, em meados de 2020, o preço a pagar para uma “normalização” democrática seria aceitar os retrocessos e, em especial, o veto a qualquer protagonismo de organização e atores políticos vinculados aos interesses populares. Em suma: a normalização democrática projetada pelas classes dominantes passa pelo impedimento da retomada de qualquer dinâmica política que se aproxime da democracia.
É que a direita tradicional se afirma como oposição a Bolsonaro e de fato se diferencia dele em muitos pontos, por convicção ou por oportunismo. Mas a desdemocratização é também seu projeto. É o caminho para anular a possibilidade de que os direitos políticos sejam usados para reduzir as desigualdades e construir uma sociedade mais justa.
O que o processo global de desdemocratização mostrou foi que a democracia, por mais que seja comumente apresentada como um terreno neutro de regras justas para resolver disputas políticas, é de fato uma conquista dos dominados e só é capaz de se sustentar na medida em que eles tenham força para tanto. Ele revelou a fraqueza do consenso liberal sobre a democracia procedimental, louvada em prosa e verso ao final da Guerra Fria, e a futilidade das teorias idealistas da democracia que prosperaram mesmo nos meios críticos (como a “democracia deliberativa”) – que formam o equivalente secular das disputas escolásticas sobre o sexo dos anjos.
No caso do Brasil, a situação é ainda mais dramática porque nossas classes dominantes têm baixíssima tolerância à igualdade social. Mesmo em doses homeopáticas, ela causa reações extremas. Por isso, apesar de todas as críticas que lhe fazem, Bolsonaro é tolerável.
O governo Bolsonaro expõe a impossibilidade de construção democrática no Brasil sem o enfrentamento do imperialismo e do capitalismo. Qualquer avanço será tíbio e instável se não houver uma correlação de forças que o garanta, isto é, se não houver capacidade de pressão da classe trabalhadora e dos outros grupos dominados.
Ainda atordoada pelas sucessivas e graves derrotas que sofreu nos últimos anos (“esse inimigo não tem cessado de vencer”, como dizia Walter Benjamin), a esquerda mostra dificuldade para encontrar o caminho da mobilização e da organização popular. Muitas vezes, parece esperar pela mítica bala de prata que derrotará o bolsonarismo com um único disparo – as revelações da Vaza Jato, a prisão de Queiroz ou mesmo o caos sanitário. Mas a ideia da bala de prata revela a permanência da ilusão da normalidade institucional: alguns fatos são tão graves que obrigariam a uma reação das instituições políticas em defesa da ordem que elas encarnam. Não é assim. Enquanto Dilma foi derrubada à base de pretextos de ocasião, Bolsonaro continuará cometendo crimes de responsabilidade dia sim, dia também, sem ser tocado, enquanto se considerar que retirá-lo do cargo põe em risco o projeto de retrocesso social e de desdemocratização.
Pode ser que Bolsonaro conclua seu mandato e até conquiste outro. Pode ser que seja interrompido no meio do caminho. Mas convém não esquecer a complacência das instituições, a tolerância da elite política conservadora, a cumplicidade da burguesia diante de um governo criminoso, antinacional e liberticida. O risco é aceitar que a normalização pós-Bolsonaro entronize a ordem que emerge da desdemocratização.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
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