domingo, 7 de março de 2021

O que é mesmo ser analfabeto?



Omar dos Santos

Escrevi e publiquei este artigo em maio de 2017. Vale dizer que a motivação de sua produção foi a necessidade de oferecer contra argumentação ao autor de um texto, encaminhado a mim por WhatsApp, no qual, o mesmo, como frequentemente ocorre com a nova “estirpe” de analistas da cultura, política e economia brasileiras, surgida na esteira da massificação do acesso à Internet, tem como maior deleite o achincalhamento da imagem de nosso país.

Passados esses três anos, o que se observa é o exponencial aumento em número e intensidade deste fenômeno, o que justifica a republicação deste texto.

Pois bem, o referido autor, sequaz de um desses grupos especializados em falar mal do Brasil e dos brasileiros, sobretudo daqueles que discordam de suas “palavras de sabedoria”, essas bebidas nas fontes dos inúmeros intelectuais mestres de cátedras da Society Net University, – em estrangeiro fica mais chique –, “sabiamente” chega, a partir de análises abstrusas, a uma conclusão que abriga em sua proposição verdadeiro despautério, se não isso, uma demonstração inequívoca de iniquidade. Para esse sábio, existe uma clara relação de causa e efeito entre a formação cultural do presidente de um país e as probabilidades de seus cidadãos conquistarem o Prêmio Nobel.

Permita-me o estimado leitor fazer um resumo do texto para que você possa entender a mistura de indigência teórica e falta de bom senso do autor sobre o assunto, a qual pode explicar a enorme tendenciosidade com que ele o aborda.

A mensagem mostra o mapa do mundo com uma notação enumerando, por país, os ganhadores do Prêmio Nobel. Abaixo da mesma, há um texto que explicita a ideia central da mensagem, que é concluída, de forma lacônica, com o seguinte ensinamento:

“Um povo que vota num analfabeto para presidente da república não
pode ganhar o Prêmio Nobel”.

Já de início, o autor demonstra sua especialidade em denegrir a imagem de nosso país e povo, mas, sobretudo, deixa claro seu desconhecimento sobre História, Geografia, Ciência etc.

Primeiro ele compara países com continentes, como é o caso da comparação feita entre o Brasil com o Continente Asiático. Segundo, ao apresentar a quantidade de ganhadores, por país, do referido Prêmio, só o Brasil está marcado com 0 (zero), dando a nítida ideia de que só os brasileiros nunca o conquistaram, afirmação essa que encerra pelo menos duas mentiras, já que pelo menos dois conterrâneos nossos já foram honrados com ele. Não se sabe se por ignorância sobre o assunto ou se por maldade mesmo, o autor não considerou o fato de que pouquíssimas nações têm cidadãos ganhadores do Nobel. Mas isto faz parte da fanfarrice que um certo boçal residente em Brasília ensina às gentes de sua linhagem.

Obviamente que o autor da mensagem, sabendo das limitações intelectuais de seus replicadores, os quais, para empregar uma expressão da militância sindical, chamarei de – correias de transmissão obtusas –, se refere ao fato de Lula ter sido eleito Presidente da República por dois mandatos e ter contribuído decisivamente para a eleição da Presidenta Dilma por mais dois.

E é aí que se põe o “pomo da discórdia”! Sou dos que acreditam que tal feito causa, até hoje, e penso que causará para sempre, a mais profunda amargura não só em nossas elites, mas igualmente em nossa “pequena burguesia”. Não fora isto, como explicar a ignomínia e a ferocidade que uniu esses segmentos sociais e os três poderes da República para engendrar e perpetrar, de uma só vez, o golpe cívico-militar contra a Constituição do país e a Presidenta Dilma, como também a tentativa de desonrar e destruir a profícua história do Presidente Lula.

Aqui confesso que não é sem contrariedade que escrevo sobre a tal mensagem, pois penso que o leitor não precisaria conhecer tal espurcícia, se assim o faço é para instiga-lo à reflexão sobre algumas questões subjacente a ela, a mensagem.

De início, fica claro o desconhecimento do autor sobre os propósitos e as finalidades do Prêmio Nobel e dos critérios que regem a escolha de seus agraciados.

Como se sabe, o Prêmio foi criado para concretizar o último desejo de Alfred Nobel, o inventor da dinamite, que desejava reconhecer pessoas e instituições que realizam pesquisas, descobertas ou que dão notáveis contribuições para a humanidade no campo da Física, Química, Fisiologia, Medicina, Literatura e Paz.

Em toda a história do concurso, já foram concedidos 555 Nobel e laureadas 856 pessoas entre homens, mulheres e instituições.

Amplamente considerado como o mais prestigioso prêmio disponível nos campos acima citados, a concessão do Nobel obedece a critérios técnicos, científicos e sociais, mas sofre fortes influências do poder político, econômico e cultural do país do candidato, bem como da pressão popular de quem apoia os postulantes.

Alguns familiares de Alfred Nobel, notadamente seu sobrinho bisneto Peter Nobel, não aceitam que o Prêmio de Ciências Econômicas seja referido como um Nobel, pois o consideram uma espécie de campeonato de relações públicas para sobrelevar o nome de um economista, algo impensável por Alfred Nobel, que desprezava pessoas para quem o aspecto econômico-financeira é mais importante do que o bem-estar da sociedade. Tudo isso prova que o pretenso caráter técnico e científico da escolha do ganhador não é tão puro como se quer.

Outra questão que parece ser desconhecida pelo autor da mensagem é o fato de que apenas 75 países do mundo têm cidadãos ganhadores do Prêmio Nobel. Ele parece desconhecer que além dos dois brasileiros ganhadores do mesmo, Peter Brian Medawar e Edmundo Manzini de Souza, outros conterrâneos já foram indicados para o mesmo. Para não me alongar, cito alguns dos indicados ao longo da história: Afrânio de Melo Franco, Barão do Rio Branco, Oswaldo Aranha, Chico Xavier, Betinho, Maria da Penha e, para o desespero de nossa elite pequeno burguesa, Luiz Inácio Lula da Silva foi o último brasileiro indicado.

Cheguemos agora ao fato central da despropositada mensagem, a tresloucada perseguição que as classes dominantes brasileiras têm movido contra o

Presidente Lula. Para tal, ela e seus chaleiras se utilizam, sem nenhuma cerimônia, de mentiras, trapaças e deslealdades para tentar, da maneira mais idiota, estabelecer relação de causa e efeito entre o nível de escolaridade de Lula e o desenvolvimento cultural econômico e científico do país. Tivesse algum sentido tal idiotice, teríamos que concordar que nas muitas épocas em que o país foi governado por ilustres acadêmicos e doutores, formados nas mais respeitadas universidades do mundo, o Brasil já teria superado o atraso socioeconômico e tecnológico em que está submetido desde o seu nascimento como nação. Ao contrário, nunca em sua história, o nosso país exerceu tanta influência econômica, política e cultural no mundo como o fez durante o governo do “analfabeto”. Só para citar alguns exemplos, lembramos a liderança do Brasil na criação dos BRICS, a expressão “Você é o cara” e o papel do Brasil na reunião da Assembleia Geral da ONU em face a crise da produção atômica pelo Irã.

Mas apesar da patetice da tentativa de achincalhar o Presidente Lula e seu governo, vamos relembrar alguns avanços que o povo brasileiro conquistou nos governos do “analfabeto” e de sua sucessora.

Foi necessário que o povo escolhesse um “presidente analfabeto” para que justamente no campo do ensino houvesse a maior transformação já experimentada pelo povo brasileiro, senão vejamos:

Até o ano de 2002, o país tinha 45 universidades federais organizadas em 148 campi/unidades. De 2003 a 2010, foram criadas 09 (31%) novas universidades e 126 novos campi/unidades, representando 31% e 85% de crescimento, respectivamente.

É importante que se lembre que o programa de expansão do Ensino Superior dos governos de Lula e Dilma teve como característica maior sua “interiorização”, ao contrário das estratégias de centralização do mesmo adotadas por todos os governos anteriores, o governo do Partido dos Trabalhadores buscou mudar esta lógica, reduzindo a implantação de universidades e escolas técnicas federais, que era quase que exclusivamente feitas nas capitais e grandes cidades.

Ao lado dessa conquista, merecem destaque quatro grandes iniciativas que mudaram a cara da educação superior do Brasil: o Programa Universidade Para Todos (ProUni); o Sistema de Seleção Unificada (Sisu); o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES); e, o Sistema de Cotas Para o Ensino Superior, todas implantadas e implementadas durante o governo do Presidente Lula, que viabilizaram o acesso de milhões de estudantes das classes pobres e média baixa ao Ensino Técnico e Ensino Superior. Como sabemos, antes dessas iniciativas esse acesso era extremamente difícil e somente poucos estudantes das classes economicamente desfavorecidas conseguiam escalar as verdadeiras muralhas que a elite brasileira erguia entre eles e essas modalidades de ensino.

Antes do governo do Presidente Lula, nossas elites política, empresarial e financeira viviam uma contradição que pode ser emblemada pelo pseudo-dilema da antiga propaganda de um certo biscoito: “Tostines vende mais porque é fresquinho, ou é mais fresquinho porque vende mais?”. Falo da verdadeira contradição do discurso de nossas elites, que sempre afirmaram que o problema do subdesenvolvimento e do desemprego no Brasil é o despreparo cultural, acadêmico e técnico do povo. Ainda mais! Repetidamente os lideres empresárias e seus “intelectuais burocratas” de plantão apontam alternativas que são ancoradas em exemplos de outros países que superaram o subdesenvolvimento pelos caminhos da educação, ofertando ensino acadêmico, técnico e tecnológico de qualidade. Não cabe dúvida de que a alternativa é correta, sendo, a meu juízo, a única saída que nos resta para superar o atraso científico e tecnológico em que vivemos hoje.

Contudo, perguntas como as que faço abaixo, tenho certeza, irrompem também a cabeça do leitor:

Porque será que durante em toda a história da República nossas elites e seus governantes demonstraram tão pouco interesse em melhorar a educação brasileira, sobre tudo, o Ensino Tecnológico?

Porque esta lógica perversa de investimentos na educação pública, a única que pode oferecer atendimento universal, faz com que esses sejam sempre amiudados, muitas vezes de forma criminosa?

Porque a história do ensino brasileiro é o cimento que sustenta a eterna excludência das classes mais desfavorecidas do acesso à educação?

Vejamos! Saída para este estado de coisas existe. Tudo é questão de vontade política, mas muito mais de vergonha na cara. A primeira escola técnica do Brasil foi fundada em 1909 e o país chega a 2002, quase um século depois portanto, com apenas 140 delas. Nos governos de Lula e Dilma, foram implantadas 500 novas delas, totalizando 644 campi, sem contar 02 Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET), 25 escolas vinculadas a universidades e uma universidade tecnológica.

As preocupações com a educação e a formação intelectual e profissional do povo, sobretudo das classes mais desamparadas, sempre fizeram parte dos discursos de doutores, sociólogos, cientistas, médicos, juristas influentes, mas, sobretudo, dos políticos que governaram o Brasil até o final do Século XX e dos que atualmente governam, só que nada passou do discurso. Na prática, essa gente governou e agiu, e de forma intencional, para manter a educação e a escola públicas, que atende o trabalhador e seus filhos, em absoluto estado de precariedade e calamidade.

Voltando ao autor da mensagem, entendo que as reflexões acima caracterizam o pensamento do mesmo, o qual manifesta o desejo de imputar as mazelas da formação educacional do brasileiro a fatos como o de o Presidente Lula não ter diploma universitário, o que ninguém sabe se é verdade. Mas no fundo, tal intenção acaba criando uma doce contradição, o analfabeto realiza mais para a educação do que todos os sábios que o antecederam na Presidência da República do Brasil. E olhe que não foi por falta de intelectuais e acadêmicos como médicos, economistas, cientistas, educadores, escritores e, sobretudo, militares e advogados, esses os tivemos “às baciadas”, que o ensino brasileiro padece de tantos males que parece não ter solução.

O certo é que foi justamente um analfabeto” que teve a competência e a ousadia política de – ensinar uma lição – a todos os “sábios” que presidiram o Brasil: Melhorar a educação brasileira não é questão de academicismo e jactância, é questão de coragem, sabedoria e visão de futuro. Simples assim.

Omar dos Santos

Taguatinga, DF, 05 de março de 2021

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