Grafite retratando Jean-Jacques Dessalines, um dos heróis da Revolução Haitiana e o primeiro governante do país livre (Foto: Rodrigo C. Bulamah/ Dessalinesville, 2015)
por Rodrigo C. Bulamah
A maneira como Napoleão reagiu às exigências dos recém-libertos pela manutenção de sua alforria é parte da base curricular de ensino nas escolas do Haiti. Qualquer criança no país sabe contar com detalhes como os franceses, ávidos por restituir a escravidão na “pérola das Antilhas”, chegaram à ilha munidos de armas, inclusive cães de caça, para exterminar seus ancestrais que em nada estavam dispostos a negociar sua própria liberdade
A pergunta pode parecer um tanto retórica, por isso, já adianto a resposta: nada. O Haiti não tem nada a ver com as celebrações que tomam conta da França neste ano em razão do bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte. Isso é uma pena, pois a imagem que o imperador possui no país europeu esconde atrocidades por ele cometidas, que mereceriam ser discutidas com a devida atenção. Napoleão foi responsável pelo retorno da escravidão em todo o território ultramarino francês, que ia do arquipélago caribenho a territórios localizados além do Cabo da Boa Esperança. Alguns anos após o início do que conhecemos hoje como a Revolução Francesa, a escravidão foi abolida, no ano de 1794, em resposta ao fim da monarquia e a demandas por liberdade que ganhavam corpo em colônias como São Domingos, o antigo Haiti. Porém, foi por meio de um decreto-lei, assinado em 1802, que Napoleão restabeleceu a escravidão. Nesse momento, a esfera pública europeia já estava saturada, há décadas, de imagens e textos que descreviam os horrores da vida dos escravizados nas colônias. Tal episódio fez da França, como lembra a pesquisadora Marlene Daut, o único país do mundo a reinstaurar o cativeiro após a abolição. Mesmo depois do segundo exílio de Napoleão, em 1815, o império francês só veio a declarar o fim definitivo da escravidão em 1848 – o que contradiz todo o discurso provinciano (e eurocêntrico) que coloca a França como farol da liberdade ocidental.
No auge do colonialismo francês, em meados do século XVIII, São Domingos chegou a suprir 60% da demanda europeia por produtos tropicais, o principal deles sendo o açúcar, produzido por negros e negras submetidos ao trabalho forçado nas plantações monocultoras. A maneira como Napoleão reagiu às exigências dos recém-libertos pela manutenção de sua alforria é parte da base curricular de ensino nas escolas do Haiti. Qualquer criança no país sabe contar com detalhes como os franceses, ávidos por restituir a escravidão na “pérola das Antilhas”, chegaram à ilha munidos de armas, inclusive cães de caça, para exterminar seus ancestrais que em nada estavam dispostos a negociar sua própria liberdade. Os gastos de Napoleão com as tentativas de restabelecer a escravidão em São Domingos são conhecidos e se relacionam com a própria história dos Estados Unidos. Sem a Revolução Haitiana, o que se conhece no país como Louisiana Purchase talvez nunca tivesse acontecido e o estado da Louisiana bem poderia ter o mesmo estatuto que Guadalupe, Reunião ou Martinica.
“Celebração de 200 anos de Bois-Caïman, 1791-1991”, Jean-Baptiste Jean, 1993
De fato, a Revolução Haitiana é descrita por muitos historiadores como a única revolta de escravizados bem-sucedida, em toda a história global. Foi ali que um Spartacus negro conseguiu se rebelar contra seus senhores, imagem condensada sobretudo na figura de Toussaint Louverture. Um homem negro nascido em São Domingos que havia alcançado um alto ranking militar, Louverture conseguiu manter a colônia sob domínio francês mesmo com diversas tentativas de assalto por parte de espanhóis e ingleses, no começo do século XIX. Em troca dessa lealdade, sua principal demanda era que a população negra da colônia se mantivesse livre. Justamente por isso, o general foi traído por Napoleão, que buscava, como ele mesmo dizia, “aniquilar o governo dos negros”, empreendendo, para tanto, um verdadeiro genocídio contado entre as centenas de milhares de africanos e seus descendentes. Sequestrado e deportado para a França em 1802, Louverture morreu de frio e de fome no Castelo de Joux, na fronteira com a Suíça. Fazendo um último apelo a Napoleão, ele escreveu: “sem dúvidas, eu devo este tratamento a minha cor: mas minha cor… será que minha cor alguma vez me impediu de servir minha pátria com zelo e fidelidade?”.
Foi frente a essa traição que a Revolução assumiu sua face mais radical. Organizando-se em batalhões, que formaram o Exército Nativo e em comitês, muitos deles encabeçados por mulheres, os revoltosos levaram à frente uma empreitada comum e, em todo o território, atearam fogo às plantações, expulsaram e mataram os franceses e libertaram o país da escravidão e do colonialismo. Em um projeto muito mais radical do que qualquer outro imaginado à época, inclusive por personagens como Simon Bolívar, o resultado da Revolução pode ser lido na Constituição Haitiana de 1805. Um marco na história global precisamente por representar o teste decisivo às pretensões universalistas, tanto da Revolução Americana quanto da Revolução Francesa, ao se opor frontalmente à ideologia racista daquele período que associava branquitude à ideia de “Homem”. O processo ativo de silenciar a Revolução Haitiana, nos alertou o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, é também o apagamento deliberado da história dos crimes cometidos em nome do colonialismo francês e de tudo aquilo que sustentava os imperialismos europeus, particularmente, o racismo, a escravidão de negros e indígenas e, podemos acrescentar, a destruição ambiental atrelada à plantação.
Reverberações da Revolução Haitiana foram sentidas em diferentes partes do Atlântico, à época fragmentado entre impérios europeus escravistas. No Brasil, tais repercussões se materializaram no aumento do tráfico de africanos por causa do estímulo à produção de açúcar para suplantar a demanda europeia e na difusão do que passou a ser conhecido como haitianismos – insurgências diretamente inspiradas no Haiti. Apesar da pouca documentação, há registros de insurgentes que mobilizavam símbolos da Revolução Haitiana no Brasil, como Emiliano Mundrucu que, ao lado do batalhão de soldados negros que formavam a Confederação do Equador, cantavam loas a generais haitianos: “Qual eu imito a Cristovão/ Esse imortal haitiano/ Eia! Imitai ao seu povo/ Oh meu povo soberano”.
Grafite retratando Jean-Jacques Dessalines, um dos heróis da Revolução Haitiana e o primeiro governante do país livre (Foto: Rodrigo C. Bulamah/ Dessalinesville, 2015)
Nos anos recentes, a história do Brasil voltou a se cruzar com a do Haiti. Dessa vez, a partir do protagonismo do Exército Brasileiro que encabeçou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). Essa presença militar, à qual se somaram também missões humanitárias e diplomáticas, deixou legados traumáticos à população local e abriu caminho para que os militares voltassem a ganhar protagonismo político no Brasil. Porém, além disso, novas rotas de migração foram estabelecidas e haitianos e haitianas passaram a compor a paisagem migratória do país. Essas pessoas trazem consigo evidências de uma conexão histórica recente, mas também de uma história de lutas comuns próprias a uma diáspora africana que, forçada ao exílio, teve que reconstruir seus mundos em diferentes partes do Atlântico. Lutas que nos fazem questionar o real lugar de Napoleão na história da América Latina e do Caribe. Mais do que o responsável pela vinda da Família Real ao Brasil e pela consequente mudança de estatuto da colônia a reino unido a Portugal, Napoleão é um empecilho à real celebração dos valores de liberdade, universalidade e democracia. Valores que devem muito mais à Revolução Haitiana do que a qualquer outro evento moderno.
Rodrigo C. Bulamah é antropólogo e pesquisador da EFLCH/Unifesp. Escreve sobre história haitiana, migrações e questões ambientais e já colaborou com a Folha de S.Paulo e o Le Monde Diplomatique Brasil.
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