sexta-feira, 16 de julho de 2021

Bolsonaro, que fezes aqui?

  
(Imagem: live do presidente Jair Bolsonaro em 08.07.2021)

por José Isaías Venera
https://diplomatique.org.br/

Não é nem preciso recorrer à mamadeira fake das últimas eleições para presidente, em 2018, para perceber que tudo passa pelo ânus presidencial. “Caguei”. O país se tornou a privada presidencial 

“Que fezes aqui?”. A anedota funciona na equivalência do sujeito e sua obra; neste caso, a obra primordial, as fezes. Quando o sujeito fica despido de qualquer decoro, nivela boca e ânus, como tem feito com certa frequência o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O episódio mais recente foi no relato semanal em sua live, quinta-feira, 08/07, quando disse “caguei” para a Comissão Parlamentar de Inquérito, que ficou conhecida como CPI da Covid-19.

Coincidência ou não, foi no mesmo dia da divulgação da pesquisa do instituto Datafolha, sendo que uma das perguntas era, no mínimo, inusitada: saber se os eleitores consideram que Bolsonaro tem muita ou pouca inteligência. Até porque inteligência é um qualitativo que pode variar dependendo dos critérios estabelecidos. Mas isso aconteceu. Na pesquisa DataFolha divulgada no dia 08 deste mês, 57% consideram o mandatário do país pouco inteligente. Se o enunciado é “pouca inteligência”, refere-se, mais do que apontar para um déficit, ao seu antônimo.

Curioso é que o antônimo vem como um não-dito, um enunciado presente, que rege a pergunta, mas que não pode ser dito. Qual significante ocuparia o lugar desse não dito? Desinteligência; estupidez; imbecilidade… Não. No senso-comum, não há dúvida; o enunciado que prevalece relaciona um animal irracional com outro, a princípio, racional. Burrice aponta para um animal híbrido, mistura de um cavalo com uma jumenta. No uso metafórico, refere-se a quem tem pouca inteligência. Se estivéssemos na França, em vez de burrice, seria “stupité”. Foi assim com o texto, de janeiro deste ano, da coluna de Tomas Milz, na Made for minds, na versão brasileira, “Um governo entre a crueldade e a burrice” — quando reproduzido em periódicos franceses, burrice passou para stupidité: “Bolsonaro: cruauté et/ou stupidité?”.

As palavras apontam para especificidades de um povo. No âmbito individual, a forma como o sujeito se insere no mundo não está desarticulada das palavras, que quase sempre descrevem mais a qualidade de quem as enuncia do que as coisas que representa. Por esse caminho, inteligência não teria relação com o conhecimento acumulativo que daria ao sujeito determinadas habilidades, mas, sim, de mensurar seu grau de civilidade, ou de como o sujeito se constitui na cultura. Assim, a qualidade de um sujeito civilizado se mostraria primeiramente pelas palavras. As palavras e o sujeito da enunciação são um só, não se separam.

Um episódio ilustra bem essa relação das palavras com o modo como o presidente se insere no mundo. Na quinta-feira (08) deste mês de julho, durante a transmissão de sua live, Bolsonaro falou: “Fizeram uma festa lá embaixo para eu responder pergunta à CPI. Você sabe qual a minha resposta, pessoal? Caguei.” O senador Renan Calheiros (MDB), relator da CPI da Covid-19, percebeu bem essa relação de intimidade de Bolsonaro com o que saí de sua boca, quando escreveu em seu Twitter: “Que síntese. Nunca um governo foi tão bem definido em uma palavra. Parabéns Bolsonaro, foi o que o senhor fez mesmo. Já tem o slogan de 2022.”

 
(Imagem: Reprodução/ Twitter)

Na articulação de Calheiros, a fala de Bolsonaro refere-se ao que ele próprio faz na política, mas seria preciso implicar mais ainda o sujeito. Precisamos evitar esse movimento neurótico de dar sentido em excesso às palavras, para ver sua relação com um certo real que mobiliza o sujeito. O sentido que a palavra “cagar” tem no contexto da enunciação quer dizer: ignoro a CPI. Por que não outra expressão? Porque cagar tem uma ligação direta com o corpo. O que ele faz sai dele mesmo.

Bolsonaro na fase anal

Fica-se com a impressão de que Bolsonaro ainda não saiu da fase anal, período em que a criança, aprendendo a evacuar, desenvolve prazer com o controle dos esfíncteres da bexiga e do intestino. A fixação nessa fase pode trazer consequências na personalidade do sujeito. Se inicialmente a “obra” é oferecida aos pais como presente, na interação vai surgir uma dualidade, sendo que o outro, de alguma forma, vai transmitir o sentido de sujeira. Conhecida também como a fase sádica, o sujeito que se encontra nela obtém prazer por expulsar e reter as fezes. Haveria nessa fase uma relação de analogia com o processo civilizador, de controle, de higiene e de moralidade/sexualidade.

Com Sigmund Freud aprendemos que o interesse pelo dinheiro aponta para esse primitivo interesse pelas fezes, a partir da qual a criança, eufórica, chama os pais para ver sua obra no pinico; mas não tarda para se inscreva o sentido de sujeira, de higiene e de pudor.   

A obra no pinico é oferecida aos país. Já obra feita no acento da poltrona presidencial vem como deslizamento de sua fixação na fase anal. De pais para país, a diferença é um acento. Do pinico à poltrona presidencial, Bolsonaro fica às voltas no cocô, podendo ser um dos motivos pela sua compulsar à repetição manifesta em palavras (cocô, merda etc.) ou em ato, como na defesa de pautas morais – seu interesse pela sexualidade alheia – e seu possível envolvimento com supostos casos de corrupção (entre eles, na aquisição de doses da vacina Covaxim), mantém o deslizamento do sentido de sujeira do cocô para o dinheiro.

A pesquisa do Datafolha divulgada no dia 11 de julho sinaliza que, para 70% dos brasileiros, há corrupção no governo de Jair Bolsonaro. Se o presidente não tem consciência das suas relações que o conduzem, sempre, à repetição do sentido de sujeira, a pesquisa parece indicar que a maior parte dos brasileira já perceberam. Tanto o que sai da boca quanto o que ele faz na política é para ir ao encontro desse sentido.

Bolsonaro fala, portanto, com propriedade: “Caguei”. O que ele não se dá conta é que a palavra é uma propriedade de si mesmo e não para os outros (da CPI da Covid-19) a quem ele faz referência. Sua fala deve ser ouvida de forma invertida: ela chega aos nossos ouvidos – ou dos integrantes da CPI, entre eles, Renan Calheiros –, mas é endereçada a ele mesmo. É como se ele estivesse apenas falando em voz alta, de si para si. Isto nos lembra a conhecida frase, costumeiramente atribuída a Freud, da ensaísta canadense Lise Bourbeau: “Quando Pedro me fala de Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”.

Sabe-se, assim, mais de Bolsonaro que de Lula, ou que de Rena Calheiros, para ficarmos neste episódio da CPI da Covid-19. Há uma relação direta entre boca e ânus. A palavra “caguei”, enunciada, é uma imagem acústica produzida pelo aparelho fonador, cujo significado é pautado pela experiência vivenciada por todos. Se a boca faz passar o som da palavra, o ânus faz passar o cocô.

Não é nem preciso recorrer à mamadeira fake das últimas eleições para presidente, em 2018, para perceber que tudo passa pelo ânus presidencial. “Caguei”. O país se tornou a privada presidencial. 


José Isaías Venera é jornalista e professor da Univille e Univali

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