Por FLAVIO AGUIAR*
O resultado de uma investigação pessoal sobre uma família de judeus da Alemanha
“Continuamente vemos novidades, / Diferentes, em tudo, da esperança. / Do mal, ficam as mágoas na lembrança, / E do bem, de algum houve, as saudades” (Luis Vaz de Camões).
Quando nos debruçamos sobre a história do nazismo na Europa, os números chocantes recobrem nossa visão. Para começar, seis milhões de judeus no Holocausto programado! Quatro milhões de outros seres humanos mortos também por serem considerados “indignos de viver”, de doentes mentais a Testemunhas de Jeová, passando por Roma (Ciganos) e homossexuais! Somente na União Soviética 28 milhões de mortos: Nove milhões de militares e 19 milhões de civis! E por aí vai: a cifra total varia, tendo por piso o número redondo de 60 milhões de mortos, seis vezes a população de uma cidade como São Paulo, podendo chegar aos 100 milhões se levarmos em conta os efeitos colaterais da guerra, quase meio Brasil de hoje.
Mas os números nos dão uma dimensão parcial da tragédia, e, se ficarmos apenas neles, poderão nos toldar, em parte, a visão. Perderíamos a dimensão dos dramas e tragédias individuais, os destinos ceifados ou destroçados, moídos ou distorcidos, as lágrimas que secaram e as feridas que não fecharam nem nunca irão fechar; os sonhos que não se realizaram e os pesadelos que os substituíram.
Recentemente meu amigo e correligionário Tarso Genro me levou ao encontro de um destes destinos, o da família Herz, originária da cidade de Köthen, na antiga província de Anhalt, hoje no estado de Sachsen-Anhalt, depois da unificação com parte da antiga Prússia, promovida pelos soviéticos ao término da Segunda Guerra. Nela trabalhou Johann Sebastian Bach, de 1717 a 1723, como regente do Coro da Capela para o príncipe Leopold von Anhalt-Köthen.
Tarso me indagava se eu poderia descobrir algo sobre seu tio-avô, Carl Herz, irmão de seu avô materno Hermann. Carl fora jurista e político importante, ligado ao Partido Social-Democrata (SPD, na sigla alemã), e nesta condição fora perseguido e hostilizado pelos nazistas, tendo se exilado na Inglaterra logo antes do começo da Segunda Guerra Mundial.
Espicaçado pela curiosidade, pus-me a campo, ajudado por algumas informações adicionais a que o Tarso me deu acesso, entre elas a de que uma filha de Carl, Hilde, emigrara para Israel. E assim me enfronhei no destino da família Herz, coisa que me trouxe à memória os versos de Camões, citados na epígrafe deste texto.
Carl Herz nasceu em 1877, na cidade de Köthen, filho de pai judeu e mãe judia, ele Julius e ela Hermine. Julius era comerciante; tinha uma loja de roupas para homens no centro da cidade. Carl era o filho mais velho, tendo por irmãos Hermann (1879), que foi para o Brasil, e Georg (1885), que foi para a Palestina.
Em vão Julius esforçou-se para que o primogênito seguisse sua profissão e assumisse a loja. Carl preferiu os estudos jurídicos, que fez pulando de universidade em universidade, como era comum na época: foi para os cursos de Heidelberg, Leipzig, Halle e Berlim. Durante sua vida de estudante, tomou conhecimento das obras e da atividade política de Karl Marx e Friedrich Engels.
Carl terminou botando banca de advocacia em Áltona, distrito autônomo de Hamburgo, onde se aproximou do SPD e entrou para a política. Tornou-se próximo de figuras proeminentes do partido, entre as quais Friedrich Ebert, Karl Liebknecht, Karl Kautsky e o legendário August Bebel. Este o visitava com frequência, tendo sido o primeiro a fazê-lo, quando Carl casou-se com Else Goldschmidt, em 1910.
O casal teve três filhos: Hilde, Gehrard e Günter, o mais novo. Depois de várias peripécias jurídicas e políticas em Áltona, em 1921 a família mudou-se para a região de Berlim. Fixou-se inicialmente no hoje distrito de Spandau. Na documentação existente, obtida em parte pelo depoimento da filha Hilde, Else é descrita como “muito independente”. Formada na universidade de Kiel em germanística e filosofia, interessou-se também por psicologia e psicanálise, tendo-se aproximado das ideias de Alfred Adler, discípulo de Freud, em Viena. Em Spandau fundou, com duas amigas, a primeira creche não-religiosa do distrito.
Carl continuava suas atividades jurídicas e políticas. Hilde descreveu a vida familiar como frequentemente agitada por discussões acaloradas, pois os três filhos tinham posições socialistas mais radicais do que as dos pais. Os três logo se interessaram pelo sionismo de esquerda. É bom lembrar que muitos judeus militantes de esquerda viam no sionismo a possibilidade de fundarem um país socialista no futuro, e depois da criação de Israel, viam nos kibbutzim o germe de uma futura sociedade igualitária.
A vida familiar não tinha nada de ortodoxa; festejavam, inclusive, o Natal cristão. Depois de algum tempo, a família mudou-se para o bairro de Charlottenburg, já no perímetro mais central da Berlim. Prosseguindo na sua carreira política, Carl elegeu-se prefeito do distrito de Kreuzberg (o que equivale, em termos brasileiros de hoje, a uma subprefeitura; entretanto a eleição nos distritos é independente da eleição para o conselho e a prefeitura central). Sua candidatura foi um dos raros momentos em que os Social-Democratas e os Comunistas trabalharam juntos.
Quando houvera a cisão entre os Social-Democratas e os Espartaquistas, liderados por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, em 1914, Carl Herz permanecera com aqueles. Assim mesmo, compartilhara com os Espartaquistas a oposição ao envolvimento alemão na Primeira Guerra Mundial.
Em 1933, com a ascensão dos nazistas ao poder, a vida dos Herz sofreria uma reviravolta dramática. Em 8 de março daquele ano, Carl recebeu o aviso de que os SA (Sturmabteilung, Tropas de Assalto) nazistas tramavam uma ação contra ele. Ainda assim, decidiu manter sua rotina costumeira. Em 10 de março (em seu depoimento Hilde diz que foi em 12 de março) os nazistas invadiram a subprefeitura de Kreuzberg, arrastaram Carl para a rua e o espancaram, diante do olhar passivo de várias testemunhas. A polícia acorreu e deteve… a vítima! Soltaram-no alguns dias depois.
Neste ínterim, Else levara os filhos para outro endereço, no distrito de Halensee. A partir daí tudo se acelerou. Em maio, Hilde foi para a Inglaterra, acolhida por parentes que lá viviam. Em agosto, Carl foi oficialmente destituído de seu cargo em Kreuzberg, e seu filho Günter foi para a Holanda, fixando-se em Amsterdam. Em 1935 Gerhard emigrou para a Palestina, onde já vivia seu tio Georg. Afinal, em 1939, o casal Herz também seguiu para a Inglaterra, diante da iminência da guerra e das crescentes ameaças nazistas.
Com a declaração oficial do conflito, em 1940, Carl foi internado num campo de concentração para “estrangeiros inimigos”. Foi libertado em 1941, por intervenção de amigos do Labour Party inglês. Passou a integrar atividades de grupos anti-nazistas alemães em Londres.
Finda a guerra, em 1946 ele, Else e Hilde também foram a Palestina. Consta que Carl defendeu sempre uma possível união entre palestinos e judeus. Morreu em 1951, em Haifa; Else, em 1968, em Tel Aviv; ambos jamais voltaram a Alemanha. Hilde veio a morrer na década de 90 do século passado, também em Israel.
Günter acabou tendo um destino trágico. Conseguiu um trabalho como eletricista na Holanda, e casou-se com uma jovem alemã, também judia e emigrada, Lieselotte Doris-Neustadt, uma modista, nascida em Berlim em 01 de março de 1915, no bairro de Prenzlauerberg. Com a iminência da invasão da Holanda pelos nazistas, concretizada em 10 de maio de 1940, poderiam talvez ter fugido para a Inglaterra, mas não o fizeram, não se sabe por quê. Terminaram presos e deportados para campos de concentração, com 107 mil dos 140 mil judeus que viviam na Holanda, dos quais 102 mil morreriam. Depois de passarem por dois outros campos, terminaram em Auschwitz/Birkenau, na Polônia. Lieselotte foi assassinada em 19 de novembro de 1943 e Günter em 31 de março de 1944, ela com 28 anos e ele com 25. Os pais de Lieselotte, Salo e Ella, foram deportados para o chamado “Gueto de Minsk”, hoje capital da Bielo-Rússia, onde também pereceram. Em Minsk os nazistas criaram guetos para os judeus locais e também para outros trazidos da Europa Ocidental, sobretudo da Alemanha, divididos em seções com os nomes de suas cidades de procedência: Frankfurt, Hamburgo, Berlim, etc., submetendo-os a trabalhos forçados. Houve grandes massacres em Minsk, inclusive de crianças enterradas vivas com areia, atraídas por doces que os SS lhes jogavam. Houve também um levante, como no Gueto de Varsóvia, durante o qual muitos judeus conseguiram escapar, juntando-se aos guerrilheiros da resistência. Em 22 de setembro de 1943 o Gauleiter (Comissário-Geral) nazista para a Bielo-Rússia, Wilhelm Kube, foi assassinado em sua casa por uma bomba-relógio colocada sob seu leito pela partisan inflitrada Yelena Mazanik, que nela trabalhava como empregada doméstica. Em consequência 1.000 cidadãos de Minsk foram assassinados pelos nazistas, depois de obrigados a cavarem sua cova coletiva, e em outubro do mesmo ano os guetos foram literalmente exterminados.
Hoje há uma herma em homenagem a Carl Herz na subprefeitura de Kreuzberg, em Berlim, e ele dá o nome a uma das avenidas do distrito.
Na minha pesquisa obtive e tentei localizar os endereços onde os Herz e os Neustadt viveram. Um deles, o do casal Neustadt, Rosembergerstrasse 8, aparentemente não existe mais. Nos outros, em Köthen, Áltona e Berlim, existem prédios novos demais para serem aqueles onde eles estiveram alojados ou onde Julius, o pai de Carl, tivera sua loja.
Encontrei uma única exceção. Na Uithoornstraat, no. 5 – III (3o piso), em Amsterdam, o prédio ainda é o mesmo onde moraram Günter Herz e Lieselotte Herz-Neustadt, com uma singela homenagem a ambos na entrada.
“O resto é silêncio”. Um silêncio ensurdecedor.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
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