Eduardo Galeano desenvolveu uma história sintética da região centrada nos componentes do marxismo latino-americano de sua época.
As veias abertas da América Latina começa com uma frase que resume a essência da Teoria da Dependência: "A divisão internacional do trabalho consiste em alguns países se especializando em vencer e outros em perder."
As veias abertas da América Latina começa com uma frase que resume a essência da Teoria da Dependência: “A divisão internacional do trabalho consiste em alguns países se especializando em vencer e outros em perder. Nossa região do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde a antiguidade. Esta curta frase oferece uma imagem concentrada e altamente ilustrativa da dinâmica da dependência. Por isso, foi citado em inúmeras ocasiões para retratar a situação histórica de nossa região.
O livro de Galeano é um texto fundamental do pensamento social latino-americano, que veio junto com a gestação da Teoria da Dependência e contribuiu para popularizar essa concepção. A primeira edição deste trabalho coincidiu com o surgimento geral da abordagem dependente. Mas em todas as suas páginas exibiu uma afinidade especial com o lado marxista dessa teoria, desenvolvida por Ruy Mauro Marini, Theotonio Dos Santos e Vania Bambirra. Esse olhar postulava que o subdesenvolvimento latino-americano se deve à perda de recursos gerados pela inserção internacional subordinada da região.
Galeano difundiu essa abordagem no início do Uruguai e seu livro faz uma resenha da história da América Latina em um tom dependente. Ilustra de forma muito completa como "o modo de produção e a estrutura de classes foram sucessivamente determinados de fora, através de uma cadeia infinita de dependências sucessivas ... que nos levaram a perder até mesmo o direito de nos denominarmos americanos". Ele lembra que “inserida no vasto universo do capitalismo periférico”, a região “foi submetida a saques e a mecanismos de desapropriação”.
Essa caracterização do desenvolvimento frustrado da América Latina esteve ligada nos anos 70 a uma ampla produção historiográfica do mesmo signo. Esses estudos detalhavam os entraves que a dependência impunha a uma repetição da expansão alcançada pela economia dos Estados Unidos. Galeano assumiu uma perspectiva muito semelhante à das investigações de Agustín Cueva e Luis Vitale.
O pensador uruguaio desenvolveu uma história sintética da região centrada nos quatro componentes do marxismo latino-americano da época. Ele denunciou a expropriação dos recursos naturais, criticou a exploração da força de trabalho, destacou a resistência dos povos e atribuiu a um projeto de emancipação socialista.
Galeano desenvolveu seu texto combinando várias disciplinas e iluminou uma história que impressiona pela beleza literária. Seu calor choca o leitor e gera um efeito explicitamente buscado pelo livro.
O escritor oriental resolveu divulgar um "manual de divulgação que fala de economia política no estilo de um romance de amor". E alcançou um sucesso esmagador para aquele empreendimento incrível. Galeano comentou que seguiu o caminho de "um autor não especializado", que embarcou na aventura de desvendar os "fatos que a história oficial esconde". Ele abordou esse objetivo com uma linguagem que se distanciava das "frases fixas" e se distanciava das "fórmulas declamatórias". Ele conseguiu consumar esse propósito ambicioso em um exemplo chocante.
Galeano deixou para trás a rigidez, o academicismo e a fala fria. Ele usou uma linguagem que abalou milhões de leitores e inaugurou um novo código para tornar visível a dramática realidade latino-americana. Open Veins inspirou uma legião de escritores que adotaram, desenvolveram e enriqueceram essa forma de retratar a expropriação e opressão sofrida por nossa região.
Afinidades conceituais e políticas
Galeano alinhou-se à tendência radical de dependência liderada por Marini e Dos Santos, em nítido contraste com o lado eclético e descritivo liderado por Fernando Henrique Cardoso. A afinidade de The Open Veins com a primeira concepção é verificada em todas as falas do livro.
Nesse trabalho, ele não se limitou a descrever atrasos econômicos decorrentes de modelos políticos equivocados, nem observou a dependência como um traço ocasional ou meramente negativo. Tampouco patrocinou as associações com capital estrangeiro que Cardoso promoveu como solução para o atraso da região. Quando esse intelectual assumiu a presidência do Brasil, ele abandonou seus antigos textos, repudiou seu passado e se opôs aos seus próprios escritos. Mas a semente de sua involução neoliberal esteve presente na abordagem da dependência que postulou, argumentando com Marini e Dos Santos.
A visão de Galeano também estava distante da CEPAL. Em nenhum lugar do livro há ilusões heterodoxas delineadas na superação do subdesenvolvimento regional, por meio de uma industrialização capitalista comandada pela burguesia nacional. O protecionismo e a regulação estatal não são considerados estradas para erradicar o sofrimento econômico da América Latina.
A oposição a esse rumo também se verifica nas inúmeras críticas à impotência das classes dominantes locais, para colocar em andamento alguma modalidade efetiva de desenvolvimento regional. Essa incapacidade de comandar um crescimento industrial semelhante ao alcançado pelas poderosas economias centrais é destacada.
Esse questionamento foi o eixo do programa político inaugurado pela revolução cubana e conceituado pela teoria marxista da dependência. Essa abordagem promoveu uma transição direta e ininterrupta para o socialismo, contornando qualquer estágio intermediário do capitalismo nacional.
Galeano alinhou-se à corrente radical de dependência liderada por Ruy Mauro Marini.
As veias abertas fazem parte desta corrente de pensamento e compartilham do entusiasmo gerado pelo sucesso inicial da revolução cubana. Em numerosos parágrafos, irrompe o espírito de Che, o tom romântico e a esperança no triunfo dos projetos radicalizados. Ele também enfatiza as raízes históricas das lutas populares em toda a região.
Galeano nunca esquece a base econômica estrutural da dependência destacada pelos estudos de Gunder Frank. Mas, ao contrário dessas obras, sublinha a gravidade da resistência popular. Ele não fala apenas de estanho, mineração, grandes propriedades e plantações. Destaca o feito de Louverture no Haiti, a rebelião de Tupac Amaru no Peru e a ação de Hidalgo no México.
O livro resgata essas tradições de luta popular, destacando como a história oficial dilui a visibilidade dessas resistências. Lembre-se de que essa operação de ocultação freqüentemente leva os próprios oprimidos a assumirem como seus "uma memória fabricada pelo opressor".
Galeano não só detalha como a América Latina se estruturou ao longo dos séculos a partir da exploração dos índios e da escravidão dos negros. Ele também destaca que os súditos afetados por esta pilhagem reagiram com revoluções e levantes. Essas revoltas abriram um horizonte alternativo de libertação.
As veias abertas também lembram o nexo dessas rebeliões com a questão pendente da integração regional, que foi legada pelo projeto inacabado de Bolívar. Essa ênfase no papel insurgente dos povos ilustra a afinidade de Galeano com o projeto político revolucionário da Teoria da Dependência.
Primarização e extrativismo
A harmonia de um livro escrito há cinquenta anos, com uma concepção marxista em voga na época, não é surpresa. Mas é mais problemático desvendar a realidade de ambas as visões. Em que áreas é verificada a validade de Las Veins Open e Dependentism?
Muitos são os fragmentos de um livro escrito em 1971 que parecem referir-se a situações de 2021. Esses aspectos duradouros do texto (e da teoria que o inspirou) devem-se à condição de dependência da América Latina e são corroborados sobretudo no extrativismo.
A especialização exportadora da região em produtos básicos - que bloqueou seu desenvolvimento no passado - continua atrapalhando a decolagem da região. Esse impedimento também converge com um agravamento sem precedentes da deterioração do meio ambiente. A mineração a céu aberto concentra grande parte dessas calamidades e se tornou o epicentro de inúmeros conflitos em todos os países.
Primarização e extrativismo são os dois termos usados atualmente para denunciar a obstrução ao crescimento produtivo e inclusivo, que Galeano destacou há cinco décadas. Em The Open Veins descreve como a submissão da região ao mandato externo dos preços das commodities gera aquela falta de fôlego.
Mas essa vulnerabilidade não é mais vista hoje como um simples efeito de processos inexoráveis de desvalorização das exportações básicas. Muitos economistas desvendaram a dinâmica cíclica desses preços no mercado mundial e estudaram o complexo processo de altas e baixas sucessivas das matérias-primas. O grande problema é que essas oscilações sempre atrapalham o desenvolvimento devido à condição de dependência de toda a região.
A América Latina nunca aproveita os momentos de valorização das exportações e invariavelmente sofre com os períodos opostos de depreciação. Na atual situação de preços elevados, essas adversidades se verificam, por exemplo, no aumento dos preços dos alimentos. A exportação de trigo e carne tornou-se uma desgraça para a compra diária de pão e o consumo de proteínas.
Galeano descreveu um infortúnio econômico resultante da gestão adversa das receitas agrícolas, de mineração e de energia em toda a região. A gravitação dessa remuneração para a propriedade dos recursos naturais tem aumentado nas últimas décadas. As grandes potências disputam - com a mesma intensidade que no passado - o precioso saque da riqueza latino-americana. A região continua sofrendo o confisco sistemático desse excedente, numa dinâmica que combina a erosão das receitas com a sua desapropriação.
Atualmente os Estados Unidos disputam com a China (e em menor medida com a Europa) a apropriação dos recursos naturais da região. Os gigantes mundiais não acumulam mais apenas grãos ou carne excedentes. Eles também capturam minerais estratégicos, como lítio e presas, sem qualquer restrição à fauna marinha.
Ao contrário de outras economias não metropolitanas (como Austrália ou Noruega), que aproveitam a renda para seu desenvolvimento, a América Latina sofre com a drenagem desse superávit. Não consegue transformá-lo em investimento produtivo devido ao lugar subordinado que ocupa na divisão global do trabalho. Essa apresentação também explica o comércio desfavorável com os grandes compradores das exportações da região.
A América Latina não negocia seus intercâmbios com a China em bloco e os resultados das negociações país a país são invariavelmente adversos. As desventuras que Galeano retratou cinquenta anos atrás estão sendo recicladas hoje.
Retiradas da indústria
Em The Open Veins é descrito como os processos históricos de industrialização foram obstruídos na América Latina por políticas de livre comércio. Este "industricídio" aniquilou a manufatura do interior na Argentina e destruiu o incipiente desenvolvimento do Paraguai, que buscava implantar os alicerces de uma estrutura manufatureira independente. Posteriormente, as redes ferroviárias desenvolvidas em torno dos funis portuários consolidaram o afogamento industrial. A mão visível do Estado não interveio - como nos Estados Unidos - para garantir o surgimento de um poderoso tecido manufatureiro.
Esse afogamento industrial foi parcialmente modificado na segunda metade do século XX por processos de substituição de importações. Esse modelo iluminou o surgimento de estruturas industriais frágeis, mas ilustrava o potencial de expansão da manufatura. Galeano escreveu seu livro no crepúsculo desse esquema e, depois de cinquenta anos, o panorama industrial é mais uma vez desolador na maior parte da América Latina.
A atividade manufatureira se retraiu na América do Sul e tende a se especializar na América Central nos elos básicos da cadeia de valor global. Este cenário adverso é frequentemente descrito com retratos de uma "desindustrialização precoce" da região, que se diferencia da realocação prevalecente nas economias avançadas devido à sua maior nocividade. Em todos os cantos da América Latina, a lacuna com a indústria asiática se aprofundou e muitos empreendimentos manufatureiros desaparecem antes de atingir a maturidade.
Nos países de médio porte, essa deterioração afeta o modelo forjado para atender o mercado local. No Brasil, o aparato industrial perdeu a dimensão dos anos 1980, a produtividade estagnou, o déficit externo se expande e os custos aumentam em linha com a crescente obsolescência da infraestrutura. Na Argentina, o declínio é muito maior.
O modelo das maquiladoras mexicanas também enfrenta sérios problemas. Ela continua montando peças de grandes fábricas americanas, mas perdeu terreno para os concorrentes asiáticos. A renegociação do acordo de livre comércio com os Estados Unidos simplesmente deu origem a outro acordo (T-MEC), que renegocia a adaptação das fábricas de fronteira às necessidades das empresas do Norte.
A maior parte dos países da região continua a negociar (e aprovar) acordos de livre comércio que corroem o tecido econômico local. Em todos os casos, consolida-se a falta de proteção interna contra a invasão incontrolável de importações. Essa adversidade não impediu as negociações do MERCOSUL para a assinatura de um tratado de livre comércio com a União Européia, nem as negociações de acordos unilaterais com a China.
A regressão industrial que afeta a região atualiza todos os desequilíbrios do ciclo dependente que os teóricos da dependência estudaram. Na década de 70 destacaram a drenagem sistemática de recursos que afetou o setor manufatureiro, por meio da virada dos lucros. O maior predomínio do capital estrangeiro acentuou essa obstrução ao processo de acumulação local nas últimas décadas.
Mas, ao contrário dos anos 1970, o atual declínio da indústria latino-americana coexiste com o grande aumento de seus equivalentes asiáticos. Basta observar o aumento da distância que separa a Coreia do Sul do Brasil ou da Argentina para perceber a magnitude dessa mudança. Enquanto a América Latina funcionava com o antigo modelo de mercado interno do capitalismo do pós-guerra, o Sudeste Asiático tende a otimizar o salto registrado na internacionalização da produção.
Muitos autores heterodoxos assumem que a divergência entre as duas áreas se deve apenas à implementação de políticas econômicas opostas. Eles estimam que os asiáticos seguiram o caminho certo que foi rejeitado por seus pares latino-americanos. Mas esse olhar esquece todo o condicionamento estrutural que a maximização do lucro impõe à divisão mundial do trabalho.
As teses dependentes destacam esse condicionamento que o livro de Galeano também detalha. Lá são explicadas as adversidades estruturais históricas que a região enfrenta.
Despossessão e exploração
A Open Veins denuncia o sofrimento da população explorada em todos os cantos da América Latina. Não fala apenas da escravidão e servilismo do passado. Descreve as condições de trabalho desumanas que prevaleciam há cinco décadas. A oportunidade dessas observações é particularmente chocante no atual contexto dramático de deterioração social.
O neoliberalismo não agravou apenas o desemprego e a informalidade trabalhista. Também consolidou um terrível agravamento das disparidades de renda, na região mais desigual do planeta. Essa polarização explica a escala terrível de violência que reina nas grandes cidades. Das 50 cidades mais perigosas do planeta, 43 estão localizadas na América Latina.
A degradação social que atinge a região se deve em grande parte à renovada expulsão dos camponeses imposta pela transformação capitalista da agricultura. Essa mutação promoveu a expansão descontrolada de uma massa de excluídos que chegavam às cidades para ampliar o exército de desempregados. A falta de trabalho nas grandes cidades e a baixíssima remuneração dos empregos existentes explicam o enorme aumento da informalidade. Nesse contexto, a narcoeconomia tornou-se um refúgio de sobrevivência.
A especialização latino-americana em exportações básicas é complementada em algumas economias centro-americanas pelo crescimento desarticulado do turismo. É a única atividade de criação de empregos em muitos locais da região. Em todos os casos, a ausência de empregos multiplica a emigração e a conseqüente dependência das famílias das remessas. Enormes contingentes de jovens desempregados são simultaneamente banidos das raízes e da emigração. Eles não encontram emprego em seus locais de origem e são perseguidos ao entrar nos Estados Unidos
As médias regionais de pobreza continuam a sobrecarregar o segmento precário na América Latina e afetam uma grande parte dos trabalhadores estáveis. Esses dados não mudaram desde o lançamento do livro de Galeano.
A fragilidade da classe média também persiste, em uma região com baixa presença desse estrato. Em comparação com os países avançados, os setores intermediários fornecem um colchão muito pequeno para o abismo que separa os ricos dos empobrecidos. Esse segmento é formado em sua maioria por pequenos comerciantes (ou autônomos) e não por profissionais ou técnicos qualificados.
Esse cenário adverso piorou dramaticamente durante a pandemia do último biênio. Em termos percentuais, a América Latina foi a região com mais infecções e mortes no planeta e também com o maior impacto econômico-social da infecção.
A queda do PIB da região dobrou as médias internacionais e essa deterioração aprofundou a desigualdade. 50% da força de trabalho (que sobrevive na informalidade) foi gravemente afetada pela retração econômica imposta pelo coronavírus. Esses setores tiveram que aumentar suas dívidas familiares para contrabalançar a queda brutal da renda.
A exclusão digital também foi acentuada em toda a região e teve um forte impacto sobre as crianças pobres que perderam um ano de escolaridade. Essa deterioração da educação gera efeitos explosivos devido ao seu entrelaçamento com a crescente precarização do trabalho. Grandes empresas aproveitam o novo cenário para reduzir custos com mão de obra, com novas formas de teletrabalho que multiplicam a exploração dos empregados.
Nas últimas cinco décadas, os capitalistas recorreram a numerosos mecanismos para compensar sua fraqueza internacional com maior exploração da força de trabalho. Por isso, a diferença salarial que separa a região das economias centrais aumentou de forma muito significativa. A tendência global de segmentação do trabalho -entre um setor formal estável e um informal-precário- apresenta uma escala aterrorizante na América Latina.
Essa disparidade corrobora a validade do diagnóstico dependente e confirma a continuidade dos mesmos problemas que Galeano observou no mundo do trabalho. Cinquenta anos depois, todas as suas observações são corroboradas em outra escala.
O velho pesadelo do endividamento
Em The Open Veins , denunciou a triplicação da dívida externa entre 1969 e 1975 e o consequente reforço de um ciclo vicioso que sufoca a economia da região. Essa ligação força a América Latina a seguir um cronograma de aumento das exportações, estrangeirização industrial e auditoria dos banqueiros imposta pelo FMI. Galeano destacou que essas demandas, por sua vez, consolidam a ação dos capitalistas norte-americanos, que controlam grande parte da região por meio da gestão das finanças.
Nos últimos cinquenta anos, esse pesadelo ficou sem mudanças estruturais e acentuou os desequilíbrios fiscais e os déficits externos, que aumentam o passivo e precipitam novas crises.
Durante a era neoliberal, houve períodos de gravidade variável dessa vassalagem financeira. Na última década, a valorização das matérias-primas e a entrada de dólares permitiram algum alívio, mas quando a trégua comercial desapareceu, o endividamento ressurgiu com grande intensidade. Atualmente, o FMI (e os fundos de investimento) estão mais uma vez assumindo um papel de liderança na gestão de uma dívida incontrolável.
Nos últimos cinquenta anos, as políticas do FMI permaneceram estruturalmente inalteradas.
Nos momentos mais dramáticos da pandemia, o FMI emitiu mensagens hipócritas de colaboração. Mas, na verdade, limitou-se a validar um alívio ridículo de responsabilidades entre um grupo minúsculo de nações ultra-empobrecidas. Ele repetiu a atitude assumida diante da crise de 2008-2009, quando combinou apelos formais de regulação internacional das finanças com maiores exigências de ajuste para todos os devedores.
A tradição Dependentista tem evitado a análise do endividamento na chave simples da especulação financeira. Destaca que o peso crescente do passivo expressa a fragilidade produtiva e comercial do capitalismo dependente. A vulnerabilidade financeira da América Latina apenas complementa essas inconsistências.
Há ônus com o pagamento de juros, refinanciamento compulsório e inadimplência devido ao perfil subdesenvolvido das economias primarizadas, marcadas pela fragilidade da indústria e pela alta especialização em serviços básicos. O endividamento não é desencadeado apenas pelo "saque dos financistas". Ele reflete a crescente fraqueza estrutural dos processos de acumulação.
A região não está isenta do processo de financeirização que caracteriza todas as classes dominantes do planeta. Mas a mutação central que ocorreu na América Latina foi a transformação das velhas burguesias nacionais em novas burguesias locais.
O texto de Galeano ainda estava inscrito no primeiro período. Desde então, os grupos capitalistas que privilegiam a expansão da demanda com produções voltadas para o mercado interno perderam sua gravitação. Os setores que priorizam as exportações e preferem reduzir custos a ampliar o consumo ganharam peso.
Essa virada também confirmou todos os diagnósticos de dependência sobre o entrelaçamento de grandes capitais latino-americanos com seus congêneres estrangeiros. A localização de grandes fortunas locais em paraísos fiscais e a estreita associação desenvolvida pelas principais empresas da região com empresas transnacionais ilustram esta simbiose. O endividamento denunciado por Galeano sustentou essa mutação das classes dominantes.
Crise tempestuosa
O livro do escritor uruguaio comove o retrato comovente que apresenta da realidade cotidiana da América Latina. Esse cenário é condicionado pela irrupção sistemática das crises avassaladoras impostas pelo capitalismo dependente. Essas convulsões decorrem, por sua vez, do estrangulamento externo e da redução interna periódica do poder de compra.
A era neoliberal que se seguiu ao surgimento das Veias Abertas foi marcada por crises econômicas mais frequentes e intensas, que precipitaram novas recessões e levaram a uma ajuda gigantesca dos bancos. Essas turbulências foram invariavelmente desencadeadas por gargalos no setor externo, que geram desequilíbrios comerciais e perda de recursos financeiros.
Como as economias latino-americanas dependem da flutuação dos preços das matérias-primas, em períodos de apreciação das exportações os fluxos de divisas, as moedas se valorizam e os gastos aumentam. Nas fases opostas, capitais emigram, o consumo diminui e as contas fiscais se deterioram. No auge dessa adversidade, as crises explodem.
Essas flutuações, por sua vez, aumentam a dívida. Em momentos de valorização financeira, os capitais entram para lucrar com operações de alto rendimento e em períodos inversos, a emigração de capitais é generalizada. Essas operações se consumam com o aumento do passivo dos setores público e privado.
Outro determinante das crises regionais são os cortes periódicos no poder de compra. Essas amputações agravam a ausência estrutural de uma norma de consumo de massa. A fragilidade do mercado interno e o baixo nível de renda da população explicam essa carência. A expansão da informalidade do trabalho, os baixos salários e a estreita classe média acentuam a fragilidade do poder de compra.
As duas formas de crise - devido ao desequilíbrio externo e à contração do consumo - foram verificadas em todos os modelos das últimas décadas. Eles surgiram pela primeira vez durante a substituição de importações (1935-1970) e reapareceram com maior virulência na "década perdida" de estagnação e inflação (anos 1980). Alcançaram maior intensidade na subsequente estreia do neoliberalismo, como consequência da desregulamentação financeira, da abertura comercial e da flexibilidade trabalhista.
A teoria da dependência sempre estudou essas tensões com critérios multicausais e enfatizou a ausência de um único determinante da crise. As convulsões na região são desencadeadas por várias forças, combinando desequilíbrios externos com restrições ao poder de compra.
Essa combinação de determinantes externos e internos teve um impacto devastador nos últimos dois anos da pandemia. A América Latina sofreu a maior contração planetária de horas de trabalho, em linha com retrocessos do mesmo tamanho na renda popular. Após um período de estagnação de cinco anos, a Covid acentuou uma deterioração colossal na estrutura produtiva. Para piorar a situação, os sinais de recuperação são escassos e as previsões de crescimento estão abaixo da média mundial. Mais um capítulo de Veias Abertas sofreu a região no «Grande Confinamento» do último biênio.
A cena política
A afinidade das Veias Abertas com a Teoria da Dependência não se limita ao estreito domínio da economia. Na tradição expositiva da última concepção, o livro evita sobrecarregar o leitor com meras cifras e estatísticas intrincadas. Ele destaca com exemplos o impacto da dominação imperialista no subdesenvolvimento regional. Ele denuncia especialmente os golpes de estado, que sempre foram usados pelas embaixadas norte-americanas para instalar governos favoráveis às grandes empresas do Norte.
Passados 50 anos, essa intromissão de Washington persiste mais disfarçada, mas com a mesma impudência do passado. Os Estados Unidos estão atualmente tentando recuperar sua hegemonia mundial em deterioração, fortalecendo seu controle sobre a América Latina, a fim de conter a crescente gravidade da China. A primeira potência embarca no uso de seu enorme poder geopolítico-militar para reconquistar posições econômicas perdidas. Por isso, a região volta a ser tratada como um "quintal", sujeita às regras de submissão estabelecidas pela doutrina Monroe.
Os Estados Unidos buscam reduzir a margem de autonomia dos três países de médio porte da região. Exige que o Brasil entregue a supervisão da Amazônia, que o México reforce a penetração do DEA e que a Argentina aceite os mandatos do FMI. Como invasões diretas (como Granada ou Panamá) não são mais viáveis, o Pentágono fortalece suas bases na Colômbia e patrocina inúmeras conspirações contra a Venezuela.
Trump implementou esse script com brutalidade e Biden está se preparando para continuá-lo com boas maneiras. Ele precisa reconstruir a dominação deteriorada do Norte e reduzir os excessos verbais de seu antecessor para restabelecer alianças com o establishment latino-americano. Mas, como Trump, ele prioriza a redução da presença da China na região. Todas as iniciativas da Casa Branca desmentem a percepção ingênua de "que os Estados Unidos não estão mais interessados na América Latina". Recuperar o domínio total do hemisfério é a principal prioridade de Washington.
Por isso, apóia os governos de direita que atuam como herdeiros das ditaduras denunciadas por Galeano. Como os teóricos Dependentes, o pensador oriental investigou nos anos 70 o pilar coercitivo de todos os sistemas políticos latino-americanos. Retratou como as tiranias implementaram diferentes modelos de totalitarismo e destacou a primazia exercida pelas burocracias militares na gestão do Estado.
No período pós-ditatorial das décadas seguintes, esse esquema foi substituído por várias formas de constitucionalismo, que combinavam as políticas econômicas neoliberais com a aceitação forçada das conquistas democráticas.
Mas depois de várias décadas, os regimes de direita estão tentando recuperar o domínio ao ritmo de uma restauração conservadora. Eles agem por meio de governos reacionários contínuos, novas capturas eleitorais e repetidos golpes institucionais. Nos últimos dois anos da pandemia, eles militarizaram seus esforços e estabeleceram estados de exceção com destaque crescente das forças armadas.
A direita regional atualmente opera de forma coordenada para estabelecer regimes autoritários. Não promove as tiranias militares explícitas dos anos 1970, mas sim formas disfarçadas de ditadura civil. Entre seus expoentes persiste uma divisão visível entre personagens extremistas e moderados, mas todos eles unem forças em momentos decisivos.
Os direitistas implementam uma estratégia comum de banir os principais líderes do progressismo. Eles recorrem a mecanismos imaginativos para desabilitar os oponentes e implementar golpes parlamentares, judiciais e da mídia. Eles aspiram alcançar o controle brutal dos governos que o texto de Galeano retrata. Eles também recriaram os discursos primitivos da guerra fria e as campanhas delirantes contra o comunismo que foram propagadas quando a primeira edição de Veias abertas foi publicada .
Mas todas as figuras da direita regional enfrentam uma grande erosão política devido à sua responsabilidade nos esforços desastrosos do Estado. Eles também devem lidar com o grande ressurgimento da mobilização popular.
Em três bastiões do neoliberalismo (Colômbia, Peru e Chile) houve massivos motins de rua e, em outros casos, os protestos permitiram a reintegração do governo progressista desalojado por um golpe militar (Bolívia). Em diferentes cantos do hemisfério há uma tendência convergente para a retomada das rebeliões, que convulsionou a América Latina no início do milênio.
Um símbolo de nossas lutas
Nas Veias Abertas, há um apelo repetido para a construção de uma sociedade não capitalista de igualdade, justiça e democracia. Essa mensagem está presente em várias passagens do texto. Galeano compartilhou com os teóricos da dependência o objetivo de sustentar um projeto socialista para a região.
Nos anos 60-70, esperava-se que avançasse em direção à meta após revoluções populares vitoriosas. Essa expectativa foi corroborada nas rebeliões anticoloniais, no protagonismo do Terceiro Mundo e nos triunfos do Vietnã e de Cuba.
Posteriormente, prevaleceu uma fase reversa de expansão do neoliberalismo, o desaparecimento do chamado "campo socialista" e a reconfiguração da dominação global. Mas na América Latina as esperanças ressurgiram com as rebeliões que iniciaram o novo século, facilitando o surgimento do ciclo progressista e o surgimento de vários governos radicais. O contexto atual é marcado por uma disputa não resolvida e pelo confronto persistente entre despossuídos e privilegiados.
Esse confronto inclui revoltas populares e reações dos opressores. Em um pólo emerge a esperança coletiva e, no outro, o conservadorismo das elites. Vitórias significativas coexistem com reveses preocupantes, num quadro marcado pela incerteza dos resultados. O resultado da batalha que contrapõe os desejos dos povos aos privilégios das minorias está pendente.
Veias abertas é um texto representativo dessa luta e por isso é periodicamente redescoberto pela juventude latino-americana. O mesmo é verdade para a Teoria da Dependência Marxista. Esse instrumento teórico reconquista seu público pela explicação que fornece para a compreensão da dinâmica contemporânea da região. Isso desperta o interesse de todos os interessados em mudar a realidade avassaladora da região.
O livro e a dependência de Galeano compartilham a mesma recepção entre as novas gerações que resgatam os ideais de esquerda. Veias abertas é um verdadeiro emblema de ideais transformadores. Por isso, em abril de 2009, durante a Quinta Cúpula das Américas, o presidente Chávez deu publicamente um exemplar do livro a Barak Obama. Com esse gesto, sublinhou qual é o texto que sintetiza os sofrimentos, projetos e esperanças de toda a região.
Galeano personificou esses ideais e também gerou um fascínio incomparável entre o público. Ele transmitiu calor, sinceridade e convicção. As suas palavras apelam a construir um futuro de fraternidade e igualdade e a renovação desse compromisso é a melhor homenagem à sua obra.
CLAUDIO KATZ
Economista, pesquisador, professor e membro do EDI (Economistas de Esquerda). Seu site é www.lahaine.org/katz.
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