terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

O malfadado retorno do FMI



O governo argentino legitima o golpe e a eterna renegociação de um passivo impagável. Aceita inspeções que condicionam a política econômica e impedem a redistribuição de renda. O governo desperdiçou um contexto favorável para sustentar a reativação, isolar a direita e forjar uma frente latino-americana de resistência aos credores.

Por fim, o governo assinou um acordo com o FMI que valida a dívida fraudulenta assumida por Macri. Fernández adoçou o anúncio com a promessa de evitar o reajuste e sugeriu que é a melhor opção possível. Mas ele descartou as alternativas a essa rendição e esqueceu que o país nunca escapou desses compromissos.

Legitimação de golpe

O acordo legaliza as irregularidades de um crédito que violou todas as normas do FMI e financiou a fuga de capitais, sem contribuir com um único dólar para empresas produtivas. Todas as denúncias oficiais desta fraude estão agora arquivadas e as denúncias contra os funcionários da Cambiemos perdem o sentido. Não é verdade que "Fernández resolve o problema gerado por Macri". O presidente ratifica as indignações de seu antecessor e endossa o endividamento forçado das gerações futuras.

O presidente deu alguns detalhes do que foi acordado para os próximos dois anos e meio, mas não disse nada sobre o cenário posterior. A partir de 2025, todo o ônus dos 45,5 bilhões de dólares devidos ao Fundo reaparecerá. Nesse momento, ressurgirá a impossibilidade de pagamento e a consequente obrigação de celebrar outro acordo mais oneroso.

Por esse motivo, desta vez Guzmán evitou seu termo favorito "acordo sustentável". Ele arranjou um desfazimento imediato que adia o problema, repetindo o atraso já negociado com os detentores de títulos privados. Ele concordou com uma trégua relativa para o próximo biênio, que mantém a bomba do endividamento explosivo ativada.

Se o adiamento funcionar, ao final do período de carência você terá que enfrentar a mesma montanha de vencimentos impagáveis. Os 20 bilhões de dólares por ano exigidos pelo Fundo também não aparecerão no futuro. Nesse momento, o FMI voltará à briga com suas conhecidas reivindicações de reforma trabalhista e previdenciária. Guzmán se gaba de ter conseguido a eliminação desses abusos no atual acordo, mas esconde que eles reaparecerão no próximo refinanciamento.

Algumas autoridades argumentam que o país poderá negociar mais fortemente dentro de dois anos. Mas não explicam como surgirá a capacidade redobrada da Argentina para se manter diante do Fundo. Os fiscais desse organismo já estarão confortavelmente instalados no Ministério da Economia e no Banco Central e a grande carta da ilegitimidade dos passivos terá se perdido.

Nenhum funcionário poderá se opor no futuro ao golpe que atualmente valida. Eles não poderão alegar a responsabilidade de Macri, Trump e Lagarde em um crédito ratificado por Fernández, Biden e Giorgieva.

Todas as denúncias de uma passiva odiosa irão para a gaveta da memória. O mesmo acontecerá com os pedidos de intervenção à ONU e à Corte Internacional de Justiça, para que declarem a nulidade de uma operação financeira irregular.

Fernández repete a mesma aceitação da fraude que todos os governos das últimas quatro décadas assumiram. Essa sucessão de ratificações transformou o endividamento em um dilúvio incontrolável. Pela enésima vez, uma gestão progressista encobre os ultrajes de seu antecessor de direita, com a mesma repetição da divisão do trabalho. A responsabilidade escandalosa assumida pelas equipes econômicas ortodoxas é abençoada por seus pares de heterodoxia.

À medida que o país assume o esquema, os funcionários do FMI respiram aliviados. Eles transformaram a Argentina no principal devedor da organização e não terão que explicar por que nenhuma outra nação enfrenta uma situação semelhante. Os outros dois devedores em dívida (Egito e Iraque) devem valores incomparavelmente menores.

A mesma ajuda oficial se estende aos grandes capitalistas locais, que transformaram o dinheiro concedido pelo FMI em suas próprias contas depositadas no exterior. A investigação já realizada pelo Banco Central identificou os beneficiários deste voo, que naturalmente aprovam a validação da sua manobra. As principais entidades do estabelecimento já antecipavam este apoio entusiástico ao acordo.

Guzmán tinha a lista completa dos enriquecidos em sua mesa e congelou a investigação. Nem sequer permitia o cruzamento de dados com os registros da AFIP, para avaliar se os dólares dos expatriados foram declarados ao erário.

Os funcionários emitiram apenas vagos pedidos de colaboração com o FMI, para que contribuísse para a recuperação dos dólares escondidos em paraísos fiscais. Obviamente, o principal cúmplice do golpe não forneceu nenhuma informação e o cajonamiento da investigação antecipou o acordo promovido por Washington.

Um corte sem ajuste?

Ogoverno substituirá o crédito assinado por Macri por outro que refinancie a inadimplência daquele empréstimo. O FMI garante a cobrança do que é devido com a prorrogação dos prazos e a custódia da política econômica. Essa auditoria ocorrerá por meio de dez revisões trimestrais, que garantem ao Fundo uma cogestão estratégica durante os próximos mandatos presidenciais.

Guzmán apresenta esta reintegração do FMI como um fato "razoável" que ajudará a reduzir a "incerteza " . Mas omite que essa interferência vai reativar o desprezo que todos os emissários do Fundo exibiram pelo país, nos 22 convênios firmados nas últimas seis décadas. Enquanto Giorgieva faz uma careta de vez em quando e compartilha mensagens indulgentes com o Papa Francisco, os verdadeiros diretores da organização (David Lipton, Ilan Goldfajn) são os velhos cúmplices de Macri, que exigem uma grande cirurgia da Argentina.

Por essa razão, eles demoliram todos os pedidos de benevolência. Rejeitaram a possibilidade de cancelamento ou remoção do capital em dívida e também a conversão de passivos em obrigações climáticas ou a extensão dos vencimentos para 20 anos. Eles ainda mantinham a cobrança de uma sobretaxa inusitada pelo volume exorbitante de crédito que eles próprios colocaram. Eles também vetaram a eventual concessão de recursos adicionais por outros membros da instituição.

Guzmán esconde essa dureza, elogiando os quatro compromissos acordados com o FMI para os próximos dois anos e meio. Destaca, em primeiro lugar, a redução do défice orçamental que o governo propôs colocar em 3,3% do PIB para o corrente ano e que finalmente se situará em 2,5%. Em 2023 deverá ser de 1,9% e em 2024 de 0,9%.

Essas reduções têm sido a grande bandeira da ortodoxia de direita, que coloca o principal infortúnio da economia argentina nos gastos públicos. Guzmán sempre alegou o contrário, mas agora ele descobre os méritos desses cortes. Ele afirma que essas podas terão efeitos virtuosos, pois, em vez de se basearem em ajustes de gastos, surgirão da maior receita obtida pelo erário com crescimento e tributação.

Mas na gestão dos últimos meses esse critério não prevaleceu e por isso o surto da pandemia foi privado do correspondente subsídio (IFE). Além disso, o pacto fiscal negociado com os governadores e o projeto orçamentário frustrado para 2022 foram desenhados com cortes, para sintonizar com o Memorando de Entendimento exigido pelo FMI.

Guzmán também apresenta o que aconteceu no último trimestre de 2021, como exemplo de redução de gastos devido ao efeito do crescimento e da tributação. Nesse período, os rendimentos do Estado aumentaram significativamente, ao ritmo de uma recuperação da economia que compensou a queda anterior (10%).

O ministro generaliza esses dados no futuro e afirma que não haverá reajuste em itens relevantes (como obras públicas ou ciência e tecnologia). Mas não esclarece qual taxa de crescimento e arrecadação seria necessária para alcançar a redução drástica do déficit com a qual se comprometeu para o próximo biênio.

Os percentuais dessa redução foram combinados com o FMI, mas não os números que permitiriam a redução. Não foi estabelecido quanto o salário vai aumentar, que nível de recuperação as pensões terão ou quanto a pobreza diminuirá e o PIB aumentará. Embora esses números sejam de magnitudes a serem revisadas, o corte do déficit foi rigorosamente pré-estabelecido. Os auditores do Fundo estarão presentes para monitorar esse cumprimento.

O segundo compromisso oficial é a redução do financiamento fiscal com a questão monetária. Esse corte começou em 2020 (7,3%), se consolidou no ano passado (3,7%) e se intensificará drasticamente em 2022 (1,00%), 2023 (0,6%) e 2024 (0%). Com esse cronograma, o grande objetivo da ortodoxia, que é zero emissões, seria alcançado. Os monetaristas sempre fantasiaram em colocar a economia de volta nos trilhos, simplesmente sugando dinheiro em circulação.

Guzmán está agora adotando esse programa e prometendo reintroduzir taxas de juros reais positivas para pavimentar a disciplina monetária. Ele afirma que dessa forma se consolidará um mercado de financiamento do gasto público em pesos, o que compensará a contínua marginalização da Argentina do mercado internacional de crédito.

Mas o ministro omite os conhecidos problemas das gigantescas emissões de títulos locais. Com estas colocações, os bancos são induzidos a especular com o crédito público, em detrimento do financiamento da indústria, agricultura ou serviços. Não se sabe até que ponto o crescimento elevado será sustentado com taxas de juros positivas que desencorajam o investimento produtivo.

Taxas e dólares em letras miúdas

Oterceiro compromisso firmado com o Fundo é a redução da inflação para facilitar o superávit fiscal e a aquisição oficial dos dólares destinados ao FMI. Guzmán enfatiza que a organização agora aceita o caráter multicausal e não apenas monetário do aumento de preços. Mas ele omite que essa concessão retórica não tem consequências práticas. Os fiscais de Washington só vão checar se a inflação cair com o corte de emissões e os juros altos.

O ministro também afirma que vai combater a fome com o instrumento heterodoxo de acordos de preços. Mas ele esquece que esses acordos fracassados ​​persistiram em toda a variedade de ministros neoliberais (o que, por exemplo, Macri tinha).

Com a auditoria do FMI, a erosão desses controles aumentará. O Fundo visa arrecadar seus créditos com os dólares aportados pelas exportações e, para estimular essas vendas, promove o repasse dos preços internacionais dos alimentos para o mercado local. Como também promove um grande aumento nas tarifas, o acordo vai superaquecer o custo que já tem um piso de 50% ao ano.

O reajuste de preços aparece nas letras miúdas do acordo e incluirá um fracionamento de preços, para encarecer o serviço para os setores de alta e média renda. Os lucros das companhias de eletricidade, telefone ou gás continuarão sendo um mistério insondável para a maior parte da população.

O quarto compromisso com o FMI é a recomposição da paridade cambial. O governo promete evitar uma mega desvalorização, mas concorda em acelerar a taxa de desvalorização do peso para intensificar o acúmulo de reservas, que o Fundo vê como garantia de pagamento. A meta de arrecadar 5 bilhões de dólares nos cofres do Banco Central em 2022 já está definida, mas ninguém explica como vão atingir essa meta.

No ano passado foi alcançado um superávit comercial de 14 bilhões de dólares e não há um único dólar nas reservas disponíveis do BCRA. Mesmo que os pagamentos sejam adiados por dois anos e meio, não há como aumentar o resseguro cambial se a fuga de capitais persistir.

O pico dessa evaporação ocorreu com Macri e persistiu no último biênio. O mecanismo financeiro dessa erosão foi substituído por modalidades equivalentes, na gestão do comércio exterior por um punhado de grandes empresas. Essa drenagem pode ser cortada por meio de regulamentações drásticas que o FMI vetará.

Os auditores da agência só vão exigir maiores exportações e a conseqüente primarização da economia. Esse percurso inclui os empreendimentos destrutivos do meio ambiente, que o governo intensificou nos últimos meses (exploração de um petroleiro no mar, megamineração em Chubut).

Resumindo: ninguém sabe por enquanto qual será o ajuste necessário para cumprir os compromissos assumidos pelo governo nas esferas fiscal, monetária, inflacionária e cambial. Mas o cenário de maior vulnerabilidade e dependência gerado por essas obrigações já está à vista.

Experiências devastadoras

Alguns funcionários propagam a miragem de "um grande sucesso para o país", com as mesmas fantasias que acompanharam todos os acordos anteriores. Preveem um grande crescimento com redistribuição sob a égide do FMI, esquecendo o que aconteceu nos três últimos desembarques do Fundo.

Na gestão de Alfonsín, foram assinados cinco acordos com a agência. Os fiscais revisaram as contas e emitiram periodicamente sentenças de descumprimento das metas acordadas. Para lidar com os abalos cambiais e inflacionários gerados por essas avaliações, os ministros ajustaram seus planos, enquanto o Fundo administrava o refinanciamento de vencimentos por gotas.

Finalmente Alfonsín jogou a toalha em meio à hiperinflação e o FMI levou à chegada de um presidente com ideias semelhantes. Ele endossou diretamente a conspiração patrocinada por Cavallo e o boicote a um crédito final que abriu caminho para a presidência de Menem.

Em seus discursos recentes, Cristina relembrou esses episódios sem tirar conclusões do que aconteceu. Seu co-governante Alberto está preso no mesmo labirinto que sufocou Alfonsín. Fernandez receberá a cada três meses a visita dos chantagistas e deve passar no exame.

Se a história se repetir e os inspetores ficarem insatisfeitos, o FMI procurará um substituto. A organização é especializada em apertar o pescoço de governos progressistas. Isso os leva a realizar o trabalho sujo que desmoraliza a população e facilita o retorno dos neoliberais à Casa Rosada.

Mas o Fundo não tem sido mais contemplativo com presidentes de direita que falharam em aplicar suas prescrições. O FMI patrocinou a conversibilidade no auge do neoliberalismo e protegeu a liberalização comercial, a flexibilidade trabalhista e a privatização que precipitaram a degradação econômica dos anos 1990.

Durante o mandato de De La Rúa, promoveu a reforma previdenciária e trabalhista juntamente com o programa déficit zero. Quando a economia entrou em colapso, estimulou um maior endividamento e diante da impossibilidade de pagar esse passivo, impôs as duas medidas de alívio que precipitaram o colapso de 2001 ("blindagem" e "magacanje"). Os técnicos do Fundo alcançaram o recorde de triplicar a dívida em apenas dois anos.

Quem celebra agora o Memorando que Guzmán está preparando deve lembrar como terminaram as duas famosas ajudas do FMI, que desencadearam o fim da conversibilidade, o calote, a corrida cambial, o corralito e a pesificação assimétrica.

A experiência de Macri é mais recente e ninguém esqueceu como o Fundo sustentou dívidas loucas, para sustentar o maior ciclo financeiro da história contemporânea. A Argentina era o principal tomador de empréstimos do mundo em mero benefício dos financistas, que lucravam com as taxas de juros extremamente altas oferecidas pelo Estado.

Os ministros de Macri se atrapalharam na implementação de algumas receitas que Guzmán agora está relançando (redução do déficit, emissão zero), mas com o empréstimo-auxílio que Trump enviou, eles conseguiram transferir o problema para o atual governo. Como os diretores do Fundo são especialistas em culpar os outros por seus próprios desastres, eles criticaram Macri pelas medidas que promoveram. Com essa demonstração de hipocrisia, eles fogem de suas próprias responsabilidades.

Os macristas também escondem o caos que consumaram e prometem resolver o peso da dívida, com a mesma rapidez com que Macri previu o fim da inflação. Essa gestão refutou a crença ridícula de que os governos de direita administram com mais seriedade ou têm especialistas para lidar com as complexidades das finanças.

Nas últimas décadas, o FMI tem sido o principal culpado pelos infortúnios financeiros da Argentina. A crença generalizada de que os problemas "são nossos" é totalmente falsa. O Fundo esteve diretamente envolvido em todos os nossos pesadelos sem nunca assumir as consequências de seus fracassos.

Tampouco se encarregou dos turnos que seus gerentes promoviam. Eles sustentaram a conversibilidade e a desvalorização, o choque dos ortodoxos e o resgate dos heterodoxos, o endividamento dos neoliberais e os pagamentos dos progressistas. A Argentina se acostumou a administrar sua economia sob o comando do FMI, que afundou o país repetidamente. Não há razão para esperar um resultado diferente do novo acordo.

Outra forma é viável

Muitos apoiadores do governo entendem que o acordo é um compromisso indesejado, mas inevitável no cenário atual. Com essa postura de resignação, incorporaram os argumentos da direita, que equiparam a resistência ao Fundo ao abandono do planeta.

Afirmam que o FMI é um "banco do mundo" que associa todos os países do mundo. Mas esquecem que o crédito escandaloso de Macri não foi aprovado por aquela comunidade. Ele explodiu de repente através de um simples telefonema de Trump. Os Estados Unidos não são apenas o principal acionista com poder de veto na organização, mas também administram todas as decisões estratégicas da instituição. A queda de braço é com Washington e não com "todo mundo". Para recuperar a soberania econômica, essa tensão deve ser assumida.

O medo da disputa com o Norte cegou o governo ao avaliar outras alternativas. Não só excluíram uma cessação ordenada dos pagamentos, muito longe do incumprimento periódico que impõe o esgotamento das reservas. Eles também rejeitaram os cursos mais cautelosos sugeridos por alguns membros da coalizão oficial.

Os pagamentos podem ser atrasados ​​para alongar a negociação ou cancelar os juros sem pagar o capital ou buscar algum status quo de congelamento das negociações. Mas sob pressão de financistas no mercado de câmbio, o governo concordou com um pacto de rendição.

Com essa decisão, ele perdeu a oportunidade de aproveitar a reativação da economia para iniciar outro caminho. Se essa expansão incuba um ciclo de alta (que vai além da simples recuperação), a introdução da redistribuição de renda foi abandonada, em um contexto de recuperação do PIB.

Com uma reforma tributária progressiva, controle estatal do comércio exterior e gestão direta do sistema financeiro, essa reativação poderia ser combinada com uma retumbante melhora nos salários e no emprego. A volta do FMI impedirá a discussão desse projeto, pois o governo cedeu o poder de veto aos inimigos dos ganhos sociais.

O partido no poder também desperdiçou o contexto de divisão e perda de iniciativa que afeta temporariamente o direito. Essa oposição não conseguiu chegar a um acordo sobre uma resposta ao dilema colocado pelo FMI. Um setor propõe acompanhar o governo nos cortes pelos próximos dois anos e outro motoriza o confronto, para garantir a base eleitoral de um próximo presidente da Cambiemos . Nenhum dos dois grupos define como administraria a futura renegociação do acordo.

A Frente de Todos poderia aproveitar a perda de prestígio de Macri para forjar uma ampla frente contra o FMI. Não o faz porque tem mais afinidades com seus adversários do crack do que com as correntes populares contrárias ao Fundo.

A resignação que impera no governo o impede de registrar, além disso, a grande mudança política na América Latina. Essa mudança poderia fornecer apoio continental ao confronto com o FMI. O ano passado fechou com três vitórias eleitorais para o progressismo (Peru, Chile e Honduras) e em 2002 há grandes chances de vitória no Brasil e possibilidades de uma agradável surpresa na Colômbia. O assédio imperial da Venezuela continua a falhar e o ataque da direita na Bolívia naufragou.

O próprio Alberto Fernández foi nomeado presidente de um órgão regional que exclui os Estados Unidos e rivaliza com a OEA (CELAC). Além disso, já circulam declarações contundentes do presidente mexicano contra a asfixia financeira que o FMI impõe à Argentina. O país não enfrenta, portanto, o isolamento adverso que, por exemplo, a Grécia sofreu na Europa quando o FMI introduziu o terrível ajuste que o povo helênico ainda sofre.

Por outro lado, a Argentina não é a única vítima regional das cobranças compulsivas do Fundo. O Equador apóia todos os efeitos de um refinanciamento que corta salários e encarece o combustível. A Costa Rica sofre, por sua vez, as consequências de um acordo que corrói o sistema de Previdência Social. Fernández poderia retomar as campanhas regionais contra a dívida das últimas décadas, mas não pode pedir apoio para um processo que ele mesmo move.

O contexto internacional também difere dos momentos de maior iniciativa imperialista e de unipolaridade estadunidense. A própria viagem de Fernández à Rússia (no auge do conflito na Ucrânia) e à China (para um evento boicotado por Washington) ilustra a existência de um quadro propício para rejeitar a submissão ao Fundo.

Basta contrastar o tipo de crédito para fins produtivos que é administrado em Pequim (infraestrutura, usina nuclear, barragens, modernização ferroviária) com a fraude financeira que o FMI monitorava, para corroborar o caráter lesivo do novo acordo firmado com o Fundo.

Teremos também de ver as consequências geopolíticas desse tratado. Certamente aumentarão a pressão dos Estados Unidos para que a Argentina abandone suas ambiguidades de política externa e se adeque ao roteiro do Departamento de Estado. Biden agora terá embaixadores adicionais no Ministério da Economia e no Banco Central. Ele os usará para exigir compensação política pela clemência desses auditores. Uma amostra dessa direção já surgiu no acompanhamento argentino às recentes sanções votadas em Genebra contra a Venezuela.

Rejeição e mobilização

O Parlamento e as ruas serão as próximas áreas da disputa que concentra o acordo com o FMI. A esquerda já antecipou sua oposição frontal e está patrocinando um amplo chamado para apoiar esse questionamento com mobilização popular. Há muitos sinais de uma maior predisposição para essa luta, mas ainda não estourou um movimento maciço contra o FMI.

A grande tradição nacional de resistência ao Fundo continua viva, mas o governo e a direita semearam o medo de retomar essa batalha. Os golpes dos banqueiros são bem conhecidos e a cumplicidade do FMI é bem conhecida, mas muitos setores internalizaram a crença de que é melhor manter a cabeça baixa e aceitar o mal menor. A polêmica com essa atitude é a grande tarefa do momento.

Há indícios de um clima mais propício para desenvolver essa luta. Basta comparar as críticas que já estão surgindo contra o acordo, com a ausência de questionamento da troca de papéis com os obrigacionistas privados, para perceber a mudança de percepção.

O ressurgimento de slogans e mobilizações contra o FMI têm contribuído para esse repensar. As campanhas desenvolvidas pelos partidos de esquerda e a Autoconvocação para a suspensão do pagamento e apuração da dívida já resultaram em atos de afluência impressionante.

O comício realizado em meados de dezembro na Plaza de Mayo foi ignorado pela imprensa, mas teve uma afluência muito alta. Concorreu em número com o ato realizado pelo governo no dia anterior no mesmo local. As comemorações dos 20 anos da rebelião de 2001 também se concentraram na denúncia do papel desempenhado pelo FMI naquela crise.

Por outro lado, a capitulação do partido no poder provocou fortes críticas dos setores radicalizados do Kirchernismo. Essas correntes devem agora definir seu voto no Congresso. Não haverá espaço para ambiguidades e a convergência com a esquerda em uma rejeição comum constituiria um grande avanço para a causa popular.

O governo estendeu a mão para o direito de votar no Memorando e na Carta de Intenções. O FMI incentiva esse apoio compartilhado, mas se a rivalidade prevalecer e o crack reaparecer, haverá um fogo de artifício entre dois grupos que apoiam o retorno dos fiscais do Fundo.

O acordo preliminar com os credores já foi assinado, mas a batalha para torná-lo efetivo está apenas começando. É conveniente recuperar a memória de todos os estragos causados ​​pelo FMI para evitar que se repita o mesmo infortúnio. A rejeição do acordo é o primeiro passo de uma longa batalha contra o inimigo em série do povo argentino. Com atitudes firmes, ideias convincentes e força nas ruas, o caminho da resistência ao Fundo será reaberto.


CLÁUDIO KATZ

Economista, pesquisador, professor e membro do EDI (Economistas de Esquerda). Seu site é www.lahaine.org/katz.

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