terça-feira, 1 de março de 2022

Leis parisienses são aplicadas, sem debate, no território amazônico da Guiana francesa


Por Fábio Zuker
https://amazoniareal.com.br/

Tarapoto (Peru) – Ninsey Kramer e Jean Georges Maïas são militantes do partido político que luta pela independência e autonomia do território da Guiana francesa, o MDES (Movimento para a Decolonização e Emancipação Social). Kramer é professora de matemática, química e física. Maïas é técnico de informática. Para eles, as leis que são votadas na França são imediatamente aplicadas na Guiana (em francês Guyane), sem nem se debater a sua aplicabilidade. São leis parisienses diretamente aplicadas sobre território amazônico, disseram os militantes em entrevista exclusiva ao jornalista e antropólogo Fábio Zuker durante o VIII Fórum Social Panamazônica (Fospa). “Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Tudo isso não existe na Guyane. Não podemos dizer isso se não existem escolas para as crianças. Enquanto país, a França reconhece apenas um povo”, disse Kramer.

Zuker acompanhou as plenárias do Fospa entre os dias 28 de abril e 1º de maio, em Tarapoto. Para agência Amazônia Real o jornalista entrevistou personagens que resistem, de baixo, à destruição de seus territórios e modos de vida na Floresta Amazônica.

Depoimento de Ninsey Kramer

Faço parte da delegação do MDES (Mouvement pour la Décolonisation et l’Emancipation Sociale, sigla em francês para Movimento para a Decolonização e Emancipação Social), um partido político pela independência e autonomia de nosso território, a Guyane.

Nesse momento vivemos uma crise social. Se nós buscarmos entender os problemas da Guyane hoje, vemos sem dificuldade que tudo está relacionado a nossa total dependência com relação à França. Claro que sabemos que a independência não resolverá todos os problemas, mas o plano de fundo de todas as questões sociais e políticas na Guyane é esse, a colonização. Como vimos falando ao longo do Fórum, somos o último país ainda colonizado na América do Sul.

As atuais manifestações na Guyane começaram com dois sindicatos, ligados à questão energética.

Junto a eles, houve uma revolta contra a proposta de venda de um hospital público para uma entidade privada, enquanto temos um sistema de saúde totalmente ineficiente. Quando as pessoas foram às ruas começaram a se dar conta que viviam os mesmos tipos de problemas. Além disso, a situação com a saúde se repete com a educação, uma enorme falta de escolas e colégios.

A França diz: “Sim, trata-se um departamento francês, como todos os outros”. Lá eles dizem, o que mesmo? [Fala em tom algo jocoso e com desdém, como se tivesse mesmo esquecido] Liberdade, Igualdade, Fraternidade? Tudo isso não existe na Guyane. Não podemos dizer isso se não existem escolas para as crianças. Enquanto país, a França reconhece apenas um povo. O que não faz sentido na Guyane, pois temos que reconhecer os povos autóctones, e também os Bushinengués [descendentes de pessoas escravizadas que se revoltaram contra os colonizadores e fugiram para a floresta. Quilombolas em português]. Esses povos não são reconhecidos pela França.

Como devolver a Terra que lhes foi roubada? Não se reconhece nem mesmo a colonização. Hoje 90% do território guianês pertence ao Estado Francês. Assim, não podemos gerir o nosso próprio território. Para construir uma escola, por exemplo, temos que pedir a autorização de Paris. Tudo o que nós queremos fazer tem que passar por Paris.

Também tudo o que diz respeito à produção alimentícia passa pela França. Mesmo aquilo que é produzido em países vizinhos como o Brasil e o Suriname. Estão ao nosso lado. Somos vizinhos. Mas todas as frutas, carnes, verduras, tudo é enviado primeiramente a Paris e depois volta para a Guyane. Parece uma aberração, mas é exatamente o que vivemos no dia a dia.

Nos obrigam a respeitar as leis francesas, mas esquecem que não estamos na Europa, mas na América do Sul.

Devido a essas situações que estamos em uma luta por autonomia, para nos autogerir. E claro, como a França é um país igualitário [aqui seu tom irônico fica evidente], obviamente nós pagamos os mesmos impostos que os cidadãos franceses. Outro problema é que a República Francesa não leva em conta os clandestinos que vivem no território da Guyane. Oficialmente temos 250 mil pessoas, mas na realidade há muito mais, e não temos meios para acolher os imigrantes.

Diz-se que a França é um país que respeita os direitos humanos, que todas as crianças, ainda que ilegais, que estejam em território francês tem direito à escola… mas aqui não temos escolas suficientes nem mesmo para os cidadãos reconhecidos. Temos gente que imigra dos lugares mais distintos: Brasil, Suriname, Haiti, Guyana [a ex-colônia britânica], São Domingo… muitos lugares diferentes.

Hoje temos um projeto que está sendo implantado no meio da floresta amazônica, que é o da North Gold, em uma zona que é chamada de “área protegida”. Mas não se leva em consideração as populações indígenas.

Trata-se de um projeto canadense. Vão utilizar arsênico, para poder juntar ouro. O que piora ainda mais a situação dos rios nessa região, já crítica por conta dos garimpeiros ilegais que contaminam os rios com mercúrio. Temos inúmeros casos de populações indígenas que estão sendo envenenadas com mercúrio, tanto na água que tomam como no peixe que comem. Esse projeto é praticamente um assunto tabu. Nunca se discute ele de maneira aberta na França, e entretanto trata-se de uma das maiores minas de ouro do mundo.

Depoimento de Jean Georges Maïas

Jean Georges Maïas, técnico de informática. membro da delegação do MDES (Foto: Fábio Zucker/Amazônia Real)

Como estamos ”na França”, existem algumas ajudas do Estado para parte da população. E como as pessoas sabem que na Guyane tem educação e escola asseguradas pelo Estado, ainda que insuficientes, emigram para isso. Mas essa população não é oficialmente contada. Para vir do Brasil, por exemplo, basta cruzar um rio. De modo que tudo o que é feito na Guyane é levando em conta números que não condizem com a realidade. Então, quando se decide pela construção de hospitais e escolas com base nos números oficiais, estes já estão obsoletos em relação à realidade. Tudo o que é feito na Guyane já é obsoleto. Nós estamos sempre tentando superar os atrasos. Não existe projeção, nem planejamento… estamos sempre tentando superar um certo atraso…

As leis que são votadas na França são imediatamente aplicadas na Guyane, sem nem se debater a sua aplicabilidade. São leis parisienses que são diretamente aplicadas sobre território amazônico. Por conta dos tratados de livre circulação de pessoas, gente de toda e Europa pode vir trabalhar na Guyane. Um italiano, um francês, um alemão, um romeno…

No entanto, temos um desemprego de quase 40%. Um a cada dois jovens entre 18 e 25 anos não tem trabalho…

Durante os protestos, os motoristas de caminhão se revoltaram e fecharam todos os cruzamentos da cidade. Os portos também foram fechados. Muita gente ficou preocupada, porque achava que não teríamos mais comida… Mas o ponto é que vivemos uma situação fora do normal. Tomemos como exemplo os pratos guyaneses mais tradicionais, todos levam feijão vermelho. E eles são produzidos na região francesa da Bretanha. Nossa economia é, então, baseada em importar tudo… nós não produzimos absolutamente nada. Assim, se bloqueamos o porto, tudo é bloqueado. Esta é uma forma de mostrar a necessidade absoluta de autonomia de nosso território. Temos a possibilidade de criar muitas coisas na Guyane, de produzir nossos próprios alimentos.

Hoje, os interesses sobre a floresta são interesses que vem de fora. O MDES se desenvolve majoritariamente na costa. Mas mesmo na Amazônia, tivemos povos que se juntaram aos bloqueios, e barraram a circulação de barcos nos rios com as suas canoas…

Se no litoral nós temos problemas, no interior, dentro da floreta, a situação é ainda pior, já que o modelo francês aplicado em nada condiz com a realidade dos povos que ali vivem.

Quando na França falam em ”Educação para Todos”, o que está por trás é um projeto de desenraizamento das pessoas. Indígenas que não falam francês, quando vão à escola, e são obrigados a ir à escola, devem aprender uma língua que não é a sua, fazer cálculos matemáticos com trens e com frutas como maçãs e uvas que não existem em seus territórios… Isso tudo cria frustrações, e problemas incomensuráveis.

Resulta que das imposições de leis francesas em um território que pouco partilha uma realidade com a de Paris temos um altíssimo índice de suicídios em populações indígenas.

Na Guyane, um indígena se suicida por semana.

Eles vão às escolas no litoral, aprendem sobre a realidade francesa que em nada lhes diz respeito, e quando voltam as suas aldeias e comunidades se estabelecem relações conflituosas… que resultam também em problemas de ordem psíquica.

Para mim, o resumo da situação da Guyane é a tentativa de se impor um modelo de fora, que em nada se aproxima da realidade por nós vivida [neste momento penso em como a situação da Guyane é ao mesmo tempo excepcional, e um caso mais radical, extremo, de situações que ocorrem por todo o território amazônico, com a imposição de modelos de fora que servem a outros interesses, diversos dos das populações que ali vivem].

O Estado Francês não reconhece as populações indígenas e quilombolas; reconhece apenas um povo, o francês. Aprendemos que os nossos ancestrais são os gauleses. Uma criança na Guyane conhece melhor a geografia e os rios da França que os de seu território. Ele conhecerá a história de toda a Europa, e nada da América do Sul. A escola perde o seu sentido.

Jean Georges Maïas e Ninsey Kramer, do MDES (Foto: Fábio Zucker/Amazônia Real)

Fábio Zuker

Jornalista e antropólogo, é mestre em Ciências Sociais pela EHESS-Paris e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, com pesquisa realizada no Baixo Tapajós (Pará). Como jornalista, colabora com a agência Amazônia Real desde 2017, e já escreveu para meios como National Geographic Brasil, revista Piauí, Le Monde Diplomatique Brasil, Agência Pública, Nexo Jornal, revista PISEAGRAMA, O Estado da Arte, entre outros. É autor dos livros "Vida e Morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia" (PS, 2019) e "Em Rota de Fuga" (Hedra, 2020).

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