segunda-feira, 11 de abril de 2022

JOGO HISTÓRICO - A urgência por marcos de memória do esporte e da cultura popular no Brasil

(Créditos: Agência Brasil)

por Helcio Herbert Neto

Esquecimentos acerca dos instantes mais agressivos e antidemocráticos da história brasileira escancaram a necessidade de iniciativas para estabelecer referências sobre o passado de assuntos muito populares, a exemplo do futebol e da música

Sob refletores e flashes de um Maracanã com ingressos esgotados, Caetano Veloso foi um dos encarregados de encerrar a cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Se no ápice da apresentação que inaugurou o evento a luminosidade colocava em evidência o cantor aos olhos do mundo, quase meio século antes a repressão se esforçava para que sua figura pública se esvaísse. O mais absurdo dessa trajetória é que a prisão do artista se deu em um complexo que viria a ser utilizado para as disputas esportivas daqueles Jogos Olímpicos.

O fato realça as relações no interior da cultura popular, entre música, esporte e política. Mas não só isso: os esquecimentos acerca dos instantes mais agressivos e antidemocráticos da história brasileira escancaram a necessidade de iniciativas para estabelecer marcos para a memória sobre o esporte. Principalmente quando o assunto em pauta são as modalidades que mais mobilizam os torcedores. A ausência de referências coletivas que simbolizem essas rupturas facilita a ação de grupos políticos na tentativa de estabelecer regimes de força, a exemplo do que acontece atualmente no país.

Logo após o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em 1968, o compositor baiano foi alvo da perseguição do aparelho repressor do governo que, depois de derrubar o presidente João Goulart, inaugurava o período mais brutal da ditadura. Derivou disso a necessidade de se exilar na Europa. Os contornos dessa passagem são, de certa forma, familiares devido à profusão de relatos a respeito do tema – do mercado editorial, com seu livro “Verdade Tropical”, à indústria cinematográfica, representada pelo documentário, mais recente, “Narciso em Férias”.

A apresentação que concluiu a abertura dos Jogos Olímpicos foi ao lado do antigo companheiro, Gilberto Gil, e da cantora Anitta. Enquanto o amigo baiano de Caetano Veloso também foi obrigado a lidar com o recrudescimento da repressão do final da década de 1960, a jovem artista nasceu após a Constituição de 1988. Na estrutura montada no estádio, passado e presente se tornavam indiscerníveis. Ou, mais precisamente, permanências de outros tempos emergiram diante dos olhares atentos dos espectadores.

A Vila Militar, na zona oeste do Rio de Janeiro, foi um dos locais que serviram para a detenção de Caetano Veloso e de outros presos políticos. Publicado dois anos antes dos primeiros Jogos Olímpicos em solo brasileiro – e, consequentemente, da abertura que contou com a participação do músico –, o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) cita as dependências do complexo mantido pelas Forças Armadas como foco da violência de Estado. Ali, os alvos das violações aos direitos humanos eram opositores do regime.

Por conta da realização do evento, foi cedido para os organizadores o complexo mantido pelas Forças Armadas, que reúne instalações relevantes para a estrutura do Exército até hoje. A região de Deodoro, que abriga a Vila Militar, recebeu 11 modalidades ao longo do evento. A despeito do reconhecimento oficial dos atos praticados por agentes mantidos, àquela época, com verbas públicas no mesmo local, nenhum dos atletas que participou das disputas se deparou com um marco que evocasse as memórias da repressão.

Não foi criado memorial, instalado um monumento ou anunciada placa com citação dos nomes daqueles que por ali passaram durante o período de exceção. Nem houve sequer menção aos acontecimentos durante o evento. No caso da Vila Militar, é possível questionar se tais esforços impediram o avanço da extrema direita devido à proximidade com a escalada dos acontecimentos: foi em 2016 que houve a derrubada da presidenta Dilma Rousseff. Mesmo se não evitassem a ascensão desses setores ao poder, ações pela memória ao menos confeririam mais instrumentos para a reação a esse amplo movimento.

Embora o impacto na vida pública ainda pareça ser restrito, esforços de pesquisadores não devem ser menosprezados. À espera de políticas de Estado que deem vazão à necessidade de estipular referências sociais sobre as arbitrariedades cometidas no Brasil, ações pontuais colaboram para voltar as atenções para acontecimentos do passado que, diante do drama diário da vida nacional, podem não receber a ênfase que deveriam.

Exemplos de resistência e de experiências democráticas também merecem ser sublinhados na cena pública. Jogar luz sobre episódios transgressores é uma maneira de identificar novos sentidos até para elementos que compõem o cotidiano no Brasil. Quando examinados com rigor, aspectos da cultura popular, por vezes encarados como apolíticos e até vinculados a setores de extrema direita, assumem feições subversivas.

A imagem do Maracanã lotado volta à tona. Dessa vez, todos vestem rubro-negro. É para essa multidão, incontrolável, que Conte Comigo: Flamengo e Democracia direciona o seu olhar. O livro reúne relatos de ex-atletas e torcedores do clube carioca. As recordações dos participantes se atêm a acontecimentos de períodos autoritários, pretéritos ou contemporâneos, para tratar com seriedade o modo como esses grandes contingentes populacionais se relacionam com o esporte.

Ainda persistem perspectivas apenas condescendentes com os hábitos populares, com destaque para o futebol. Há os que o enxergam como um fator alienante, mas também existem aqueles que consideram as práticas esportivas somente uma expressão alegre e genuína do povo brasileiro. Ambos os prismas de análise conseguem abrigo entre pesquisadores. O caso do Flamengo é significativo para escancarar a complexidade que escapam a esses estudiosos, dadas as disputas políticas em torno das cores, dos times e do passado dos times de futebol.

O caso rubro-negro não deve ser isolado. Trabalhos acerca das movimentações de outros clubes desde o século XX, quando a conexão com os torcedores adquire proporções gigantescas, também atestariam a dimensão política do esporte. Características insurgentes pouco conhecidas viriam a público. A título de exemplo: Caetano Veloso manifesta publicamente sua inclinação pelo Bahia, time que também traz em sua história esses traços contestatórios. No entanto, curiosamente Conte Comigo também se depara com a vida do artista.

O livro passeia pelas lutas de sua geração e pelas aproximações com o esporte. A realidade do exílio em Londres surge em um dos depoimentos. Em outra passagem, a efervescência cultural do Brasil entre o final dos anos 1960 e o princípio da nova década é relatada. O paralelo entre as aspirações dos que se levantaram contra o regime instituído pelo golpe de 1964 e os desejos dos que cerram fileiras contra os setores políticos que oferecem sustentação ao atual governo é imediato.

Em 2022, o Flamengo completa 110 anos de futebol. Formado inicialmente para as provas de remo, o clube foi redefinido pela chegada da modalidade. O time mais popular do país transcende as partidas em que seus jogadores estão em campo, os símbolos vinculados ao time têm profunda circulação entre torcedores e rivais. As partidas passam, assim, a ter importância que extrapola a colocação em tabelas de classificação. Obviamente, foi isso o que despertou a sanha de representantes políticos de projetos elitistas ao longo dessa história.

O flagrante mais recente é o noticiário sobre a nomeação do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, para o conselho da Petrobrás. Se as iniciativas democráticas não são poucas, movimentações mais reacionárias abundam em mais de um século de história. Da proximidade com o Estado Novo aos presidentes militares, passando pelas simpatias com a União Democrática Nacional no breve suspiro entre ditaduras. No entanto, essas inclinações não foram unânimes – foram objeto de debate, conflitos e silenciamentos.

A principal característica dos depoimentos do livro é, por esse motivo, a do confronto. A contraposição ao arbítrio também se deu no interior dessa grande comunidade criada em torno do Flamengo. É interessante pensar para além da esfera da resistência: o comportamento político dos atletas e das arquibancadas não apenas respondeu às investidas autoritárias, apresentou caráter propositivo. Dali surgiram ideias capazes de mobilizar democraticamente o país, graças à abrangência da sua torcida. Muitas das propostas vieram a todo volume, na música popular.

É difícil resgatar da memória algum time do país mais mencionado por músicos em suas composições. As citações vão desde trechos pontuais até sucessos inteiramente dedicados a jogadores, times e ao clube de maneira mais ampla. Há os casos extremos de álbuns completos com essa temática. Embora não tenha como intenção estabelecer a profundidade da ligação do Flamengo com a música, Conte Comigo esbarra em muitas faixas sem perder de vista o propósito de publicar os traços mais disruptivos dessa história.

O maior compromisso é com os relatos dos participantes, que representam vontades e inquietações presentes na vida do Flamengo. As páginas sintetizam longas trajetórias com o clube – por isso a atenção com a forma pela qual essas histórias foram contadas. A opção por depoimentos deriva dessa preocupação. Narrações, avaliações e expressões em primeira pessoa colaboram para a compreensão da pluralidade imersa no vermelho e no preto presentes em bandeiras e uniformes.

A finalidade no livro é suscitar o interesse por esses desvios na história do Flamengo, romper com uma visão linear, monolítica e hegemônica a respeito da configuração do clube e da legião de torcedores que o acompanha. Nos estádios, os confrontos não se limitam ao campo de jogo. As suas consequências são muito mais abrangentes. Conte Comigo foi escrito com a intenção de estimular a reflexão a partir da complexidade das lutas políticas travadas no interior da cultura popular.

Da atual gestão rubro-negra, não é permitido aguardar nenhum esforço pelo resgate da memória do clube. Ainda mais quando está em pauta o estabelecimento de marcos pela memória das tendências pela defesa por mais liberdade e democracia na centenária história do Flamengo. A visão limitada dos dirigentes e, principalmente, seu alinhamento automático às coordenadas oferecidas pelo governo federal impedem qualquer aceno nessa direção.

Dessa forma, a publicação pretende oferecer ferramentas para mais estudos e motivar outros trabalhos nesse sentido, inclusive sobre rivais cariocas ou clubes de outros estados. Com isso, serão satisfeitas as motivações que animaram as conversas, a redação, a edição e, por fim, a publicação do livro. Caberá a futuros pesquisadores submeter os relatos à precisão histórica, contrapor fontes de consulta e identificar eventuais deslizes.


Helcio Herbert Neto é o autor de Conte Comigo: Flamengo e Democracia, em pré-venda pela Editora Ludopédio. É repórter, professor e pesquisador. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, é doutorando em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do laboratório SPORT-UFRJ.

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