quarta-feira, 20 de abril de 2022

O conflito na Ucrânia marca um fim de era: a da dominação ocidental

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A velha ordem liderada pelos EUA tem de ir e irá, precisamente porque já não é mais viável para o resto da humanidade

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O conflito militar em curso na Ucrânia é um divisor de águas, um evento de imenso significado histórico. Ele marca uma ruptura com o passado e o início de uma nova realidade geopolítica, uma realidade que será acompanhada de progresso nas relações internacionais rumo a maior desenvolvimento económico, justiça e paz.

O conflito militar na Ucrânia não é acerca de uma disputa estreita entre a Ucrânia e a Rússia. Ele é, sim, o sinal anunciador de uma maior confrontação entre, por um lado, os EUA que lideram a ordem ocidental e, por outro, nações como a Rússia, China e outras que se recusam a aceitar um papel subordinado. Nossa entrevista com Bruce Gagnon, esta semana, elucida o grande quadro geopolítico e o que está em causa.

Um sinal seguro das suas grandes dimensões é o modo como os EUA, a NATO e aliados europeus rapidamente instalaram uma guerra híbrida total à Rússia, numa tentativa de destruir a sua economia. As afirmações ocidentais acerca da “defesa da democracia, soberania e direito internacional” são vis e fraudulentas. Ao canalizarem armas para um regime repressivo e corrupto cujo sector militar está infestado com regimentos nazis?

Não, os EUA e os seus aliados ocidentais estão a utilizar o conflito – um conflito que a Rússia tenazmente tentou evitar fazendo apelos razoáveis a tratados de segurança com a NATO – como uma oportunidade para esmagar a Rússia. E não se trata simplesmente de esmagar a Rússia. Trata-se de esmagar qualquer desafio à ordem ocidental. Isto envolve inevitavelmente confrontação com a China e outros países que procuram desafiar o “Consenso de Washington”.

A censura draconiana dos media internacionais da Rússia e o bloqueio sobre a economia russa indica que uma campanha de hostilidade total das potências ocidentais estava pronta para arrancar. A intervenção da Rússia na Ucrânia em 24 de Fevereiro – baseada em princípios plausíveis de auto-defesa – proporcionou a plataforma de lançamento para a hostilidade ocidental. Mas esta hostilidade não é apenas em relação à Rússia. Ela destina-se a confrontar o surgimento de uma ordem mundial multipolar que ultrapasse o controle da dominância estado-unidense. Esta dominância – ou hegemonia – está baseada na controle estado-unidense do sistema financeiro global bem como sobre o poder militar bruto americano, com a assistência dos seus adjuntos da NATO.

As preocupações imediatas da Rússia acerca da Ucrânia eram baseadas na ameaça crescente que este país vizinho a ocidente apresentava devido ao seu traiçoeiro envolvimento com a NATO e aos assaltos inaceitáveis que o regime de Kiev infligia às populações de língua russa na região do Donbass ao longo de cerca de oito ano. Mas ao defender estas preocupações nacionais, a intervenção militar na Ucrânia desafiou também todo o sistema da ordem ocidental dominada pelos EUA.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, acerca destes desenvolvimentos notou que conduzem a um fim de era. Ele considerou aos media russos esta semana: “Nossa operação militar especial tem como objectivo por fim às expansões irrestritas e ao livre curso da dominação total dos EUA e de outros estados ocidentais na arena internacional”.

Vale a pena reflectir sobre o seu raciocínio quanto à razão porque a duplicidade e a hipocrisia das potências ocidentais tornaram-se intoleráveis e porque tal arrogância unipolar estava, e está, a destruir a ordem internacional.

Lavrov comentou com ironia: “É possível reconhecer a independência do Kosovo sem um referendo, mas é impossível reconhecer a independência da Crimeia, declarada após um referendo, observada por centenas de representantes estrangeiros objectivos. Os EUA imaginaram uma ameaça à sua segurança nacional no Iraque a milhares de quilómetros de distância, mas quando o bombardearam e não descobriram ameaça ali eles não pediram desculpas. E quando neo-nazis e ultra-radicais estão a ser cultivados e a crescer junto às nossas fronteiras, quando dezenas de laboratórios biológicos estão a criados sob a supervisão do Pentágono, a executarem alguns experimentos que acima de tudo têm como principal desenvolver armas biológicas – os documentos descobertos não deixam lugar a dúvidas – então não nos é permitido reagir a esta ameaça, exactamente junto às nossas fronteiras, não para além do oceano”.

O que a Rússia tem feito com a operação militar na Ucrânia, nos seus próprios termos e após avaliação independente, é sinalizar que a presumida dominância dos Estados Unidos e dos seus aliados ocidentais está acabada.

A era pós-soviética dos últimos 30 anos está acabada. A Rússia não está mais interessada em integrar-se com uma ordem global centrada no ocidente, como escreve esta semana Fyodor Lukianov num artigo no Russia in Global Affairs. A Rússia agora está a escolher “uma outra estrada”.

Esta estrada significa abraçar plenamente um mundo multipolar tal como anunciado pela integração económica Euro-asiática e a parceria estratégica com a China, Índia e outros. Os vastos recursos naturais da Rússia, primariamente na esfera da energia, serão dirigidos rumo ao desenvolvimento euro-asiático e, ao assim fazer, serão amplamente recompensados. São a economias ocidentais que precisam da Rússia mais do que esta precisa delas, como observou esta semana o presidente russo Vladimir Putin.

A transição para uma nova ordem global levará tempo e envolverá desvios temporários. Levará tempo construir a necessária infraestrutura de gás e oleodutos, por exemplo. Mas a trajectória geral é viável e sólida, ela já está em andamento.

A profunda importância histórica destas mudanças tectónicas globais é evidente na visão do economista russo Sergey Glazyev, tal como apresentada nesta entrevista erudita com Pepe Escobar. Glazyev trabalha há anos em função oficial na União Económica Euro-Asiática (UEEA). Ele pormenoriza a evolução implementação de uma nova ordem financeira global que substitua o sistema baseado no US dólar. A nova ordem está a ser desenvolvida pela Rússia, China e outros com o propósito explícito de se tornarem independentes da dominância da dívida dos EUA e do ocidente e da divisa do imperialismo.

O que está a acontecer na Ucrânia é realmente a conclusão de uma era e a feitura de uma nova época. Guerra e sofrimento são abomináveis. Mas o sistema dominado pelo ocidente não deixou à Rússia outra escolha senão utilizar a força física a fim de defender os seus interesses vitais. Agora que a ruptura aconteceu, há um sentimento de que o Rubicão foi ultrapassado. Não há volta atrás. A resposta ocidental foi auto-derrotante. A sua guerra híbrida contra a Rússia catalisou a morte da dominância dos EUA e do ocidente global. O seu abuso politizado do sistema dólar danificou fatalmente tal sistema e pressagia a aceleração de um melhor, de uma alternativa mais globalmente democrática.

Indiscutivelmente, a escala de tempo deste processo global vai além das três décadas pós-soviética ou da era pós-Gold Standard terminada em 1971 – quando os EUA a mataram para manter a supremacia do dólar. Ela vai mesmo além das oito décadas desde a II Guerra Mundial. Estamos a olhar para os últimos 500 anos da Europa ocidental e dos seus poderes coloniais, ultimamente encabeçada pela hegemonia dos Estados Unidos e o seu criminoso belicismo que vagabundeia pelo mundo.

Não há garantia do resultado. Mas basta dizer que a velha ordem liderada pelos EUA tem de ir e irá, precisamente porque já não é mais viável para o resto da humanidade.

15/Abril/2022

Este editorial encontra-se em resistir.info

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