quarta-feira, 13 de abril de 2022

Sanções: armas de destruição em massa

(Foto: Reuters)

Marcelo Zero: Muito embora não tenham a dramaticidade de bombardeios, as sanções são mecanismos eficientes para causar sofrimento e até eliminar uma população

Por Marcelo Zero

É comovente ver a sensibilidade da mídia ocidental e brasileira em relação às vítimas ucranianas da presente guerra.

Praticamente todos os dias surgem denúncias estridentes, até agora não efetivamente comprovadas por investigações independentes, de atos de “genocídio” e de hediondos “crimes de guerra” supostamente cometidos pelas forças russas.

A cada manifestação grandiloquente de Zelenski, ex-palhaço e atual arlequim geopolítico, todos se derretem em irrestrita e acrítica solidariedade, ao mesmo tempo em que exigem, aos berros, novas sanções e ações contra os “demônios russos”. Só faltam pedir uma jihad nuclear contra Putin e o “cancelamento” de Dostoievsky e Tolstoi. 

Apesar de muitas vezes absurdas, como a do bombardeio da estação de trem, em Kramatorsk, uma cidade do leste da Ucrânia de maioria russa, nada é questionado, pois, de acordo com a opinião amplamente dominante, os russos são seres malévolos que emergiram de vários círculos do Inferno para aterrorizar as inocentes forças ucranianas, nas quais estão incluídos os querubins dos batalhões neonazistas, herdeiros do arcanjo Stepan Bandera, aliado das SS no extermínio de judeus ucranianos, durante a Segunda Guerra Mundial.

É evidente que crimes de guerra podem ter sido cometidos tanto por russos quanto por ucranianos, mas isso tem de ser comprovado por investigações sérias e independentes. Reagir de forma emocional e acrítica a cada denúncia não substanciada somente agrava o conflito e tende a expandi-lo.

Além do caráter acrítico dessa postura, chama a atenção também a sua grosseira seletividade. Uma seletividade dupla.

Seletividade relacionada à cor da pele das vítimas e seletividade relacionada ao lado geopolítico do perpetrador dos crimes ou dos supostos crimes.

De forma curiosa, os mesmos que hoje se comovem profundamente com os sofrimentos dos ucranianos brancos e europeus e que exigem que Putin seja levado imediatamente aos tribunais internacionais, não se manifestaram da mesma forma quando iraquianos, iranianos, afegãos, líbios, sírios, palestinos, vietnamitas etc. foram submetidos a sofrimentos muito piores por parte dos EUA e aliados europeus, em nome, é claro, da democracia e dos direitos humanos.

No Iraque e no Afeganistão, cerca de 900 mil pessoas, a maioria civis, foram sacrificadas no sacrossanto altar da defesa da “democracia”. Na Síria, ao redor de 400 mil pessoas, até agora, foram mortas para a “defesa dos direitos humanos”. Isso sem falar nos milhões de deslocados internos e refugiados.

Na Líbia, outro país destruído pelas benevolentes forças do Ocidente, o enviado especial das Nações Unidas, Yacoub El Hillo, afirmou, em 2020, que o número de vítimas civis da prolongada guerra civil ocasionada pela derrubada de Kadhafi era “incalculável” e que 900 mil pessoas, a maioria mulheres e crianças, necessitavam urgentemente de ajuda humanitária para conseguir sobreviver.

No Vietnã, os EUA, de modo muito generoso, democratizaram seus bombardeios, inclusive com napalm e agente laranja, por todo seu território, contribuindo para assassinar cerca de 1 milhão de indivíduos, a maioria civis.

Em todos esses casos, o civilizado Ocidente, hoje tão estridente na defesa dos ucranianos, calou-se, ou até mesmo aplaudiu a matança.

No caso do Vietnã, a única voz oficial europeia que protestou, de forma firme, contra o massacre da população civil foi a de Olof Palme, primeiro-ministro sueco, que, em 1972, comparou as ações dos EUA no Vietnã às ações dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Pagou um preço caro pela veraz ousadia.

Entretanto, a seletividade se estende também ao uso da principal arma destruição de massa da atualidade: as sanções econômicas, comerciais, financeiras, utilizadas à larga por EUA e aliados.

Muito embora elas não tenham a dramaticidade de bombardeios e tiroteios, as sanções são mecanismos bastante eficientes para causar sofrimento e mesmo para eliminar a população civil de um determinado país ou países.

Estudo publicado na prestigiada revista Lancet, em 20 de agosto de 2018, (Economic sanction: a weapon of mass destruction) mostra que, somente no Iraque, as sanções, combinadas com os efeitos da guerra de vários anos, mataram cerca de 1,5 milhão de iraquianos, incluindo mais de meio milhão de crianças. A maioria morreu de fome e de doenças associadas à desnutrição, bem como de enfermidades que poderiam ter sido combatidas, caso certos medicamentos e vacinas não tivessem faltado.

Esse “silencioso assassinato em massa” da população iraquiana sequer é mencionado e discutido a sério no Ocidente e se constitui num exemplo extremo dos danos que as sanções podem causar. Na realidade, há muitas sanções em vigor contra países como Irã, Afeganistão, Síria, Cuba, Rússia etc., que produzem fortes efeitos negativos na inocente população civil.

Apesar de permitidas, em circunstâncias muito específicas, pelo artigo 16 da Carta das Nações Unidas, as sanções violam o artigo 25, parágrafo 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual determina que:

Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. No caso das novas sanções e inauditas sanções impostas à Rússia pelos EUA e aliados, elas, associadas aos efeitos da guerra, já começam a produzir efeitos profundamente negativos, não apenas na população civil da Rússia, mas também em todo o mundo.

Com efeito, os aumentos dos preços da energia, alimentos e fertilizantes, entre outros produtos, já estão aumentando exponencialmente a inflação e a insegurança alimentar em muitas partes do globo, afetando, principalmente, as populações mais pobres do planeta.

Estudo divulgado nesta terça-feira (12/04/2022) pela Oxfam (First crisis, then catastrophe) estima que a guerra e as sanções agregarão, combinadas com o crescimento da desigualdade, cerca de 263 milhões de pessoas à pobreza extrema este ano, caso nada seja feito. Ademais, 3,3 bilhões estarão abaixo da linha da pobreza. Um número que está se aproximando da metade da população mundial.

Mesmo assim, EUA e aliados insistem nessas sanções assassinas e suicidas, que tendem a impedir a recuperação da economia mundial, ainda muito debilitada pela Covid-19, e ainda pressionam outros países, como Índia e China, a elas aderirem. Agem como se as vítimas ucranianas justificassem o castigo a ser imposto a vastas parcelas da população mundial.

Até mesmo o sistema financeiro internacional está agora sob forte questionamento, pois seus mecanismos supostamente críveis e neutros revelaram-se poderosos instrumentos de domínio geopolítico. Saliente-se que a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT não foi algo inédito. Bancos sírios já tinham sido submetidos às mesmas sanções anos antes.

Apesar de que um erro não justifique outro e um crime não absolva outro, em tudo isso, choca, em especial, a grande hipocrisia que cerca o tema.

Como disse François de La Rochefoucauld, a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude.

O vício das sanções, essas assassinas silenciosas e discretas, é imenso.

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